quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Em convite: A Performatividade no casamento da etnia Papel da Guiné-Bissau

Quem assina a postagem de hoje é Inaida Pires. Inaida é guineense e imigrou para o Brasil para graduar-se em Letras na Unicamp. Ela já está no seu último período e o texto que aqui leremos é sua monografia.
Durante estes anos no Brasil, Inaida foi uma guerreira: teve não só de enfrentar a saudade de casa, a saudade da sua cultura e de seu povo, mas, sobretudo, teve de lidar com a diferente sociedade brasileira. Por ser mulher, negra e africana, ela encontrou inúmeros obstáculos os quais ela procurou driblar da maneira mais bem humorada possível. Quem conviveu com ela, pode dizer que este texto é fruto de uma superação. É um trofeu que se exibe àqueles que não acreditaram na conquista de Inaida. É  um trofeu para ela mesma, que muitas vezes pensou em desistir.
Quero deixar registrado também os agradecimentos ao Ricardo, que foi um grande amigo e colaborador. 

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Introdução
            Antes de iniciarmos nossa análise consideramos fundamental deixar o leitor ocidental a par do país de que trataremos, a Guiné-Bissau, bem como de alguns de seus costumes e divisões étnicas. A modo de introdução buscaremos fornecer essas informações principais.
            Num segundo momento, abordaremos com um pouco mais de detalhe o ritual de casamento da etnia Papel para, então, na terceira parte desta monografia, apresentar nosso aparato teórico e por fim realizar nossa breve análise.
            Este estudo consiste em confirmar a ideia de Austin (1990) de que "dizer é fazer". Buscaremos interpretar os costumes rituais do matrimônio Papel dentro da perspectiva austiniana, que se constrói em torno do poder que atribui ao ato de dizer. Já que o povo Papel tem uma cultura de tradição fortemente oral, o ponto de vista teórico adotado se faz muito interessante. 

1. Guiné-Bissau       
            A Guiné-Bissau é um pequeno país situado na costa ocidental do continente africano. Faz fronteira ao norte com o Senegal, ao sudeste e a leste com a Guiné Conacri e é banhado pelo oceano Atlântico a oeste e a sudoeste, como podemos ver no mapa abaixo. Segundo Intumbo (2007), a área total do país é de 36.125 km², mas que se reduz a 24.800 km² se descontamos as terras inabitáveis, isto é, aquelas que estão permanentemente inundadas por rios e lagos e aquelas que ficam sazonalmente inundadas pela água da chuva.
Figura 1: Mapa físico da Guiné Bissau
fonte: Google maps
           


Apesar do território tão pequeno, equivalente ao estado brasileiro do Rio de Janeiro, e de uma população relativamente reduzida, um milhão e meio de habitantes, autores como Intumbo (2007) e Pinto (2009), entre outros, descrevem a Guiné-Bissau como um território extremamente diversificado culturalmente, o que se deve à diversidade de etnias.
Em média, a cada 50 ou 60 km, entramos num território linguístico diferente,quer viajemos para o Norte, Sul, Leste ou Oeste. Nota-se uma diferença linguística ecultural entre as regiões, talvez motivada pelas actividades de sustento praticadas pelospovos que as habitam: as etnias do Norte e Sul, maioritariamente animistas, dedicam-se essencialmente à agricultura e normalmente constroem as suashabitações junto àsbolanhas (arrozais); as etnias do leste, predominantemente muçulmanas, praticam apastorícia e o comércio, habitando zonas mais recuadas em relação aos arrozais,geralmente mais desérticas. Assim, se viajarmos de Bissau para a cidade de Mansoa anortedeste, (60 km) passamos pelo território dos papeis (Bissau), dos balantas (vila deNhacra, entre Bissau e Mansoa) e chegamos ao território dos mansoncas (cidade deMansoa); de Gabú a Bafatá no leste temos os fulas apenas e a sua língua numa extensãode mais de 50km (Intumbo, 2007, pp. 2-3)
            A população é composta por cerca de 30 etnias, que têm sua língua própria. A seguir, apresentamos um quadro (apudIntumbo) com as principais línguas e seu número de falantes:

Quadro 1
Línguas
População
Línguas
População
Balanta
254.000
Mansonca
9.000
Fula
169.000
Baiote
5.000
Manjaco
118.000
Banhum
5.000
Mandinga
96.000
Nalu
5.000
Papel
59.000
Sarakolé
2.000
Mancanha
25.000
Sussu
2.000
Biafada
18.000
Kassanga
400
Padjadinca
5.000 – 12.000
Kobiana
300
Bijagó
16.000
Djakanka
-
Diola
15.000
Maninka(?)
-
Mansonca
9.000



            A essas línguas deve-se acrescentar o Kriol, que é falado por praticamente todos os habitantes e é tido como uma língua franca. Além disso, nos registros formais, fala-se o Português, para o qual não há uma estimativa oficial dos números de falantes (Nhanca, 2013).    
            Quanto à religião, Pinto (2009) apresenta a seguinte informação:
Actualmente, pode distinguir-se na realidade da Guiné-Bissau três grupos sociais. Um indígena (africanos animistas), outro de influência árabe (islamizados pelos árabes Almorávidas desde os séculos XII-XIII) e outro de influência europeia (cristianizados). Cerca de 55% serão indígenas, 40% islamizados e 5% cristãos (estes concentrados, quase exclusivamente em Bissau) (p. 31).


1.1 A etnia Papel      
            Sobre a etnia Papel, cultura de que trataremos, deve-se dizer que ela compartilha traços culturais com os Manjacos e os Mancanhas, já que em seu passado configuravam um mesmo grupo étnico. A diferença se deu após a colonização portuguesa que instalou diferenças artificiais e difundiu a crença de que os povos não conformavam uma mesma etnia. Essa foi uma das estratégias da administração colonial para dissuadir os mais revoltosos e que frutificou até os dias atuais. Os Papéis (ou Papeles) estão divididos, de acordo com Pinto (2009), em 7 clãs organizados em regulados.
            De acordo com Moreira (1994), a etnia Papel segue um esquema matrilinear, isto é, a pertença ao clã é herdada da mãe. No entanto, as lideranças são feitas pelos indivíduos do sexo masculino, assim, o indivíduo é incorporado ao clã do tio materno. A hierarquia funciona por senioridade e a figura máxima é o régulo (ou rei), cujo clã Batcha-su é o único dos sete que pode dar origem ao que ocupa essa posição. O aglomerado de casas, que se dá por afinidade de parentesco, se denomina "morança": "é geralmente composto por um patriarca - 'chefe da morança' - suas mulheres e filhos solteiros e casados, podendo agregar três a quatro gerações" (Moreira, 1994, p. 177).
            Sobre a origem do nome, Semedo (2010) traz um relato de uma de suas informantes que assim o explica:
os portugueses pagaram tributo aos régulos papéis até finais do século XIX, altura em que impuseram o pagamento dos impostos de cabeça e de palhota aos nativos. Conta-se que o nome dessa etnia estaria ligado ao relacionamento difícil com o colonizador. Os habitantes da ilha de Bissau, muito rebeldes, nunca quiseram pagar os impostos de palhota e de cabeça impingidos pelos colonizadores e, sempre que recebiam a notificação de pagamento, levavam o “Papel” diretamente à administração, reclamando serem eles os donos do chão e que por isso não deveriam pagar nada. Assim, sempre que os homens apareciam, os brancos exclamavam “aí vêm os homens do Papel”.  Informa ainda Semedo que o nome Papel ficou, e que na língua local esse grupo se autodenomina ussau (o grupo papel da região de Biombo se autodenomina yum). (p. 53).
            Existe também a variação da primeira vogal "a" com "e", resultando na denominação "Pepel".
1.2 Objetivos
            A diversidade cultural proporcionada pelos numerosos grupos étnicos se faz notar também nos diversos costumes e tradições específicos e bem distintos uns dos outros. Alguns desses costumes dizem respeito a momentos que simbolizam a integração do indivíduo na coletividade como, por exemplo, a passagem para a vida adulta, o matrimônio ou o luto.
            Neste trabalho, abordaremos a cerimônia de casamento da etnia Papel, cujo ritual matrimonial
Madrinha dando de comer aos noivos
apresenta elementos extremamente interessantes se considerarmos sua diferença em relação aoritual católico ou cristão de união entre duas pessoas. O casamento Papel possui características próprias de sociedades orais nas quais a linguagem tem um poder maior do que o de qualquer documento escrito.
Ao analisar alguns dos elementos do casamento Papel, notamos que o seu processo de significação poderia ser estudado a partir das reflexões do filósofo inglês John Austin sobre a performatividade da linguagem.
Dessa forma, neste trabalho, pretendemos analisar brevemente uma cerimônia de casamento Papel, identificando e descrevendo os seus elementos performativos e evidenciando o seu processo cultural de significação. 
2. Descrição do Casamento na Etnia Papel
            Entre os vários ritos e cerimônias da etnia Papel, o casamento é um dos mais importantes e valorizados. Fruto direto de uma cultura oral, essa cerimônia possui mais legitimidade entre seu povo do que os casamentos realizados em cartórios e firmados por contratos assinados. Como integrante da etnia Papel, passo agora a relatar em linhas gerais algumas das características dessa cerimônia das quais tenho conhecimento. Este relato também se baseia em uma filmagem pessoal de um casamento familiar e no estudo de Moreira (1994). Conforme comenta Moreira, existe uma lacuna bibliográfica sobre o ritual de casamento da etnia Papel, por isso, seu estudo se baseia em apenas uma ocorrência que a autora teve oportunidade de presenciar. Igualmente é o caso deste trabalho, contamos apenas com o meu conhecimento de integrante nativa e com as experiências de que tenho vivência.
                Embora atualmente na Guiné-Bissau muitas práticas culturais étnicas estejam sendo deixadas de lado (Pinto, 2009), essa cerimônia mantém-se viva entre os integrantes da etnia Papel. Sua preservação é encarada como um ato de respeito aos antepassados, uma continuidade étnica e uma afirmação da existência do próprio grupo e de seus valores.
                Sendo assim, os jovens que ainda se uneme maritalmente por meio dessa cerimônia tradicional reafirmam a existência de seu povo e a sua identidade Papel. Um fato interessante sobre a continuidade e a identidade Papel é que ela se realiza por meio de transmissão materna.
            O seguinte provérbio da língua Kriol exemplifica bem essa concepção, deixando claro que o Papel é filho da barriga, ou seja, da mãe:

Fiju ta padidu tras di si pape, ma i ka tras di si mame
(Filho pode nascer longe do pai, mas não longe da mãe).

            O casamento entre dois jovens Papéis não nasce da vontade dos cônjuges. Na verdade, é um acordo de união firmado entre duas famílias que se concretiza com o casamento entre seus filhos. Esse acordo, por sua vez, é realizado com o intuito de garantir a continuidade da etnia Papel. Nas palavras de Moreira (p. 178):
Ainda recentemente o casamento constituía a forma privilegiada dos grupos de parentesco estabelecerem alianças entre si. Estas eram protagonizadas por indivíduos do sexo masculino com estatuto de senioridade sendo então vulgar que uma rapariga ao nascer estivesse já "prometida" em casamento. A união afetiva dependeria de toda uma série de transferências de bens e serviços do grupo de parentesco do rapaz para o da futura "noiva" que se realizavam até à altura em que esta fosse considerada apta para casar. Isto acontecia a partir da primeira menstruação e desde que o seu corpo apresentasse o desenvolvimento físico esperado.
            Atualmente, os integrantes da etnia lutam para que o governo local reconheça essa cerimônia legítima de união como um ato legalizado de união civil.
2.1. Noivado 
            Geralmente são os pais do rapaz que propõem o casamento aos pais da moça. Caso haja aceitação do pedido, segue-se uma série de ritos que levarão ao casamento e finalizarão com a cerimônia. Algumas vezes a noiva só conhece o seu futuro marido no dia do casamento. Tal fato às vezes gera constrangimento e revolta, já que a noiva pode não se sentir atraída pelo noivo. Na maioria das vezes, a moça é obrigada a casar-se com homens bem mais velhos que ela.
            Com a confirmação do noivado, a noiva passa a ser vigiada não apenas pela sua família e pela família do noivo como também pelos amigos do noivo.
2.2. Dote
            O rapaz deve pagar um dote aos pais da moça pela mão de sua filha. Esse dote consiste em alguns objetos (tecidos, 10 litros de pinga, um porco, um bode e um cachorro) e em trabalho a ser realizado em plantações do pai da noiva. Esse trabalho deve ser feito desde a colheita até o cultivo do produto. Caso o noivo tenha dificuldades na realização da tarefa pode pedir auxílio aos seus amigos.
                Os objetos do dote devem ser entregues no dia das núpcias. Eles são conferidos pelos membros masculinos da família da noiva. Se faltar algum, eles iniciarão um longo discurso com o noivo sobre o fato. Algumas vezes esse discurso dura a noite toda. O objetivo dessa discussão é verificar a intensidade do desejo do noivo em casar-se com a noiva e demonstrar que a obtenção da sua mão é algo difícil. Um fato interessante é que o noivo não pode responder às falas que lhe são endereçadas porque antes da realização do casamento ele não possui direito à palavra. Seus familiares e amigos é que responderão e intercederão por ele.
            Os animais serão sacrificados no local onde ocorrerá o enlace dos noivos. Após o grupo masculino, as mulheres também conferem se o noivo trouxe todos os animais exigidos no dote. Vale ressaltar que,dentre os animais, o cachorro é o mais importante, pois ele é o símbolo da união e, no momento de seu sacrifício, caso ele chore mais de uma vez, isto será interpretado como um indício de maldição ao futuro matrimônio.
            A mãe da noiva ficará com os tecidos. Os tecidos, mais concretamente os chamados panos pentes, têm na cultura guineense um significado prestigioso:
Estes panos são bens de prestigio e símbolos de poder que todas as mulheres procuram possuir, e quando podem, juntam um número elevado desses panos que testemunham o seu prestígio (Carvalho, 1998: 106). São as mulheres que fornecem, quando necessário, panos para os membros masculinos da família. Se o gado é a riqueza do homem, os panos pente são a das mulheres. (...)Uma bideira de etnia papel considerou a compra de panos cerimoniais, como o investimento preferencial dos lucros obtidos no comércio, «porque pano tem grandesignificado na vida da mulher Papel.Isso justifica no momento da morte da mãe, em que a filha mais velha tem de apresentar a mala cheia de pano da sua mãe e a sua própria mala também cheio, e o não cumprimento desse dever significa o grande insulto familiar» (Perpetua, comerciante de peixe) (Domingues, 2000, p. 364-5)

A pinga, por sua vez, será utilizada como um sinal após as núpcias para informar aos familiares e à comunidade se a noiva casou-se virgem. Se a noiva casou-se virgem, o marido sai do quarto de núpcias com uma garrafa cheia de cachaça; se a noiva não era mais virgem no momento do casamento, o marido apresenta uma garrafa contendo apenas metade do líquido e a entrega à mãe da noiva. Esse gesto simboliza que o noivo considera que a mãe não educou bem a sua filha.

2.3.  Casamento
            No dia da cerimônia, o noivo fica inserido em um grupo masculino e a noiva em um grupo feminino. Esses grupos são compostos por integrantes das duas famílias.     Após a conferência do dote pelos homens o noivo é encaminhado ao local no qual se consumará outra parte do ritual. A noiva só será encaminhada até lá se o noivo demonstrar alegria em recebê-la. A noiva, trajando um pano branco ou preto, vai até o local acompanhada pela sua comitiva de mulheres.
                Os homens e as mulheres presentes organizam-se em um círculo no qual encontram-se os noivos.
            Nesse momento, o noivo terá que romper com as mãos uma linha que está presa na cintura da noiva. A ruptura dessa linha, tecida pelas mulheres da comunidade, simboliza a união do casal e de suas famílias.
            Se o homem não conseguir romper a linha de tecidos com as mãos, as mulheres entregam-lhe uma faca. Porém, caso isso ocorra, os presentes dirão ao noivo que ele é um homem fraco e que, provavelmente, não conseguirá cuidar da sua própria família. A intenção dessa provocação é fazer com que o noivo desista do casamento.
            Com o rompimento da linha, a noiva deixa de ser responsabilidade da família dos seus pais e passa a ser responsabilidade do noivo. Nesse momento, o noivo também ganha seu direito à fala e poderá responder a qualquer uma das provocações ou falas que antes lhe haviam sido dirigidas.
            Depois dessa cerimônia, o marido levará sua esposa para a casa na qual os dois viverão. Porém, os dois ainda não poderão dormir juntos. Desde a chegada à casa do marido até às vésperas da noite de núpcias, a mulher dormirá com uma acompanhante.
            No dia seguinte, a mulher terá todo o seu cabelo raspado por um dos amigos do marido. O corte de cabelo simboliza a ligação da mulher com a família de seus pais. O cabelo que nascerá, representa a nova relação familiar que está se iniciando.
Esse rito ocorre no centro da casa (morança). Após a sua realização uma das senhoras da família do marido untará todo o corpo da mulher com óleo de palma (óleo de dendê). Essas ações, o corte de cabelo e a passagem do óleo, devem ser realizadas em total silêncio.
            Quando o marido falecer, a mulher também deverá cortar todo o seu cabelo como um sinal de luto.
            Após a cerimônia do corte do cabelo ocorre uma festa.
noiva envolta no tecido embebido
de óleo de dendê
            A esposa ficará um mês na casa do seu marido. Durante esse tempo, eles não poderão dormir juntos. Transcorrido o tempo de espera junto ao marido, ele passará curtos períodos de tempo na casa de vários de seus familiares.
            É somente quando a esposa retorna para a casa do marido que ocorrem as núpcias do casal. As núpcias são acompanhadas pelas familiares e amigos dos cônjuges.
            Para a etnia Papel, a mulher só se casa uma vez. Caso ela se separe ou o marido faleça, ela sempre continuará ligada a esse esposo. Mesmo se ela tiver filhos com outro homem, estes serão considerados filhos do seu primeiro marido


3. Os atos de fala e o casamento Papel
3.1 Abordagem teórica
            Iremos analisar alguns dos momentos do casamento da etnia Papel para verificar a performatividade dos atos de linguagem presentes na situação. Segundo essa teoria performativa, desenvolvida pelo filósofo inglês John Langshaw Austin (1990), a linguagem não é uma representação de um pensamento ou de um estado de coisas, mas sim uma ação sobre o mundo. Sendo assim, a nossa fala é um ato, que não apenas diz, como também faz.
            Nesse sentido, o autor, assim como já o faziam Frege e Wittgenstein, opõe-se à noção de proferimentoassertivo, rompendo com uma tradição que apenas podia atribuir valores de verdade ou falsidade aos enunciados. Segundo Renato Ferreira (2011), Wittgenstein colabora para o pensamento de Austin na medida em que considera que o significado das palavras não depende apenas delas, mas de todo um contexto em que é articulada. Por outro lado, continua o autor, Frege aprofunda esse pensamento com seus conceitos lógicos. Os proferimentosconstatativos são semelhantes ao performativos de Austin, com a diferença de que “A. nada 'descrevam' nem 'relatem', nem constatem, e nem sejam 'verdadeiros' ou 'falsos'; B. cujo proferimento da sentença é, no todo ou em parte, a realização de uma ação, que não seria normalmente descrita consistindo em dizer algo” (FERREIRA, 1990, p.24). O exemplo clássico usado para ilustrar a impossibilidade de atribuição de valores aos atos performativos é o batizado, em que a declaração do padre é o próprio ato do batismo. Esse ato pode ser infeliz, caso a declaração seja proferida pelo coroinha, por exemplo, mas não falso. Por isso, o filósofo inglês propõe condições de felicidades para os atos performativos:
(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito, que
apresente um determinado efeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que
(A.2) as pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso, devem
ser adequadas ao procedimento específico invocado.
(B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos osparticipantes, de modo correto e
(B.2) completo.
(Γ .1) Nos casos em que, como ocorre com frequência, o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou
visa à instauração de uma conduta correspondente por parte de alguns
dos participantes então aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneiraadequada, e, além disso,
(Γ .2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subsequentemente.
(AUSTIN, 1990, p. 31)
            Os atos performativos ainda se dividem em três tipos: osimples ato de dizer algo é chamado de ato locucionário, e corresponde ao contatativo. Este se opõe ao ato ilocucionário, que consiste na realização deum ato ao dizer algo, mas um dizer que realiza alguma coisa, e corresponde ao performativo. O terceiro, o ato perlocucionário, implica produzir efeitos e consequências de um dizer sobre quem ouve ou quem fala (1990, p.89-90).
Eis o exemplo de Austin (1990, p. 90):
Ato (A) ou Locução
Ele me disse 'Atire nela!' querendo dizer com 'atire' atirar e referindo-se a ela por 'nela'.
Ato (B) ou Ilocução
Ele me instigou (ou aconselhou, ordenou, etc.) a atirar nela.
Ato (C.a) ou Perlocução
Ele me persuadiu a atirar nela
Ato (C.b)
Ele me obrigou a (forçou-me a, etc.) atirar nela.
3.2 Análise do casamento Papel: o papel social do homem
            Passemos agora a entender como esses atos performativos se dão no contexto do casamento dos Papéis.
            No casamento Papel, o noivo só tem direito à fala após a concretização da união, que é simbolizada pelo corte de uma linha que está amarrada na cintura da noiva. Antes disso, o noivo deve permanecer em silêncio e não pode dirigir a palavra a ninguém, mesmo se ele é insultado ou ofendido. Aliás, é comum os parentes da noiva ofenderem e tentarem humilhar o noivo durante a cerimônia, considerando exatamente o fato de que ele não pode responder.
            O casamento Papel é um ritual específico de uma cultura, portanto, as ações e os papéis desempenhados pelas pessoas nesse ritual são socialmente aceitos e estabelecidos. Dessa forma, cada um dos noivos deve exercer o seu papel dentro daquela cerimônia. O silêncio do noivo faz parte desse ritual. Então podemos considerar que o silêncio do noivo não é fruto de uma ação individual, de uma decisão tomada por ele, mas sim uma ação determinada socialmente.
            O fato de o noivo não emitir nenhuma palavra representa o aspecto locucional daquele ato de fala. Pode-se considerar que o aspecto ilocucional é o sentido implícito desse silêncio. Ficar em silêncio naquela situação é um ato, e significa que ele está disposto a enfrentar qualquer coisa para que aquela mulher seja sua esposa.
            Os insultos que os parentes da noiva dirigem ao noivo não são simplesmente insultos. Essas ofensas são atos de fala e ilocucionalmente significam que os parentes duvidam da capacidade do noivo em estabelecer e manter uma família.
            Após o corte da linha, o noivo passa a ter direito à fala e pode, até mesmo, responder aos insultos que lhe haviam sido dirigidos. Porém devemos notar que após o corte da linha o noivo já não é mais noivo, ele passa a exercer o papel de marido - em outras palavras, o corte da linha faz do noivo um marido e, em seu papel de marido, pode e deve se defender de qualquer ofensa que lhe for dirigida.
            Dessa forma, consideramos que no casamento Papel a mesma pessoa acaba ocupando duas posições sociais distintas: a de noivo e a de marido. Em cada uma delas, eles desempenham funções específicas que se materializam na linguagem: pelo silêncio e pela fala.
3.3 Análise do casamento Papel: o papel social da mulher
            Embora a noiva não seja proibida de falar durante a cerimônia de casamento, é durante toda a sua vida que o aspecto perlocucional estará presente. A noiva é obrigada pelo patriarca a casar-se com um noivo desconhecido. Mas essa interpretação só faz sentido se a noiva realmente se sentir obrigada a se casar, caso contrário estaremos diante de um ato ilocucional. A diferença está na comparação dos enunciados: "a tradição me obrigou ao casamento" ou "fui levada ao casamento". Note-se que o simples ato de dizer "vou me casar" é oriundo ou de um ato ilocucionário (que funcionou como um performativo) ou de um ato perlocucionário (tomado apenas como efeito – a noiva foi persuadida ou obrigada).
3.4 A performance ritual
            Alguns momentos do ritual de casamento Papel não são perpassados por um ato de fala específico. A performance se torna ação através de um conhecimento tradicional que dispensa o ato de fala, o ato de dizer determinadas palavras. A seguir vamos retomá-los especificamente.
            Para a noiva, raspar os cabelos, unguentar-se em óleo de palma, dormir 12 noites na esteira e ser alimentada pela acompanhante faz parte de um rito de passagem para uma nova vida ao lado de seu futuro marido. Todos esses símbolos são passados de geração a geração através de uma cultura de oralidade em que o dizer não precisa ser dito, apenas realizado.
       
Os noivos
     Igualmente, a garrafa de pinga carrega seu significado construído através de dizeres ancestrais: a depender da quantidade de líquido, eis o estado virginal da noiva. O sacrifício animal, especialmente o do cão, traz consigo um símbolo de união. O cachorro não pode faltar, sem ele não há união, o canino tampouco pode emitir mais de um choro, com a consequência de representar infortúnio. Todos esses significados dispensam na cerimônia o ato de fala, um dizer formulaico. Da mesma forma também que o dispensam os significados da quantidade de panos pentes ofertadas como sinal de prestígio ou a maciez da pele proporcionada pelo banho de óleo de palma.        
4. Considerações finais
            Neste trabalho, buscamos apresentar parte da cultura da Guiné-Bissau através da cerimônia de casamento da etnia Papel. O objetivo principal foi analisar brevemente alguns aspectos dos atos performativos de Austin (1990) dentro de uma cultura de tradição oral.
            Em vias de comparação, no casamento ocidental, sobretudo nos de origem cristã, o compromisso não se reduz ao “sim” que ambos os noivos devem dizer ao padre ou ao pastor (e ao juiz no casamento civil) – é preciso que a autoridade religiosa ou civil pronuncie as palavras: "Eu vos declaro marido e mulher” – então, embora haja o peso burocrático atribuído ao papel (e à escrita, consequentemente) e seja ele que registre o ato, sem as palavras pronunciadas pelo padre/juiz não há casamento. Nesse sentido, o casamento ocidental é também uma performance. Já no casamento na etnia Papel, por já pertencer a uma cultura de tradição oral, a performance se dá muito menos por meio de uma fórmula feita, como a declaração citada, e não é preciso que haja uma figura que professe esses dizeres; os dizeres já estão corporificados na simbologia da tradição oral.


5. Referências
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DOMINGUES, Maria Manuela Abreu Borges. Estratégias femininas entre as bideiras de Bissau. Tese de doutorado. Universidade Nova de Lisboa, 2000. Disponível em http://www.search.ask.com/web?l=dis&o=100000027&qsrc=2873&gct=sb&q=http++publikationen.ub.uni-frankfurt.de%2F...%2FEstrategiasFemininas_Domingues.pdf Acesso em junho de 2013.

FERREIRA, R. L.A. Teoria dos atos de fala: aspectos semânticos, pragmáticos e normativos. Relatório final de pesquisa PIBIC. PUC-RJ, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/Relatorios/CTCH/FIL/FIL-Renato%20Luiz%20Atanazio%20Ferreira.pdf. Acesso julho de 2013.

INTUMBO, Incanha. Estudo comparativo da morfossintaxe do crioulo guineense, do balanta e do português.2007. 124p. Dissertação (Mestre em Linguística Descritiva). Universidade de Coimbra. Coimbra. 2007. Disponível em: http://www.uc.pt/creolistics/research/guine/intumbo_2007. Acesso julho de 2013.

MOREIRA, M. M. O casamento na etnia Papel da Guiné-Bissau. In: Fórum sociológico, nº 4, p. 175-80. 1994.

NHANCA, N. 2013. Fonética e Fonologia do Crioulo da Guiné-Bissau. Projeto de Iniciação Científica. Campinas, Unicamp, 2013

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