quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Reflexões sobre a patologição da infância

Depois de tanto tempo, olha só quem tá aqui??
O texto de hoje é assinado pela Kiô Ramirez


A patologização de comportamentos considerados “anormais” tem se tornado cada vez mais comum, especialmente na idade escolar. Crianças com um ritmo de aprendizado diferente ou com uma deficiência de estímulos das habilidades da linguagem são rotuladas e tem sua identidade marcada por um laudo médico.
Crianças que apresentam dificuldades comuns no processo de letramento, como por exemplo, a troca de “p” por “b” ou ainda que apresentam dificuldades em completar um raciocínio lógico são corriqueiramente diagnosticadas como portadoras de dislexia, o que acarreta na sua exclusão do processo regular de ensino.
Esta exclusão se manifesta das maneiras mais sutis até as mais severas. Além de dar respaldo ao bullying, na maioria das vezes, estas crianças são consideradas menos capazes tanto pelos colegas quanto pelos professores. Ao serem excluídas e tratadas como “café com leite”, na maioria dos casos, estas crianças são alocadas para salas especiais cujos conteúdos são reduzidos. Isto, por sua vez, ocasiona-lhes um enorme déficit de conteúdo e de desenvolvimento.
O comportamento humano é muito mais complexo que um rótulo de TDH, de dislexia ou de hiperatividade. Neste sentido, Martz, Teixeira e Gomes (2015) nos alertam para o determinismo biológico: “Ao mesmo tempo em que o olhar da medicina avança de modo importante ao compreender os mecanismos de funcionamento do corpo, perspectivas histórico-sociais têm apresentado com muito cuidado olhares para o ser humano que nos permitem dizer que há um perigoso risco no determinismo biológico, do reducionismo do ser humano à lógica de seu funcionamento orgânico” (p. 175).
A medicina pode ser muito eficiente em explicar e prever características físicas como a cor dos olhos e a cor da pele, mas não pode determinar, por exemplo, o gênero, já que o gênero, assim como a linguagem são construções sociais, não sendo, portanto, determinadas exclusivamente pelos fatores orgânicos. Nesta perspectiva, até mesmo a corporalidade, a cor da pele e dos olhos têm suas implicações sociais.
Vale ressaltar que a construção das nossas identidades não são processos naturais (Martz, Teixeira e Gomes, p. 177). No processo de construção da identidade estudantil, por exemplo, a identificação do estudante com a identidade de aluno exemplar é tão anti-natural quanto sua identificação como “aluno-problema”. Essas duas categorias são impostas por um sistema de ensino que limita todas as diversas formas de aprender, pois está focado apenas no modelo padrão.
A partir de qual momento da fase escolar uma criança alegre, que brinca com amigos, é interativa se torna um “problema”? Qual o limiar para transformar essa criança saudável em “doente”? Qual a real implicação em medicalizar crianças que, em nome de um padrão de ensino excludente e pouco flexível, recebem um diagnóstico que regula seu comportamento? Seria esta uma tentativa real de incluir essas pessoas no sistema de ensino ou simplesmente uma ferramenta usada para colocar esses indivíduos em uma posição inferiorizada?
A construção da identidade é um processo constante, proteiforme e que depende do contato com o outro. É através desse contato que descobrimos novas formas de ser e de agir. Isso não acontece só com os seres humanos. Diversos estudos mostram que a maioria dos pássaros recém-nascidos não saem da proteção de sua mãe e continuam no ninho até que sua estrutura muscular se desenvolva o suficiente. Enquanto estão no ninho, sendo alimentos pelos pais, os filhotes acabam desenvolvendo uma dependência que precisa ser ultrapassada. Os pais, então, encorajam suas crias e incentivam pequenos avanços. É comum que os filhotes caiam do ninho e não consigam voar de primeira, mas os pais sempre incentivam novas tentativas e mostram que a prática leva a perfeição (Tomasello, 2003).
Assim como aprender a voar não é tão instintivo e nem tão fácil quanto se pareça, o processo de letramento, apesar de estar tão enraizado e naturalizado, tampouco o é. É comum que o processo de aprendizagem não seja tão fluido para todos, dificuldades no meio do caminho são esperadas. Um simples problema comum na aquisição da escrita como a troca de “p” por “b”, por exemplo, não pode ser encarado como um sintoma de alguma patologia, mas sim como uma etapa natural do processo de letramento. Cada indivíduo tem uma habilidade diferente, mas é preciso sempre incentivar novas tentativas e principalmente, não desistir do aluno, pois a capacidade de aprender é comum a nossa espécie, cabe aos educadores mostrar que existem vários caminhos.
A escola tem como objetivo atingir e ensinar a todos através de um sistema de ensino homogêneo, que ensina todos da mesma maneira. O que acaba por desconsiderar as desigualdades sociais, as particularidades que diferenciam e caracterizam cada aluno.
Muitas vezes os alunos se sentem entediados e desinteressados em sala de aula, pois o conteúdo das disciplinas são inacessíveis a linguagem e a visão de mundo do aluno. O professor, nestes casos, não sabe lidar com situações deste tipo e o aluno fica desamparado. É preciso que os educadores estimulem a imaginação e o interesse do aluno trazendo para a sala de aula elementos que não estão presentes no cotidiano escolar.
Neste sentido, a tecnologia pode ser uma grande aliada ao processo de letramento, já que uma grande parte das crianças está habituada ao uso de celulares e crescem mediadas pelo computador seja jogando, desenhando ou simplesmente brincando. A tecnologia pode ser usada para incentivar a leitura e o reconhecimento de sílabas. O AniWorld é um bom exemplo de aplicativo que pode auxiliar no processo de letramento. O aplicativo funciona como um zoológico virtual com dezenas de animais, inclui o que os animais podem e não podem comer, onde vivem e onde dormem. Com mais de 250 imagens é uma ferramenta que distrai enquanto ensina. Esse programa, disponível em Android, incentiva a leitura e o reconhecimento de sílabas.
Quando a criança está na escola e já tem um histórico de dificuldade de aprendizado, o aluno acaba se sentindo obrigado a aprender. Este tom de obrigação dificulta a concentração e, inclusive, pode ser traumático para o aprendiz, já que o método de ensino é homogêneo e a criança não consegue se desenvolver nesse ambiente. A tecnologia a distrai, porque chama a atenção visualmente e força a criança a ter um mínimo de concentração para cumprir pequenos objetivos. Assim ela nem percebe que está aprendendo, tornando o processo menos doloroso.
É preciso entender que a patologização da infância não traz nada de positivo, apenas contribui para a manutenção do preconceito entorno das noções de normalidade, anormalidade e patologia. Os tratamentos propostos a partir de um diagnóstico são baseados na incapacidade do sujeito. Porém não podemos simplesmente acreditar que o sistema de ensino atual é capaz de acolher e ensinar a todos, já que ele tem como ideia a homogeneização do conteúdo. As crianças que não se encaixam nesse sistema devem ter uma atenção especial, não por que são incapazes de aprender ou pensar, mas porque o sistema não está preparado para lidar com pessoas que não seguem os padrões impostos pela sociedade normativa.

Referências bibliográficas:
MARTZ, M. L. W. ; TEIXEIRA, V. R. V. ; GOMES, Jason . Determinismo biológico: a necessidade da desconstrução desse olhar no contexto educacional. Sociedade e Medicalização. 1ed.Campinas: Pontes, 2015, v. 1, p. 175-.

Tomasello, M.Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. (C. Berliner, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1999), 2003