terça-feira, 30 de outubro de 2012

A origem da linguagem e o sujeito


Saussure, Freud e Durkheim invertem (...) a perspectiva que faz da sociedade o resultado do comportamento individual e insistem em que o comportamento é possibilitado por sistemas sociais coletivos que os indivíduos assimilaram, consciente ou inconscientemente (Culler, p. 62, 1979).


Origem da linguagem: inanidade da questão (...)
[não há nenhum momento em que a gênese difira
caracteristicamente da vida da linguagem
e o essencial é ter compreendido a vida]
(Saussure, in: Boquet e Engler, p. 196, 2002)


Na epígrafe que abre esta reflexão, deparamo-nos com a ideia saussuriana de que a origem e a vida da linguagem não se diferem.
Nas notas das famosas três conferências, reunidas nos Escritos de Linguística Geral (Boquet e Engler, 2002), o genebrino demonstra que as línguas seguem dois princípios universais: o da continuidade e o da mutabilidade. Estes são ilustrados pela passagem do que se chama de latim para o que se chama de francês: o francês não pode ser considerado uma língua diferente do latim, senão que se trata do próprio latim em outro estágio.
...outra locução figurada que vamos justiçar (...) é do francês, língua filha do latim, - ou do latim, língua mãe das línguas românicas.
Não existem línguas filhas nem línguas mães, não existe em parte alguma e nem jamais existiram. Há, em cada região do globo, um estado de língua que se transforma lentamente, de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano e de século em século, (...) mas nunca houve, em parte alguma, parturição ou procriação de um idioma novo por um idioma anterior, isso é estranho a tudo o que vemos, assim como a tudo o que podemos nos representar em ideias, sendo dadas, simplesmente, as condições em que falamos, cada um a nossa língua materna (p. 134)
Deste modo, o valor heurístico que Saussure dá à origem da linguagem é o mesmo que o de seu corte sincrônico de análise: sincronia explica diacronia (e vice-versa), assim como vida explica mutuamente a origem da linguagem. Por ser a origem da língua e da linguagem um lugar inalcançável, sobre ela sempre recairão inúmeros mitos (religiosos e pagãos) e especulações (científicas ou filosóficas).
De modo geral, constituiu-se a ideia de que a origem parece ter guardado todos os segredos do desenvolvimento das línguas (Labjor, 2001; Jiquilin-Ramirez, 2012). É nela em que se encontra a chave para os enigmas da cognição, da comunicação, da linguagem e do pensamento.
Esta pressuposição transforma ingenuamente a origem no lugar imaculado, puro, estanque, universal, natural, autêntico e essencial. Conforme ainda argumentarei e ressaltando as ideias de Saussure, a origem é tão proteiforme quanto à vida dinâmica da linguagem.
Deixemos, por ora, em suspense nosso olhar sobre a origem e reflitamos sobre a vida da linguagem. É necessário que voltemos nossa reflexão para o motor que faz funcionar o caráter continuativo e mutável das línguas vivas[1].
Para o pai da Linguística moderna, este motor são os indivíduos:
A língua nasce, cresce, definha e morre, como todo ser organizado. Essa frase é absolutamente típica da concepção tão difundida, mesmo entre os linguistas, que é combatida a exaustão e que levou diretamente a fazer da linguística uma ciência natural. Não, a língua não é um organismo, ela não é uma vegetação que existe independentemente do homem, ela não tem uma vida que implique um nascimento e uma morte. Tudo é falso na frase que eu li: a língua não é um ser organizado, ela não morre por ela mesma, ela não definha, ela não cresce, na medida em que não tem uma infância, assim como não tem uma idade madura ou uma velhice e, por fim, ela não nasce (grifos meus, p. 135).
Por extensão, a coletividade assume o papel fundamental para o princípio universal de todas as línguas: “A linguagem é um fenômeno: é o exercício de uma faculdade que existe no homem. A língua é o conjunto de formas concordantes que esse fenômeno assume numa coletividade de indivíduos e numa época determinada” (grifos meus, p. 115).
Desta relação homem-língua, Saussure[2] nos permite uma das primeiras reflexões do papel individual, em contraposição ao papel coletivo para a mudança e continuidade da língua: a língua afeta o sujeito, mas o sujeito não consegue afetar a língua, na medida em que, enquanto solitário, sua força de mutação e continuação linguística é nulo. Em notas: “... toda espécie de valor, mesmo usando elementos muito diferentes, só se baseia no meio social e na força social. É a coletividade que cria o valor, o que significa que ele não existe antes e fora dela, nem em seus elementos decompostos e nem nos indivíduos” (p. 250).
O sujeito, já em Saussure, configura-se numa espécie de meio de campo da língua. Por um lado, ele constitui um coletivo, mas, por outro, a língua (e a ideologia) o constitui qua indivíduo. E se é o coletivo (seja em forma de luta de classes, conforme prefere os marxistas) o motor dos princípios das línguas, qual a sua força qua sujeito real?
Esta indagação também parece tê-lo perturbado:
Os fatos linguísticos podem ser tidos como o resultado de atos de nossa vontade? Tal é, portanto, a questão. A ciência da linguagem, atual, lhe dá uma resposta afirmativa. Só que é preciso acrescentar, imediatamente que há muitos graus conhecidos, como sabemos, na vontade consciente[3] ou inconsciente: ora, de todos os atos que se poderia pôr em paralelo, o ato linguístico, se posso chamá-lo assim, tem a característica [de ser] o menos refletido, o menos premeditado e, ao mesmo tempo, o mais impessoal de todos. Há uma diferença de grau que, de tão longe que vai, dá, há muito tempo, a ilusão de ser uma diferença essencial, mas não passa, na realidade, de uma diferença de graus (p. 132).
Contemporaneamente, Freud e Durkheim, na visão de Culler (1979), também lançam mão do mesmo problema:
A Sociologia, a Linguística e a Psicologia psicanalítica só são possíveis quando se tomam os significados que estão ligados aos objetos e ações na sociedade vista como uma realidade primária, diferenciando-os, como fatos que devem ser explicados. E desde que os significados são um produto social, a explicação deve ser levada a cabo em termos sociais. É como se Saussure, Freud e Durkheim tivessem perguntado: “o que torna possível a experiência individual? O que habilita os homens a operar com objetos e ações significativos?” E a resposta que eles postulam era as instituições sociais, que, embora sejam formadas pelas atividades humanas, são as condições da experiência. Para compreender a experiência individual, cumpre estudar as normas sociais que a tornam possível (p. 61-2).
Mais de meio século adiante, Pêcheux traz à baila a noção de interdiscurso, formação discursiva, formação ideológica e formação imaginária[4]. Aparatos de análise que corroboram as ideias seminais de nosso mestre: “esse sujeito que, por um lado, não é a origem de seu dizer, é assujeitado à ideologia dominante e é afetado inconscientemente pelos saberes próprios de uma determinada Formação Discursiva, na qual se inscreve prioritariamente; por outro lado, é um sujeito responsabilizado juridicamente pelo discurso que produz” (Silveira, p. 71, 2004).
Chegamos, então, a uma questão de ovo-galinha, tal qual àquela de vida e origem: se o falante “hospeda” a língua/ideologia, se a língua/ideologia constitui o falante, como seria possível vencer esta força coercitiva e proporcionar mudanças/continuidades? Em outras palavras, como um fato linguístico/ideológico deixa de ser individual e passa a ser coletivo? Usando termos genebrinos: parole e langue são comensuráveis? Quando a parole atinge a langue?
Passemos, então, a análise de alguns casos anedóticos em que o falante pretende lutar contra a injunção linguística. É muito comum em grupos minoritários uma luta empreendida contra a língua no que diz respeito às injúrias que tais grupos sofrem.
Podemos recorrer ao exemplo da nomeação das etnias indígenas no Brasil. O nome com que as comunidades indígenas ficaram amplamente conhecidas, muitas vezes, era lhes atribuída por uma tribo inimiga ou, o que era mais frequente, pelo homem branco. Dentre o vasto repertório nacional, quero trazer dois casos, um de fracasso e outro de êxito, quanto à mudança de nomes.
Os bororo, povo que habita o estado do Mato Grosso, receberam essa denominação dos colonizadores portugueses, que num primeiro contato, ao perguntarem aos gentios onde se localizavam, ouviram como resposta “bororo”, que naquela língua significa “pátio da aldeia”. Até os dias de hoje, os bororos[5] são oficialmente chamados assim, muito embora, dentro da própria comunidade eles se autodenominam “Boe”. Já não é o caso dos Krenak, localizados em Minas Gerais, que receberam a classificação genérica dos brancos como “aimorés”, nome também usado para outros grupos, e que depois o tiveram mudado para “botocudos” (aquele que usa botoques nos lábios e/ou nas orelhas), também comum a outros povos, e que nos dias de hoje são oficialmente identificados pela sua autodenominação.
Nestes casos, por que a vontade do falante, em uma ocasião, prestou para a mudança do nome e em outra não? Por que em alguns episódios a palavra consegue vencer o nível do indivíduo (ou de sua comunidade) e consegue se transformar coletivamente?
Vejamos mais alguns exemplos.
A teoria queer, da qual Butler é uma das precursoras, surge de uma reapropriação do termo “queer”, como nos descreve Colling (p. 01, 2001): “Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário, diz Louro (2004, p. 38). A ideia dos teóricos foi a de positivar esta conhecida forma pejorativa de insultar os homossexuais”. O que o trabalho de Oliveira e Conceição (p. 09-10, 2009) também descreve:
É no plano da contestação a (...) heteronormatividade que surgem as contestações queer (em inglês, pode ser traduzido como estranho, esquisito, mas também como um insulto dirigido a homossexuais e trans). Este termo que é inicialmente uma injúria visa interpelar e inferiorizar quem por esse termo é nomeado. A ressignificação a que (...) foi sujeito implicou uma reapropriação da historicidade desse termo, citando esse passado injurioso, mas através da ressignificação, o termo passa a ter uma carga de contestação colectiva.
O movimento negro estadunidense também provou desta ressignificação injuriosa. O vocábulo negro ganhou uma cunhagem mais neutra com relação ao racismo, depois do conhecido pronunciamento de Luther King[6] em 1909. E o termo black foi, posteriormente, reapropriado por Malcolm X: “Le Negro est le Noir d’avant l’éveil aux droits civiques (Malcolm X, [...]), le black est le Noir depuis la lutte pour les droits civiques” (Bonnet, 2011).
Mais um exemplo que cabe mencionar na história da língua[7] é o aparecimento de duplos lexicais, os chamados doublets. Trata-se de dois itens lexicais, um de origem popular e outro culta, que têm a mesma etimologia. A forma popular é aquela que se transformou paulatinamente na história do idioma, de acordo com os princípios universais de continuidade e mutabilidade descritos por Saussure; a segunda foi inserida tardiamente na língua e incorporada de maneira muito rápida pelos falantes. Quanto à semântica desses vocábulos é frequente que eles não tenham o mesmo significado, existe uma especialização que bifurca os seus sentidos: em alguns casos, uma das palavras conserva o étimo mais antigo e a outra se distancia (ex: artigo/artelho), em outros casos, o valor do étimo se divide (ex: mácula/mancha). Conforme descreve Calvi e Gifre (1997), a forma popular presta-se para os sentidos mais concretos, enquanto que a culta denota os sentidos mais abstratos (ex: sigilo/selo, rotundo/redondo). Vale chamar a atenção para a maneira como o cultismo lexical surge na língua:
Podríamos decir que ha habido unos canales que favorecen estas integraciones, como la lengua de la administración, con base en el latín jurídico; o bien la lengua de la enseñanza y de la Iglesia, con base en el latín eclesiástico; o bien la lengua literaria. En los tres casos se trata de usos cultos de la lengua, que favorecen o cultivan un respeto al prestigioso y constante modelo del latín. Importa que el estudiante entienda que la adopción de cultismos no se detuvo en un momento ya muy alejado de hoy, sino que la constante necesidad denominadora para los avances técnicos y científicos es pretexto suficiente para acercarse a los valores y formas etimológicos (p. 227-8).
Em todos os exemplos apontados, notamos a intenção individual da mudança lingüística e contextos políticos bem específicos. Conseguimos prever todos os estágios prévios do qual deriva a vontade de transformar o léxico[8]. Não há nenhuma criação ex nihilo, como diria Saussure ao abordar o fenômeno da analogia. Embora não se trate de analogia, todas as mudanças apontadas partiram de um estado prévio: nomes que não caracterizam os índios, injúria que ofende categorias de orientação sexual e identidade de gênero, termos que tentam esvaziar um conteúdo racista e léxico que surge para cumprir às necessidades das elites.
Na contrapartida, poderíamos nos lembrar de inúmeros casos de fracasso em que o que é da ordem do individual não consegue romper a barreira da langue: gírias adolescentes, cacos de novelas, jargões técnicos etc.
Dessa forma, se a língua/ideologia determina o sujeito, não é senão a partir da própria língua/ideologia que surge o desejo pela mudança.
Para tentar entender os fracassos e os sucessos individuais devemos caminhar pragmaticamente nas noções de língua e sujeito até então esboçados.
Para Saussure, a linguagem é heterogênea e a língua é homogênea, portanto passível de análise (CLG, p. 08 e 23). Diante de uma noção de língua homogênea, como se pode mover a individualidade e a coletividade? A solução foi atribuir a individualidade a parole e a coletividade a langue, de modo que a homogeneidade da língua se mantivesse intocada. É neste sentido, que Saussure é acusado de ter negligenciado o sujeito, pois, para que a língua pudesse ser analisada em seu sistema, o que é externo não pôde fazer parte do escopo de interesse. Assim, a exterioridade e o uso são abstraídos, neste então.
Rajagopalan (1998) aponta no decorrer da história da linguística teórica a mesma inquietude de nosso mestre genebrino, quando este tenta esboçar a noção de “uma língua”. Saussure não é capaz de delimitar o nascimento e a morte de uma língua no curso de seu desenvolvimento.  Ele fala sobre “uma língua”, mas sem defini-la, de modo que entende que há “uma língua”, em diversos estágios, cuja nomeação é arbitrária:
O essencial é compreender que podemos dar um nome só ao período de vinte e um séculos, denominando-o latim – ou então dois nomes, denominando-o latim e francês – ou então três nomes, denominando-o latim, românico e francês – ou então vinte e um nomes, denominando-o latim do século II antes de Cristo, do século I antes de Cristo, do século I depois de Cristo, dos séculos II, III, IV, VII, XII, XV, XIX depois de Cristo. E que não existe, literalmente, nenhum outro modo de introduzir uma divisão, além dessa maneira totalmente arbitrária e convencional (p. 143-4).
O indiano afirma que esta tradição em não poder definir “uma língua” assombra a linguística até os dias de hoje e sua repercussão foi sentida em todo o estruturalismo. Enquanto Sapir e Saussure tratam da língua num sentido genérico (langue), para Chomsky ela só existe via gramática universal. O papel do sujeito, como podemos prever, permaneceria relegado, pois se não sabemos o que é “uma língua”, o que poderíamos entender por “o falante de uma língua”?  Nas palavras de Rajagopalan: “... acontece que ‘um falante-ouvinte ideal numa comunidade de fala completamente homogênea ... [e tudo o mais]...’ (Chomsky, 1965, p. 03) é apenas isso: ideal. Os homens e mulheres reais que caminham sobre a face da terra estão muito distantes daquele ideal” (p. 25).
Por se tratar de um sujeito ideal e uma língua homogênea/ideal, chegamos facilmente à noção de pureza linguística: o falante nativo, uma espécie de “bom selvagem”, só produz elocuções autênticas, apenas frases gramaticais.
Neste contexto, para atender aos critérios de sujeito ideal, o sujeito real não poderá ser nem a criança, já que ainda não alcançou a maturidade do interdiscurso, não poderão ser os surdos, pois seu midium comunicativo se desvia aos das maiorias, não poderá ser um primata inferior, pois sua comunicação é rudimentar demais, tampouco poderá ser o de um falante de línguas pidgins ou crioulo, pois são línguas imaturas. Nenhuma gramática poderá ser produzida advinda de dados destes sujeitos, já que eles não atendem aos critérios de homogeneidade.
Deste ponto até os dias atuais, a linguística teórica avançou bastante e o sujeito, como dei indícios anteriormente, foi retomado e se tornou bastante fundamental para a constituição de novas áreas da Linguística, como a Análise do Discurso e a Pragmática.
Depois deste breve sobrevoo, já é hora de voltarmos à questão da origem. Encontramo-nos com elementos suficientes para dar continuidade à discussão que deixei em suspense.
Aqui, vida e origem coincidem. Ao tratar de um sujeito ideal falante de uma língua homogênea, também somos levados a pensar em sujeitos originários ideias. Da mesma maneira como esperamos que os falantes vivos sejam sujeitos puros (i.e. aquele que produz gramáticas autênticas), esperamos que sujeitos originários respondam a única fonte da linguagem. Acrescentaria a origem nesta seguinte conclusão de Rajagopalan: “a ideia de autenticidade acaba se revelando como o único tema comum por trás do ‘bom selvagem’ de Rousseau, do ‘falante-ouvinte ideal’ de Chomsky, das ‘pessoas reais’ de Yngve, do ‘usuário ideal da língua’ de Bakhtim e do ‘único fenômeno real’ de Austin. O que se busca, em todos esses casos, é o verdadeiro nativo na plenitude de sua autenticidade” (p. 35).
Na origem, o homem é facilmente associado ao “bom selvagem” e vieses biologicizantes contribuem ainda mais para defender os desenvolvimentos naturais das línguas e linguagem humanas. O que vemos estar na contramão da cultura.
Talvez, tendo em conta uma noção de indivíduo proteiforme e em constante fluxo, para além de sujeitos reais ou ideias, possamos entender o seu poder nas mudanças e continuidade das línguas: os indivíduos mudam assim como a língua e a ideologia muda.
Devemos reconhecer, por fim, que Saussure, brilhantemente esteve preocupado com a força individual dos falantes, como podemos notar com seu cuidado em não categorizar “uma língua” ou em pensar na constituição do sujeito pela língua/ideologia, como demonstrei ao longo desta reflexão. No entanto, a decisão radical de um Saussure em constante reformulação tornou-se publica no Curso: uma concepção de língua homogênea. Isto, no entanto, não invalida seu pensamento genial. Ele reconhece essa utopia pela autenticidade: “quanto mais se estuda a língua, mais se chega a compreender que tudo na língua é história, ou seja, que ela é um objeto de análise histórica e não de análise abstrata, que ela se compõe de fatos e não de leis, que tudo que parece orgânico na linguagem é, na realidade, contingente e completamente acidental” (p. 131).
 Saussure ainda diz: “É a coletividade que cria o valor, o que significa que ele não existe antes e fora dela, nem em seus elementos decompostos e nem nos indivíduos” (já citado). E Rajagopalan ratifica:
       A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela. Isso significa que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora da língua. Além disso, a construção da identidade de um indivíduo na língua e através dela depende do fato de a própria língua em si ser uma atividade em evolução e vice-versa. Em outras palavras, as identidades da língua e do indivíduo têm implicações mútuas. Isso por sua vez significa que as identidades em questão estão sempre num estado de fluxo (grifos meus, p. 41-20).

Posto isso, gostaria de modificar nossa epígrafe de abertura para: “Individualidade na linguagem: inanidade da questão. Embora haja muitas forças coercitivas na individualidade da linguagem não há nenhuma que não passe completamente inerte a coletividade da linguagem e o essencial é tê-las compreendido mutuamente”.
Ao dar visibilidade ao sujeito, não devemos afugentar a angústia do falante insatisfeito, como nos casos anedóticos apontados, sustentando que ele não tem forças para mudar a língua. Ele pode, é difícil vencer a barreira do coletivo, mas ele pode. Ele não pode, mesmo sendo constituído pela língua, se assujeitar sempre, quando na realidade, a língua/ideologia o oprime. Ao invés disso, à guisa de conclusão, prefiro aconselhá-lo num tom freiriano:
Eu recuso qualquer posição fatalista diante da história [...]. Eu não aceito, por exemplo, expressões como 'É uma pena que haja tantos brasileiros e tantas brasileiras morrendo de fome, mas, afinal, a realidade é essa mesma'. Não! Eu recuso, como falsa, como ideológica, essa afirmação. Nenhuma realidade 'é assim mesmo': toda realidade está aí, submetida à possibilidade de nossa intervenção nela” (FREIRE, 1997, 5'10'').

Referências
BONNET. “Don’t call me Nigger, Whitey” L’autodésignation de la communauté afro-américaine et la construction identitaire. Communication [En ligne], Vol. 28/2 | 2011, mis en ligne le 27 juillet 2011, Consulté le 05 juillet 2012. URL : http://communication.revues.org/index1803.html

CALVI e MARINELL GIFRE. Los dobletes léxicos em la enseñaza del español a extranjeros. VIII COngreso Internacional de ASELE. Acalá de Henares, 17-29 set, 1997. La enseñaza del español como lengua extranjera: del passado al futuro. Ed. De F. Moreno et al. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1998. 227-239

COLLING. Teoria queer. (2001). Disponível em : www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf  

CULLER. As ideias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979

FREIRE, Paulo. Paulo Freire: última entrevista. São Paulo: TV PUC de São Paulo. Disponível em http://www.paulofreire.ce.ufpb.br/paulofreire/Controle?op=detalhe&tipo=Video&id=622, 1997.

JIQUILIN-RAMIREZ. O que nos revela o povo hadza: o desejo do linguista. 2012. Disponível em: http://oquevcfazcomasualingua.blogspot.com.br/2012/04/o-que-nos-revela-o-povo-hadza-o-desejo.html

LABJOR. A origem e o destino das línguas. 2001. Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling08.htm

OLIVEIRA and  NOGUEIRA. Introdução: Um lugar feminista queer e o prazer da confusão e fronteiras. Ex aequo [online]. 2009, n.20 [cited  2012-07-05], pp. 9-12 . Available from: <http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602009000200002&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0874-5560.

PÊCHEUX. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.

RAJAGOPALAN. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora de uma reconsideração radical? In: SIGNORINI, Inês (org.). Lingua(gem) e Identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998. p. 21-46.

SAUSSURE. Curso de Lingüística Geral. 23ª ed. BALLY, C.; SECHEYAHE, A. (orgs.) Trad. A. Chelini, J. P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2001 [1916].

______.  Escritos de Lingüística Geral. BOUQUET, S.; ENGLER, R. (orgs.). São Paulo: Cultrix, 2004.

VERLI, F. P. da S. Algumas reflexões sobre o sujeito nos estudos da linguagem. In: Línguas e Instrumentos Lingüísticos, n. 13/14. Campinas, SP: Pontes, 2004, p. 65 – 74.




[1] Vivas no sentido de que não sofreram a morte violenta, única morte possível para Saussure. Assim, não consideramos o latim ou o grego, p. ex., como línguas mortas.
[2] Não acredito que Saussure tenha negligenciado de todo o sujeito, como reivindicam muitos historiadores das ideias e analistas do discurso (ver Silveira, 2004.). Como tento demonstrar, o indivíduo tem seu lugar nos escritos saussurianos. No entanto, o que difere em Saussure para os seus sucessores é a concepção de sujeito e seu foco.
[3] Entendemos o termo “consciente”, neste insight, como a vontade ou intenção de algo. Ainda não exatamente com o sentido proporcionado pos Freud.
[4] Não trataremos destes conceitos aqui. Para um melhor aprofundamento ver Pêcheux (1988).
[5] Boe-bororo tem sido usado recentemente também.
[6] I have a dream (1909)
[7] Das línguas românicas em específico
[8] Poderia citar ainda o caso de movimentos transgêneros e não-cisgêneros que já apagam de sua escrita os morfemas masculinos e femininos. 

terça-feira, 19 de junho de 2012

Como colaborar com o "português" de meus amigos





No texto de hoje, trago uma questão já batida em Linguística (e também já bastante comentada nos meios de divulgação de Linguística). Aqui no blog, já toquei neste assunto aqui e aqui. No entanto, é sempre preciso voltar ao debate, tanto porque é contra uma ideologia poderosa que temos de argumentar (e ela não vai desaparecer tão cedo) quanto por se tratar de um assunto de que quase todo mundo gosta de ouvir: o preconceito linguístico.
Como verão, nesta postagem vocês vão encontrar uma discussão informal, retirada de um fórum no FB sobre o preconceito linguístico. O mote foi levantado por uma pessoa de curso superior em Engenharia Mecânica e as réplicas e tréplicas, além de envolverem o próprio criador do tópico, são tecidas por pessoas também de formação universitária, sendo dois deles linguistas (menciono suas formações para deixar evidente quais discursos sobre língua circulam entre os sujeitos).
Mantenho o anonimato do criador do tópico (a quem identifico pela sigla JM), como também de alguns outros membros do fórum para dar enfoque à ideia (e não ao indivíduo – até porque o sujeito dessa ideia poderia ser qualquer José, João, Giberto). Por outro lado, mantenho o nome dos linguistas, Jefferson Voss e Jiquilin, para dar crédito à autoria dos conteúdos.
Como perceberão, o preconceito linguístico sempre deve ser trazido à baila, já que 35 pessoas curtiram o post linguisticamente preconceituoso e mais uma porção de gente fez comentários de mesmo tom.
Boa leitura!


MOTE

Post educativo 1:

1) A abreviaçao
(sic) de "horas" é SEMPRE apenas "h", independente se sao (sic) 300.000 horas. O certo é 300.000 h, certo, pessoal?

2) Se vc (sic) pensa em utilizar "mas" ou "mais" na sua frase, pense antes de utilizar qualquer um deles. Se puder substituir por porém, deve-se utilizar mas, nos outros casos, o correto é mais.
Exemplos:
- "Gostaria de estar em casa, () estou longe." Neste caso, pode-se utilizar porém que a frase continua perfeita, entao
(sic) o correto é "mas", isto é, "Gostaria de estar em casa, mas estou longe".
- "Estive () tempo lá." Neste caso, nao
pode-se (sic) utilizar porém que a frase fica sem sentido, entao (sic) o correto é "mais", isto é, "Estive mais tempo lá."

Vou fazer um post educativo toda sexta para colaborar com o português dos meus amigos. E nao to
(sic) julgando ninguém. Eu tive a oportunidade de aprender bem português e quero compartilhar esta oportunidade com quem nao (sic) teve.

Teh
(sic) o post da próxima sexta.

BOM DIAAAAAAAA!!!!
Por: JM

COMENTÁRIOS

NOTA: seguem os comentários. Tudo sic!

PL: Que bonitinho esse menino, gente ♥

RC: ISSO É O QUE MAIS DÓI DE OLHAR: "
2) Se vc pensa em utilizar "mas" ou "mais" na sua frase, pense antes de utilizar qualquer um deles. Se puder substituir por porém, deve-se utilizar mas, nos outros casos, o correto é mais."

GV: Então sempre tive dúvida em quando usar MENOS e MENAAAAS! me esprica? #não resisti =P

JM: Hahahahaha, GV, quem sabe esse nao seja o post da semana que vem, hahaha!

GV: ah, MAIS daí o post vai ficar muito fácil! XD

MK: Adorei q ideia! Aprovadissima! Vc arrasa sempre! Nossos olhos agradecem! Hahaha Ideia para o proximo post: ensina o povo a escrever COM CERTEZA? Hehehe

ON: Muito boa iniciativa, espero que muitos aprendam. Apenas não escreva MAIS (rs) "nao pode-se utilizar", porque com advérbio sempre se usa próclise. Portanto, o correto é escrever "não se pode utilizar".

JM: Arrasou, ON, vou me concentrar mais no próximo post, haha!
Eu nao me fixei nisso tudo, só escrevi e nem revisei, da próxima me esforçarei para que nao haja pequenos deslizes.

TC: Poxa gente, sem exageros também né? Eu concordo com o mas e mais, mas não precisamos ser tão ditadores com respeito a língua.

Lembremos Oswald de Andrade:

Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Oswald de Andrade
(1890-1954)

JM: ‎TC, eu estou de acordo. Eu nao estou sendo tao normativo, sao coisas simples que podem ajudar em provas e concursos, inclusives. E eu entendi o que o ON quis dizer... Nao custa ter mais cuidado.

ON: Ontem eu li um "dês de já". Fiquei traumatizado.

FA: Arrasou. Dica para proximos posts: Agente e a gente. HAHAHAHAH

TC: Na verdade essas são discussões muito recorrentes entre linguistas. Eu estava lendo um texto do Ferreira Gullar esses dias sobre isso. Existem aberrações linguísticas que precisam ser corrigidas como nos casos de "ancioso" ou o "dês de já", "mas" e "mais". Só não podemos esquecer que a língua é versátil e flexível e, no final das contas, é feita pelos falantes. A gramática é resultado da língua e não o contrário. Enfim, é preciso ter mais cuidado sim, mas eu comentei mais pra dizer que a coisa não precisa ser tão restrita. Se todos seguíssemos a gramática à risca não não teria existido gênios como Guimarães Rosa dentro da nossa literatura. :D

JM: E eu sei disso,TC, a idéia é apenas fazer posts sobre esses erros mais recorrentes, que sao fáceis de aprender.

PT: muiiitooo beeeem, JM!! Aí sim !! Sem falar dos: "derrepente", "concerteza", "de mais" ... tempo de verbo, tipo: "eu assistir ontem" ou "eu vou assisti amanhã" !!
Tanta coisa q dói ... =/

TC: Sim, sim JM eu entendi a ideia e dou total apoio. Só decidi fazer uma ressalva sobre possíveis exageros. No mais eu tenho uma sugestão: "tem" e "têm", "vem" e "vêm". Vejo que quase ninguém utiliza esse acento pra distinguir o singular do plural desses dois verbos. Muitos nem sabem mesmo que existe essa distinção, outros pensam que esses acentos desapareceram com o a reforma ortográfica, o que não é verdade. :D

ON: Acho que fui mal interpretado. Eu entendi que o intuito das dicas do JM é mesmo esclarecer os erros mais gritantes que ocorrem nas redes sociais. Mas eu também acredito que posts com caráter de correção gramatical devem, sim, obedecer à norma padrão, mesmo no Facebook. Pra mim, passa muito mais credibilidade.
Minha intenção foi só dar uma dica de como poderiam ser escritos os próximos posts, não dar um puxão de orelha, até porque o JM é exímio escritor, que certamente já sabe a regra que eu postei e que deve saber mais sobre gramática do que eu. E eu concordo com tudo que você escreveu, TC. Acho até que as aulas de Português deveriam trocar um pouco essa visão purista e alienada da norma por uma visão mais flexível de quem já conhece a Língua que fala. Mas enquanto isso não acontece, né...

ED: Faz uma explicando quando se usa MIM e EU, por favor!

RM: Não se esqueça do "nada haver" e "tem haver" que fazem doer os olhos, e nem do "seje". Ah, subjuntivos também são problemáticos pra esse povo!

Jefferson Voss: Olha, Jiquilin, mas um Pasquale pra "salvar" o mundo... rs

JM: Eu nao quero "salvar" nada, Jeff! Dica.
Já deixei clara a minha intençao com esse post.
Just this: "Vou fazer um post educativo toda sexta para colaborar com o português dos meus amigos. E nao to julgando ninguém. Eu tive a oportunidade de aprender bem português e quero compartilhar esta oportunidade com quem nao teve"

;)

Jiquilin: Vou criar posts todas sextas sobre motores, pra educar meus amigos motoristas. Semana que vem o post vai falar de ignição.

JM: Olha, Jiquilin, é bem provável que vc saiba bem mais de motores do que eu, já que a Engenharia Mecânica (assim como a maioria dos cursos) é bem ampla e eu nao escolhi me especializar nessa área. Trabalho com próteses e implantes, que olha, de motores e igniçao nao tem nada.

Ahh, e mais, o facebook é livre e vc pode falar sobre o que vc bem entender! Se essa é a sua vontade, siga em frente.

Só quero que vcs entendam que nao me formei em letras e nem quero obrigar nada e nem ninguém a aprender nada. Lê quem quer, aceita quem quiser. Só nao gosto de ironias num post em que eu fiz com boa intençao e sem a intençao de ofender ninguém. Aliás, como tudo que faço na vida. Faço para viver bem, e nao para ofender ninguém. E se tenho qualquer espécie de problema, eu chego e discuto (no bom sentido, de uma discussao entre pessoas civilizadas) a minha opiniao divergente a respeito de qualquer assunto.
Everybody is free!
Só isso!
;)

Jefferson Voss: JM, tenho problemas com esse post e, como você mesmo sugeriu que fizéssemos, quero discuti-lo. Tentarei ser curto e grosso (sem ser tão grosso...) (e já adianto que não conseguirei ser curto: impossível para uma questão tão delicada como essa (agora que acabei de escrever, percebi que escrevi um artigo de 5 páginas... risos)).
Você não faz a mínima ideia a respeito do quanto esses “pitacos” leigos na área alheia são um desserviço total para tudo o que tal área (com seu um milhão de pesquisas anuais) luta pra tentar desconstruir.
E lidar com uma ciência próxima das humanas abordando um objeto que todo mundo usa durante todo o tempo e para tudo (a língua, as linguagens...) só pode resultar isso mesmo: já que todo mundo usa a língua, todo mundo se imagina especialista nela.
Você falou uma grande verdade: você não fez Letras e não é especialista na área. Em outras palavras: você não sabe bulhufas daquilo que se discute em Linguística Aplicada a respeito de COMO a norma padrão da língua precisa ser ensinada para que o ensino não resulte simplesmente uma amontoação de normas dizendo o que é CERTO e o que é ERRADO (é o chamado ensino normativo de gramática normativa e, eu acrescento, por pessoas normativas (infelizmente, é o que você fez)).
No Brasil, já faz um bom tempo (desde a década de 1980 mais ou menos, ou até antes disso) que tudo quanto é especialista da área tenta reorganizar o ensino de língua materna para que os professores sejam formados a partir de outra concepção de língua e gramática: uma concepção interacionista (baseada na gramática internalizada) que prevê, SIM, que a norma culta deva ser ensinada, mas que procura meios de ensinar a norma culta em contraste com as outras inúmeras variedades linguísticas. E o negócio é tão difícil de ser resolvido que, até hoje, o ensino lá nas escolas continua praticamente do mesmo jeito.
A concepção mais comum de língua e de gramática que existe (e, portanto, a leiga, ou seja, aquela do senso-comum que constitui você como indivíduo) é aquela que prevê a língua como um sistema de signos imutáveis que deve ser mantido e reproduzido e a gramática na condição de um conjunto de regras do “bem-falar”, do “bem-dizer” (do falar “bonito”, do escrever “bonito”). Outro ponto importante dessa concepção de língua é a herança cultural que ela perpetua: herança segundo a qual quem fala “bem” e escreve “bem” (esse “bem” entre muitas aspas) é aquele que “pensa bem”. No ensino e na vida cotidiana, isso acarreta atos discriminatórios: quem utiliza melhor a norma padrão é inteligente (cognitivamente superior), já quem não a utiliza é burro (cognitivamente inferior). A Linguística Aplicada tem um nome para isso: preconceito linguístico. Há, inclusive, uns livrinhos bem fáceis de ler que mostram como a língua (e as políticas linguísticas) é um mecanismo de dominação e de segregação cultural. É só procurar por Marcos Bagno, Maurício Gnerre, Irandé Antunes, Mario Perini, João Wanderlei Geraldi, Sírio Possenti etc. A lista de pesquisadores brasileiros que se dedicam só a estas questões é enorme!
Nós, professores e pesquisadores das ciências da linguagem, temos feito de tudo para que as coisas não se resolvam somente na base do “isso é certo, aquilo é errado”. Temos explicado, muitas e muitas vezes, fenômenos como o uso do “mais” a despeito do “mas”. E, mais que isso, temos tentado mudar as condições de ensino e estimular a apreensão de outras concepções de língua, linguagem e gramática que não gerem práticas de segregação e que não resolvam tudo na base do “Vê se aprende o jeito certo!”.
Dessa forma, incomoda (e muito mesmo, você não faz ideia o quanto...) qualquer um postando qualquer coisa (e ainda de uma posição de dominação/superioridade) sobre o que fazer e não fazer com a língua. Sabe qual é o pior de tudo? Você não é o único e, tampouco, é o culpado por isso. Você é condicionado histórica e ideologicamente a viver essa concepção de língua/linguagem/gramática. E boa parte dos brasileiros (praticamente todos) também o é. Não é à toa que muitas pesquisas revelam que a maioria dos brasileiros não admite que fala língua portuguesa (porque acham que língua portuguesa é outra “coisa”, aquela “coisa” que está naqueles “livros grossos com um monte de regras”) e, pior, a grandíssima parte do nosso povo simplesmente insiste em dizer que “português é difícil!” (mesmo falando português desde o berço!!!). As perguntas que ficam são: se esse português é difícil, de que “português” se está falando? Quais processos históricos de distribuição de saberes tornou esse português “difícil”?

Você não ofendeu ninguém, isso é fato (não me sinto ofendido com a falta de (in)formação das pessoas. Sou professor, preciso justamente educar). Mas você reproduziu muita coisa que, se soubesse um pouquinho da dificuldade que temos para lidar com essas questões e tentar revertê-las, nunca teria reproduzido, porque sei que você tem bom-senso. A intenção foi boa, mas, como diz o velho ditado: “De boas intenções, o inferno está cheio”. Gostaria até de alterar a fórmula e a especializar: “De boas intenções sobre a língua, nossos ouvidos (de linguistas) estão cheios (“cheios” no sentido de “fartos”)”, já que todo mundo acha que pode dar opinião sobre o que ensinar e como ensinar quando o assunto é língua (lembra da polêmica do “Livro do MEC” ano passado?).
Seu post é educativo? Depende de quem o lê (sorte sua que a grande maioria dos seus amigos no FB não tem formação na área de Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Materna e, infelizmente, comungam da mesma concepção de gramática que você...).
O FB é livre e se pode publicar o que bem entender? Falou pouco e falou tudo: o que BEM entender. Sinceramente, achei que você entende muito pouco. Tão pouco a ponto de só reproduzir o que toda pessoa “privilegiada” (porque aprendeu a norma padrão...) e intrinsecamente normativa reproduz: “escreva isso e não escreva aquilo”, “fale isso e não fale aquilo”, “faça CERTO e não faça ERRADO”, “seja INTELIGENTE, não seja BURRO”.
Everybody is free? De “free” essa posição que você defende em relação aos usos da língua não tem absolutamente nada: é a mais opressora, a mais batida, a mais etnocêntrica, a mais normativa e normatizadora e a mais alienada de todas.
Também não posso deixar de dizer que tenho a tendência a achar esse tipo de atitude um tanto quanto egoísta, egocêntrica e etnocêntrica: são pessoas que realmente sofrem ao serem obrigadas a lidar com as diferenças; realmente dói quando veem um “mais” aparecer onde DEVERIA POR LEI estar escrito “mas”. O que essas pessoas não entendem (ou fazem questão de não querer entender) é que: 1) o enunciado com “mais” no lugar de “mas” é efetivamente comunicativo (todo mundo que ler vai entender); 2) a pessoa que escreveu não conhece a “norma cristalizada pela gramática normativa”, mas conhece muito bem determinações fonológicas da língua que fala desde criança; 3) e, por não conhecer a norma e conseguir efetivamente se fazer entender, a pessoa está literalmente “cagando e andando” para aquilo que dói nos ouvidos normativos.
Outra coisinha: muito cuidado ao falar em “colaborar com o português dos meus amigos” e “eu tive a oportunidade de aprender bem português”!!! De que português você está falando? Acho que está falando da variedade padrão do português na modalidade escrita... Tanto que corto um braço meu se você também não pronuncia (utilizando a modalidade oral da língua) “mais” ao falar “mas”. Duvido muito mesmo que não o faça!
Mais uma outra coisinha: a questão de adequação é tudo! A gente precisa aprender a variedade padrão somente para alguns gêneros textuais. Por isso mesmo é que você não acentuou boa parte das palavras que escreveu em seu post e em seus comentários (ironicamente, você acentuou “ideia”, um exemplo do tal ditongo aberto das paroxítonas que não precisaria ser acentuado depois do acordo ortográfico). Não as acentuou porque se trata do gênero post e comentário em redes sociais: as condições sociais de emergência e uso do gênero definem a adequação linguística. Lá na sua tese de doutorado, você terá o dever de acentuar tudo, não é mesmo?
Espero ter sido bastante educativo também!

PS: o advérbio “mais” e a conjunção “mas” possuem a mesma pronúncia na modalidade oral da Língua Portuguesa falada no Brasil. A possibilidade de explicação que eu levantaria para esse fenômeno linguístico (o Jiquilin deve ter uma explicação bem melhor, já que ele é foneticista...) é que se trata da “lei do menor esforço”: na pronúncia de “mas”, a passagem do fonema vocálico aberto e central /a/ para o fonema consonantal constritivo fricativo /s/ é bastante dificultosa. Para suprir essa dificuldade de pronúncia (tente pronunciar “mas” ao pé da letra pra ver como é difícil e esquisito!) aparece a semivogal /i/ pra fazer essa ponte entre os sons. Não sou especialista em fonética/fonologia, mas já é uma hipótese que explica um pouquinho mais que uma determinação de regra ortográfica... E, vale lembrar, essa diferença entre “mas” e “mais” só aparece na escrita. É somente uma questão ortográfica, ou seja, ao ensiná-la, não estamos ensino português para os coleguinhas: estamos ensinando ortografia.

PS (2): “não pode-se”: a minha hipótese, como linguista, é que se trata de mais um dos casos corriqueiros do que chamamos “hipercorreção”, ou seja, a correção em excesso. Isso ocorre quando o falante sofre uma grande coerção do aparelho ideológico que a gramática normativa representa. Nesses casos, o falante tende a hipercorrigir seus enunciados, levando ao extremo até as exceções às regras. É o caso, por exemplo, em que se pronuncia “adevogado”, ao se entender que todo /i/ é um “erro” e que deveria ser trocado por /e/. Já que a ênclise é culturalmente, no português, vista como mais “chique” e mais “português” que a próclise, o povo acaba atropelando o fato de que algumas partículas exigem (na norma padrão do português culto na modalidade escrita) a próclise. Só falta aparecer gente falando “orobo” ao invés de “urubu”, já que o /u/ também costuma ser entendido como um “erro” de pronúncia... risos!

Textos de Sírio Possenti que são ótimos sobre essas questões:

Peço, por favor, que leia pelo menos o primeiro!

Jiquilin: Oi, JM,não é nada pessoal contra vc. Não fique bravo com a minha ironia. O que a gente combate é uma ideia, um pensamento e nunca uma pessoa, pq entendemos, como o Jef ja falou, que certas ideias estao condicionadas historicamente. Então é a ideia que combatemos. Eu acho otimo quando estas coisas acontecem pq vejo como uma oportunidade de nós, linguistas, falarmos da nossa área.

Jefferson Voss: Me senti (senti-me???) tentado a publicar só esse trechinho do livro Preconceito Linguístico, do Marcos Bagno, para que vocês fiquem com vontade de ler. Esse é o trecho que mais me arrepia e que aparece logo na introdução:
"Você sabe o que é um igapó? Na Amazônia, igapó é um trecho de mata inundada, uma grande poça de água estagnada às margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem para a gramática normativa. Enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a gramática
normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua. Enquanto a água do rio/língua, por estar em movimento, se renova incessantemente, a água do igapó/gramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia. Meu objetivo atualmente, junto com muitos outros linguistas e pesquisadores, é acelerar ao máximo essa próxima cheia..."
Ai, é maravilhosa essa metáfora!

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Em convite: Laerte, para além do binarismo de gênero






O texto de hoje foi escrito pela minha amiga Bia. 
Bia é uma estudante de Letras e preparou essa reflexão para apresentar como um trabalho para a matéria de Análise do Discurso. 
As fontes são diversas, mas se concentram, sobretudo, nos debates ocorridos no Facebook, em comunidades que discutem gênero.
O texto fala sobre a celeuma que se levantou sobre a interdição de Laerte Coutinho em usar um banheiro feminino. Bia faz uma excelente análise usando-se do instrumental da Análise do Discurso.

***

Apresento a vocês uma análise das repercussões, obtidas através da pesquisa em diversos sites na internet (notícias e blogs - ver no parágrafo seguinte)   e com base em duas entrevistas de televisão com Laerte Coutinho (uma no programa De Frente com Gabi na rede SBT e outra no canal Cultura no programa Roda Viva), do caso em que o cartunista da Folha, Laerte, que se veste como mulher há três anos, foi impedido de usar o banheiro feminino do restaurante Real Pizzaria e Lanchonete, na zona oeste de São Paulo. Foi constatada uma grande divergência de opiniões sobre o acontecimento, deixando os discursos acerca da questão transgênera (que engloba mais comumente pessoas travestis e transexuais e outras identidades não cisgêneras com menos visibilidade social) ainda mais evidente. 
Utilizei para o corpus de análise os seguintes sites:

1) Travestis & transexuais: o feminismo falocêntrico. Por: José Maria e Silva. Disponível aqui;
2) Não, Laerte, você não pode! No que diz respeito ao banheiro, você é um homem, rapaz! Por: Reinaldo Azevedo. Disponível aqui;
3) Caso Laerte - Cartunista da Folha quer o direito de entrar nos banheiros femininos. Por: Tarcício Andrade. Disponível aqui;
4) Banheiros masculino e Feminino. Qual o seu? Por: Junnior. Disponível aqui;
5) O cartunista fantasiado. Por: Luciano Martins. Disponível aqui;
6) Para leitor, Laerte lança o cidadão adepto do crossdressing-voyeur. Por: David Apolinário Neto. Disponível aqui;
7) Para que servem as placas indicativas de gênero na porta dos banheiros? Por: Tatá - Ataulfo Santana. Disponível aqui;
 8) Cartunista Laerte aciona Secretaria da Justiça contra pizzaria que o barrou no banheiro feminino. Por:  Maria Carolina Maia. Disponível aqui;
9) Cartunista que se veste de mulher é proibido de entrar em banheiro feminino. Por: Correio 24hs. Disponível aqui;
10) Cartunista Laerte diz que sempre teve vontade de se vestir de mulher. Por: Ivan Finotti. Disponível aqui;
11) A menina, o banheiro e o marmanjo gay. Por: Robson Oliveira. Disponível aqui;
12) NOTA contra a discriminação de gênero no uso de banheiros (caso Laerte Coutinho). Por: Grupo de advogados pela diversidade sexual. Disponível aqui;
13) HOMENS ou MULHERES. Por: Contardo Calligaris. Disponível aqui

          Para melhor compreensão dos assuntos que cercam esta análise, certas definições são essenciais. O termo cisgênero, como podemos ler aqui, refere-se a pessoas para as quais o sexo e gênero designados ao nascer mais o sentimento interno/subjetivo de sexo e gênero estão “alinhados” ou “deste mesmo lado” – o prefixo cis em latim significa “deste lado” (e não do outro - trans). Portanto, para essas pessoas o gênero que expressam não é socialmente considerado destoante do sexo a qual foram designados, ao contrário do que acontece com as pessoas transgêneras. 
Mainguenau, em seu livro Análise de textos da comunicação (2004), diz que os textos não devem ser estudados exclusivamente pela sua estrutura textual, é preciso levar em conta os gêneros do discurso. Nesta perspectiva, os textos selecionados para o corpus são todos pesquisados pela internet (o canal por onde ele passa), e podemos distinguir dois gêneros mais ou menos distintos: aqueles textos que estão em sites de jornalismo procuram sustentar um caráter mais expositivo, deixando as posições acerca da polêmica um tanto mais ocultas, enquanto aqueles provenientes de blogs não são tímidos em deixá-las explícitas.
        Existem dois posicionamentos ideológicos antagônicos principais: o de aceitar ou não aceitar a presença do cartunista no banheiro feminino; existem, porém, um contínuo entre essas posições que abarca desde o esclarecimento acerca das opressões de gênero, no qual o discurso cissexista é denunciado para que sejam respeitadas as identidades de gênero dos transgêneros, a um discurso intermediário, que não é assumidamente cissexista, porém normatiza as pessoas transgêneras julgando suas identidades de gênero segundo pressupostos cissexistas; até, por fim, o discurso escancaradamente cissexista e transfóbico. Existem também as matérias expositivas nas quais uma pretensa neutralidade é defendida.
              É muito importante o uso do termo cisgênero porque atualmente é utilizado incorretamente o termo mulher/homem biológico para designar pessoas cisgêneras na tentativa de diferenciar pessoas transgêneras. É justamente este olhar que naturaliza a cisgeneridade e por consequência, patologiza e marginaliza a transgeneridade, um exemplo por excelência de cissexismo. Cissexismo, portanto, é um amplo conjunto de ideologias que prega a naturalização da existência de um único tipo de comportamento para uma única morfologia, no que se referem ao sistema de gênero e sexo, ou seja, é a crença de que existiram apenas dois gêneros binários (feminino/masculino e mulher/homem) e que as pessoas designadas coercivamente a um sexo no nascimento teriam que ter o comportamento social esperado para aquele gênero.
             Autores conservadores e reacionários se atêm a essa definição estática e binária de sexo (e o seu correspondente gênero), para isso apelam para um discurso pretensiosamente biológico que não leva em consideração a existência dos intersexos (denominados hermafroditas pelo biopoder – termo criado por Michel Foucault) e a intensa variação biológica de cromossomos sexuais, características sexuais primárias e secundárias e níveis hormonais. Nesta perspectiva, torna-se impossível conceber o aspecto binário de sexo pregado por pressupostos biológicos falaciosos usados para tentar sustentar o discurso cissexista. Parece compreensível fazer a dicotomia entre gênero (que estaria inscrito em uma esfera estritamente social) e sexo (como um fato objetivo e biológico). Entretanto, até mesmo a definição de sexo está intrinsicamente atrelada a fatores sociais, pois são fortemente interpretados e significados através de mecanismos culturais. Ao designar pessoas intersexo como anomalias do desenvolvimento e julgar seus genitais ambíguos e encaminhá-los logo após o nascimento, ainda bebês, e portanto sem nenhuma capacidade de consentimento, a cirurgias mutiladoras que apenas tentam encaixar esteticamente as genitálias dessas pessoas ao um pretenso modelo normal, o discurso do biopoder mostra o quanto ele não é neutro como a ciência insiste em postular. Ao contrário, revela claramente um exemplo de propagação institucional do cissexismo.
        Caso o comportamento cisgênero esperado socialmente não seja seguido, existirão inúmeras opressões a qual o transgênero estará sujeito: terá sua identidade de gênero constantemente julgada, ridicularizada e inferiorizada e o quanto ela mais se afastar dos modelos ciscêntricos (aqueles que usam como modelo características cisgêneras) maior vai ser a sua ininteligibilidade social.
A identidade de gênero do Laerte é um exemplo do quanto ela é extremamente ininteligível, ainda mais ininteligível que a identidade de travestis e transexuais “padrões”. Laerte já se auto intitulou cross-dresser, termo que geralmente designa homens que se vestem como mulher apenas em ocasiões íntimas e que praticam pouca ou nenhuma alteração corporal (visando deixar o corpo com aparência mais feminina). Entretanto, até Laerte admite que essa classificação não é mais adequada a ele, já que se veste de forma feminina durante todo o dia e se apresenta em público como tal. Ele poderia se identificar como uma travesti, entretanto, até mesmo essa classificação é limitada para Laerte, pois designa comumente pessoas com práticas socioculturais e, inclusive, corporais diferentes da dele. A orientação sexual também entra para confundir ainda mais o senso comum: Laerte é bissexual (é esperado que pessoas que performam/com características socialmente vistas como femininas, independente da identidade de gênero da pessoa, gostem de homens, e vice-versa, outro exemplo de cissexismo e heteronormatividade). A falta de um termo para englobar a singularidade de Laerte deixa os autores confusos quando existe a necessidade cissexista de se encaixar corpos e identidades a normas limitadoras.
          Existe um curioso posicionamento discursivo acerca da visão da questão da orientação sexual das pessoas transgêneras e seus parceiros. Os termos homossexuais e heterossexuais são usados de acordo com a visão daquele que as prega: aqueles que acreditam no essencialismo anatômico, que, portanto estão ligados a ideias cissexistas, acreditam que o aspecto definidor da sexualidade são os órgãos genitais. Assim, diriam, a despeito de uma pessoa portar e se identificar com inúmeros símbolos de um gênero, inclusive podendo ser materializado em seu próprio corpo, o que predominará será apenas o que está entre as pernas: desse modo, um (sic) travesti que seja designado com o sexo masculino ao nascimento que se relacione com um homem estará em uma relação homossexual. A outra visão oposta é levar em consideração a identidade de gênero, de modo que no mesmo caso anterior, este não deverá ser designado “o” travesti, senão “a” travesti, pois ela se identifica como mulher, portanto, se tratará de uma relação heterossexual. Outro posicionamento possível é considerar como essas classificações são limitadas, assim uma relação com uma pessoa transgênera que não fez a cirurgia de redesignificação sexual simplesmente não poderá ser classificada por parâmetros cisgêneros. Nessa lógica, aquelas pessoas que se submetem a essa cirurgia terão seus corpos ressignificados à mesma maneira de uma pessoa cisgênera, entretanto, é possível observar que discursos transfóbicos radicais jamais considerarão um transexual, mesmo que operado, um homem ou mulher "de verdade" ao denominar como uma mutilação a cirurgia. 
          Em um dos textos selecionados para o corpus, o psicanalista Contardo Calligaris aborda a questão transgênera devido à repercussão do caso do Laerte. O discurso do psicanalista é um exemplo daquele intermediário, como já referido anteriormente: se baseia em normas classificatórias limitantes e até mesmo cissexistas, mesmo sendo bem intencionado, por saber relativizar a problemática do banheiro e não pretender ser escancaradamente agressivo, seus erros são evidentes. Ele reproduz o discurso médico ao definir os (sic) travestis (de modo a fazer oposição com as transexuais) ao ligar esta identidade de gênero, apenas por não quererem a cirurgia de redesignificação sexual, ao fetichismo (para ele mesmo e para os outros) e fantasias sexuais. Ele fez uma relação não apenas indevida e reducionista da identidade travesti, mas bastante agressiva, pois fica evidente a reprodução do discurso do senso comum de relacionar travestis à prostituição e marginalidade, na qual a identidade feminina e até mesmo humana é desqualificada em oposição as transexuais, que sofrem de um distúrbio legítimo de cuidados médicos por desejarem a cirurgia dos órgãos sexuais e  entrarem um modelo cisgênero mais aceitável. Estas sim são mulheres de “verdade”. Fazer esta relação mostra muito sobre a construção discursiva do autor simplesmente por não relacionar estas características a outras identidades. Afinal de contas, pessoas travestis podem ser tão fetichistas quanto qualquer outra pessoa. Ao menos, no final de seu texto, ele irá relativizar sobre as classificações, assim seu discurso se atenua um pouco: “Na realidade complexa (e confusa) de sexo, gênero e orientação sexual, as categorias que descrevi se misturam e não designam destinos”. 
          A situação fica ainda mais distorcida pois foi de extrema frequência encontrar textos que misturam a questão de identidade de gênero e orientação sexual: Laerte ao invés de ser retratado como cross-dresser, transgênero, travesti ou outro termo que envolva identidade de gênero não cisgênera, foi referido em alguns textos como homossexual, gay, marmanjo homo (mesmo que, de fato, ele não o seja), já que para esses autores, e grande parcela da população, esses termos são intercambiáveis.
Vários textos selecionados para o corpus se focam na questão do quanto a imagem dele é masculina: por gostar de mulheres, por apresentar o nome masculino na maioria das vezes - apesar de possuir uma página no facebook com um perfil com o nome de Sônia -, apresentar uma voz grossa, permitir o uso da flexão de gênero masculina, ter tido uma longa vida de aparente homem cisgênero e não procurar nenhuma alteração corporal até agora são fatores suficientes para vários autores inferiorizarem e limitarem a identidade de gênero ao categorizarem ele como apenas um homem vestido ou fantasiado de mulher e, portanto, não merecedor de frequentar espaços considerados exclusivos femininos e até mesmo de associá-lo a imagem de um (sic) travesti fetichista (ideias fortemente atreladas ao cissexismo). Sua mera presença nos banheiros femininos é uma afronta à intimidade das mulheres, na qual ele estaria, segundo um texto radicalmente transfóbico, esfregando seu falo simbólico e real nos rostos das mulheres. A imagem ambígua, um tanto andrógina e como o próprio Laerte diz “portador de dupla cidadania” são perfeitos para os autores cissexistas jamais considerarem Laerte como uma mulher de verdade. 
          Em contrapartida, textos que defendem o uso do banheiro por transgêneros de acordo com suas identidades, além de argumentarem para a desnaturalização do cissexismo, citaram a existência da lei estadual 10.948/2001 que pune a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. A lei como se configura, possui caráter amplo a respeito do que seriam essas discriminações de forma a não explicitar o uso dos banheiros, mas sob este ponto de vista, o impedimento do uso do banheiro de fato se configura como discriminação.
          O acontecimento que ocorreu com Laerte fizeram repercussões, além da produção de diversos textos (aqui e aqui), o vereador Carlos Apolinário (DEM) em resposta a polêmica que foi gerada, propôs um projeto de lei sobre o terceiro banheiro para as pessoas transgêneras, como será mostrado logo, trata-se de uma proposta não revolucionária, ao contrário, terá um perfil de reacionarismo extremo. Antes, para ilustrar essa situação, vale uma citação de Sírio Possenti (2006):
                              "(..) o conjunto dos textos começa a remeter não só ao próprio acontecimento, mas  também a outros textos e a outros acontecimentos que este levou a rememorar. Dessa maneira, forma-se uma espécie de arquivo, no interior do qual as relações intertextuais e interdiscursivas se desenham, as diversas posições se materializam, as posições vão se repetindo ou se renovando".
A proposta do vereador é claramente segregacionista, ao invés de propor uma alternativa, ele propõe uma obrigatoriedade do uso desse novo banheiro para aqueles que não entram não apenas no padrão cisgênero, mas também no heterossexual. Mais uma vez é observada a confusão entre orientação sexual e identidade de gênero, já que, a partir dos textos coletados, a lei propõe a criação do banheiro para uso de todas as pessoas em especial o público LGBTT.  Sua argumentação torna-se ridícula, apenas ao afirmar que o banheiro não seria permitido a entrada de menores de idade sem a presença de responsáveis, já explicita suas ideologias extremamente conservadoras e preconceituosas. Ao fazer essa declaração, é subentendido que estas pessoas fora do padrão de gênero e orientação estão fora das regras dos bons costumes e que devem, portanto, não influenciar os menores com suas imoralidades. Ele trata os direitos como privilégios, portanto, os gays estão muito folgados: “Os gays no Brasil são muito folgados. Eles querem privilégios, e isso não pode acontecer. Como a sociedade caminha para essa abertura sexual, acho natural criarmos uma opção unissex. O que não é possível é minha mãe entrar em um banheiro e encontrar um homem vestido de mulher” (Fonte).
          Para finalizar a partir de uma citação de uma campanha encontrada pela internet, que acredito sintetizar a intenção desta análise, as autoras Paki Venegas Franco e Julia Pérez Cervera fazem uma reflexão muito interessante - que denuncia o sexismo na língua - para desconstruir o uso da flexão gramatical de gênero masculino como o suposto neutro na língua portuguesa. O cissexismo pode ser entendido como uma forma específica do sexismo convencional, ambos não apenas denominam as opressões, mas a partir da criação destes termos, nós somos impelidos a pensar nas maneiras de criarmos resistência a elas:
                            "A gente ataca os discursos androcêntricos e sexistas fundamentalmente quando há consciência de sua existência e desenvolvendo outros discursos e formas de representação alternativas que as pessoas possam, com o tempo, incorporar a seu próprio método de entender a realidade". 
       Ao ir além do binarismo de gênero, Laerte nos mostra o quanto isto está enraizado em nossa sociedade. É frequente, como tenho visto, até mesmo pessoas trans* estranharem a apresentação e identidade de Laerte,  pois mesmo para alguém transgênero, identificar-se dentro do binário lhe garante um passo a mais para legitimar a sua existência. Alguém que atravessar um gênero a outro terá um grande desafio, mas aquele que ousar destruir os esteriótipos de gênero terá um maior ainda.