O texto de hoje é assinado pela Bia, é uma reflexão sobre o dia da Visibilidade trans, que é hoje, 29 de Janeiro.
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Quando falamos, ouvimos, lemos, escrevemos as
palavras “homem” ou “mulher”, o que primeiro nos veem a mente? Quando
encontramos esses termos nos jornais, telejornais, revistas, artigos, em programas
de rádio ou em qualquer outro gênero discursivo (os diferentes “tipos” de
textos ou formas de textos) o que eles querem representar? Quais sujeitos essas
palavras referenciam no mundo? Certamente, um homem ou mulher “padrão” (a
primeira imagem que nos veem a cabeça quando nos deparamos com esses termos)
são, respectivamente, aquela pessoa que ao nascer, for designada como homem e
como mulher a partir da identificação da morfologia genital. Então por que
estou falando disso em 29 de janeiro, dia da visibilidade trans*? Porque pra gente entender a visibilidade trans*, precisamos primeiro entender quem são as
pessoas não-trans*, as pessoas cisgêneras.
Você
provavelmente pode estar sentido algum tipo de desconforto (ainda mais se for
uma pessoa cisgênera). Afinal de contas, que história é essa de pessoas que
foram designadas com um gênero ao nascimento e que são cisgêneras? O que é isso
afinal, que estranhamento é esse? As pessoas não simplesmente “nascem” homem ou
mulheres e esse fato depende da existência objetiva de determinado sexo
biológico?
Não
é tão simples assim. Pessoas transgêneras são aquelas cuja identidade atribuída
ao nascimento não condiz com os seus sentimentos subjetivos e identidade de
gênero. Ou seja, uma mulher trans* é aquela entendida socialmente como uma
“pessoa nascida homem que quer virar/ser mulher” (e vice-versa para homens
trans*). O movimento transfeminista, no entanto, irá problematizar a ideia de
que alguém (não apenas pessoas trans*) nasça homem ou mulher. Inclusive irá
apontar para a existência de vivências
que fogem do binário homem-mulher, o que
chamamos de pessoas trans* não binárias. O transfeminismo, influenciado pelas
discussões feministas, dos teóricos de gênero e da teoria queer, irá entender
gênero de forma bastante distinta da usualmente usada pelo senso comum. Como
dito anteriormente, o conceito de gênero/sexo é comumente tido como algo da
ordem do natural, do biológico. Assim, supostamente as pessoas poderiam
afirmar, através de evidências físicas/biológicas, sobre o gênero de alguém. É
então que essa verdade, tão legitimada pela sociedade, é profundamente
questionada, ao apontarmos que existem pessoas beneficiadas por esse sistema e
outras que são marginalizadas.
O
gênero é agora entendido como uma construção social. Isso significa que não
podemos entender o que seja gênero se não concebemos como os conceitos sobre
“feminino” e “masculino” funcionam dentro de uma cultura. Isso significa apontar
para como são acionados esses termos em relações de dominação. O feminismo
historicamente vem denunciando a dominação das mulheres (cisgêneras) através da
misoginia e machismo. Isso significou entender que antes de descrever verdades
objetivas sobre sexo ou gênero, existiam formas de se compreender as mulheres
como inferiores. O transfeminismo, mais recentemente, levando junto todo esse
histórico de luta feminista, visa entender agora como pessoas trans* são oprimidas
pelo próprio conceito de sexo, enquanto produtor de normas cisgêneras, assim
como o feminismo fez e faz enquanto produtor de normas
androcêntricas/misóginas. Como dito anteriormente, o conceito de sexo só
“funciona” perfeitamente para pessoas cisgêneras. Pessoas transgêneras são
vistas como uma exceção desagradável a essa lógica de que exista uma coerência
necessária entre o gênero designado ao nascimento e o gênero efetivamente
performado/identificado. Então, denominamos as práticas e ideias que fazem
das pessoas transgêneras pessoas “erradas”, “falsas”, “doentes” e “abjetas” de
cissexismo.
Agora,
portanto, não faz mais sentido falar em homens ou mulheres que “querem ser”
mulheres ou homens, justamente porque mulheres trans* não são homens e nem
homens trans* são mulheres. O que determina é a auto identificação da pessoa,
como ela entende seu próprio gênero. Isso também significa respeitar as
identidades que vão para além deste binário. Transexuais e travestis podem ser
homens ou mulheres ou um entremeio desses dois conceitos. Não existe forma pré
determinada como uma pessoa trans* - seja travesti, transexual, ou outra
denominação – se identifique. E essa identificação não é necessariamente
estática. Então, não pense que se pode presumir o gênero de alguma pessoa
apenas por critérios físicos/biológicos. Na dúvida, pergunte como a pessoa
gostaria de ser chamada. Isso demonstra que você está disposto a respeitar uma
pessoa trans* e com isso não aumentar o coro com as constantes e infinitas
vozes que insistem em deslegitimar as identidades transgêneras.
Então,
se agora sabemos um pouco sobre quem são as pessoas trans*, e quanto as cis?
Qual é a importância de chamarmos as pessoas cis de cis sendo que elas são as
pessoas “normais”? Simples: só entendemos alguma coisa – para então darmos
“visibilidade” a ela – se soubermos exatamente o que ela não é. Na língua, já diria Saussure, o valor de um signo (ou
palavra, se preferirem) só se dá a partir de relações negativas e diferenciais,
ou seja, algo se define através do que “não é”. Sabemos o que é “homem” porque
ele se opõe a “mulher” então só vamos entender o que vem a ser “trans” se
entendermos o que é “cis”. E chamar uma pessoa de cis de “verdadeira”,
“biológica”, definitivamente não é a mesma coisa de chamarmos ela de cis.
Se
continuarmos a usar esses termos biologizantes para nos referirmos a pessoas
cis, iremos perpetuar uma lógica cruel e transfóbica, afinal de contas, as
pessoas cis vão continuar sendo sempre as primeiras pessoas que nos veem a
mente quando dizemos os termos “homem” e “mulher” e com isso, tornamos pessoas
trans* “não naturais” e, portanto, próximas ao “errado”. Então para pensarmos a
visibilidade trans* temos também que pensar numa espécie de visibilidade e
reconhecimento do termo cisgênero. Assim, iremos cada vez mais tornando menos
automático tomarmos os termos “homem” e “mulher” como necessariamente pessoas
cisgêneras.
exceções à categoria humana (como homens e mulheres e por extensão, humanas). Só teremos o reconhecimento da humanidade destas pessoas quando for cada vez menor a ligação entre esse sujeito padrão e universal com a pessoa cisgênera. Assim, a exotificação (quando vemos pessoas trans* sempre como a exceção à regra do que é considerado “saudável” ou “correto”) anda de mão juntas com a invisibilidade. E a linguagem é uma forma de manutenção dessa relação de poder (que produz visibilidades e invisibilidades) e, portanto, mantenedora de relações de opressão. Quando falarmos sobre “homens” e “mulheres” e não pensarmos mais automaticamente em pessoas cisgêneras é o passo necessário para que compreendamos a existência das pessoas trans* e com isso, a necessidade de se falar sobre a situação das pessoas trans*. É com a linguagem que tornamos possível reconhecer as reivindicações das pessoas, e assim, podermos lutar concretamente contra a transfobia e cissexismo.