quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Presidenta?

Ultimamente têm-se comentado bastante sobre a forma "presidenta" em língua portuguesa.
O fato me faz pensar em duas coisas: i) muitos se sentem aptos a legislar sobre a língua (mas não são ou não podem) e ii) como a língua se torna algo material, de uma forma que os falantes lidam tranquilamente com a metalinguagem.
O primeiro ponto é algo de muita discussão na Linguística brasileira. Por exemplo, sobre a lei de Aldo Rebelo, aquela que bania os estrangeirismos da língua vernácula, o professor Rajan deixou claro seu ponto de vista. A discussão inclusive se transformou num livro dialógico: "A linguística que nos faz falhar". Recomendo! Neste livro, falou-se muito sobre como os linguistas são ignorados quando o assunto legal envolve a linguagem.
O professor Sírio Possenti também assinala veementemente a postura da maioria dos linguistas quase que semanalmente em sua coluna no Terra Magazine. Sobre o assunto, sugiro a leitura deste seu breve artigo: Não há trabalho mais complicado que o dos linguistas
Em geral, os linguistas costumamos fazer uma comparação com as outras ciências. Para elas a voz do cientista não está afastada da prática de seu campo. De certo modo, podemos dizer, então, que o discurso da verdade científica não respalda a ciência da linguagem.
Isso me leva ao segundo ponto: a lingua(gem), objeto da Linguística, não tem a mesma relação humana que os demais objetos das outras ciências. O senso comum pode muito bem se interessar pela vida, pelos processos físicos e químicos, pelas sociedades e pelo comportamento, mas é através da linguagem que este interesse se manifesta.
Acredito que por esta proximidade (ou melhor: inerência) é que qualquer um se sente apto a desenvolver suas teses sobre a linguagem. Não que o senso comum não deva fazê-lo, pelo contrário! No entanto, quando se fala sobre linguagem o que falta é um rigor científico-metodológico ou até mesmo um teor reflexivo rigoroso. O senso comum e muitos dos intelectuais não formados na área medem a linguagem por um viés normativo e, às vezes, moralista.
O que falta a estes sujeitos é o distanciamento de suas crenças, normas, moral, e de certa maneira, daquilo que está por trás de todas elas, as suas ideologias.
Abrir mão da ideologia pode ser algo impossível para alguns, já que é ela produto da educação linguística, dos construtos sociais de entorno e de suas crenças, inclusive, das religiosas.
Então entramos num daqueles famosos ciclos viciosos: a nova sociedade, depois de transmitida sua identidade aos mais jovens, novamente se sente apta a decidir o que se fazer com sua língua.
Mandar e desmandar em uma língua é tão cultural quanto a religião católica na América Latina, quanto ao carnaval brasileiro, quanto ao amor que sentem os sulistas pela carne.
Mandar e desmandar na língua também tem relação com o poder. 
Mas assim como a religião católica não existia na América Latina antes da colonização, assim como o carnaval não existia antes do catolicismo e o amor pela carne dos gaúchos não existia antes dos bois na região, os linguistas ainda estamos buscando nosso lugar ao sol. Já que a transmissão de saberes não é completamente passiva tampouco é linear.
Resta-nos lutar contra (ou aliar-nos) àqueles que detêm o poder e, por consequência, detêm o poder linguístico.
Estas são as entraves que a Linguística enfrenta depois de quase um século de sua constituição como ciência: quase ninguém sabe que nós, os linguistas, existimos.
Entre o senso comum, entre aqueles que detêm o poder e entre os linguistas existe uma gama enorme de teorias sobre as línguas. Contudo, são estas controvérsias que fazem com que, maior ou menormente, a ciência avance e a Linguística aos poucos vá mostrando sua cara (e sua “utilidade”).
Voltemos ao caso da ocorrência da palavra "Presidenta" em língua portuguesa para que possamos ilustrar como há muita controvérsia em língua.
Se fóssemos às ruas e perguntássemos o que pensa a população sobre a forma "presidenta", escutaríamos muito frequentemente um "não sei" ou "eu não sei português" ou "eu não sei gramática" ou ainda "tenho que ver no dicionário". E aqueles que respondessem afirmando que "presidenta" existe ou não existe, estaria embasando sua resposta no conhecimento que têm da gramática normativa (ou no dicionário). É que o conhecimento metalinguístico dos falantes está quase que reduzido a esta gramática e ao dicionário. 
O Houaiss e o Aurélio registram ambas as formas, o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras também aceita as duas ocorrências.
Até o professor Pasquale não enguiça com o uso de “presidenta”. Claro, já que quase todas as gramáticas normativas admitem. O que ele faz é dizer que “presidenta” é uma forma desnecessária e incomum. Veja você mesmo: aqui.
Mas todas as gramáticas normativas estão de acordo? Nem todas: a controvérsia também visita a norma: por que se deve aceitar o feminino de presidente? Desde quando se aceita o acréscimo do morfema feminino em "ent-"? Porém, depois de o fato de Dilma se eleger, acredito que todas as gramáticas entrarão em acordo.
O máximo do triunfo de uma mudança linguística é quando ela consegue figurar numa gramática de normas. A eleição de Dilma pelo menos já conquistou essa mudança!
Passemos ao jornalismo, já que é ele que faz (ou tenta fazer) a mediação, usando-se da linguagem (e da norma), entre a ciência e o senso comum.
Uma notícia saída na Folha on-line (24/04/2010) leva o seguinte título:

Dilma copia ex-presidente chilena e quer se lançar candidata a "presidenta"

Não sei se se trata de uma cópia, afinal o espanhol é outra língua! Mas adiante comentarei essas semelhanças e diferenças entre o espanhol e o português.
Logo no segundo parágrafo o repórter alega:
“As palavras 'presidente' e 'presidenta' estão corretas, 'mas a forma feminina é pouco usada'", diz Thaís Nicoleti, consultora de português do Grupo Folha-UOL”.
Com este trecho fica claro como os jornalistas também têm uma visão normativa sobre a linguagem.
Correção passa pela norma e é disso que o jornalista está tratando. E é esta correção o que unicamente importa de modo que aqui fica claríssimo que também o repórter confunde gramática (normativa) com a língua em si.
O alvoroço todo se faz em torno do suposto erro, já que se trata de uma forma rara na norma.
Agora vamos observar a “opinião” dos linguistas. Sim, falo de opinião, porque em ocorrências sociais como uma eleição presidencial, muitos linguistas deixam de lado seu rigor científico e usam de seu prestígio ou destreza argumentativa, enfim, sua também ideologia para propagar as suas crenças.
Nesta mesma reportagem se diz: “Maria Helena de Moura Neves, professora do Mackenzie e da Unesp, concorda que não é necessário usar "presidenta"".
Neste trecho não fica claro o que diz a linguista. O simples verbo “concorda” leva a entender que a opinião é mais do jornalista que da linguista. O linguista não julgaria a necessidade do uso, constataria e analisaria essa necessidade. Aliás, é o que o resto do parágrafo faz ao trazer o trecho realmente enunciado pela profissional da linguagem: “mas diz que, do ponto de vista da campanha, ‘faz sentido, porque valoriza o fato de o PT estar lançando uma mulher à Presidência’”.
Se faz sentido para valorizar a presença feminina, logo o uso é necessário.
Neste caso, mais uma vez a norma, aquela admirada pelo jornalismo, falou mais alto.
Outra especialista evocada, que duvido ser linguista, é apresentada ainda na notícia “Também da UnB, Susana Moreira de Lima diz que ‘o correto é usar 'presidenta', pois é a palavra registrada para designar a mulher que preside’: ‘A discussão é saudável, porque traz a questão do machismo na linguagem’".
De novo norma e correção funcionando como lentes para a análise.
O assunto deu o que falar e muita coisa se publicou na imprensa sobre o tema.
Esperei a coluna do Possenti, mas ele me disse que se tratava de um assunto tão banal que não valia a pena gastar as velas com um defunto barato.
Mesmo assim acabei encontrando um de seus artigos intitulado "Gênero?" em que ele discute o discurso do politicamente correto, quando se enuncia “amigos e amigas”.
O que une o uso de “Presidenta” e as formas politicamente corretas de “fulano e fulana” é, de fato, a questão do machismo linguístico. Mas não é essa a conclusão mais imediata a que chega Possenti.
O professor apresenta a tese de Martin, com a qual concorda. Com muita destreza Martin argumenta que o morfema “–o” não representaria o masculino.
É pela sintaxe que ele chega a esta conclusão.
Frases como “Pedro é alto” e “Maria é alta”, em oposição às agramaticais “Pedro é alta” e “Maria é alto”, geram uma primeira regra:
1)      O predicativo concorda com o sujeito
No entanto, há outros dados na língua:
i)                    “Está cheio de meninos na praia”;
ii)                   “Está cheio de laranja na geladeira”;
iii)                 “Aqui é bom”;
iv)                 “Tomar uma cerveja seria ótimo”.
Todas as palavras em negrito e grifadas estão no masculino (notem que o feminino tornaria as frases agramaticais). E, então, por que aparece o masculino, com o que eles concordam? Nas três primeiras sentenças não há um sujeito para se concordar e, na quarta, "ótimo" estaria relacionado com uma oração “tomar uma cerveja”.
O argumento dos gerativistas é de que seria estranho se houvesse a concordância de feminino com feminino, por um lado, e de masculino com masculino, com nada e com orações, por outro.
Orações ou a ausência do sujeito, naturalmente, não possuiriam o gênero. Isso os levou a pensar que, citando Possenti, “o que estamos acostumados a chamar de masculino na verdade não passa de um caso de ausência de gênero (ou de não feminino)”. E a regra de concordância esboçada em 1 deveria ser modificada para:
2)      “A concordância só ocorre quando o elemento a ser flexionado se liga ao feminino. Nos outros casos, a palavra que sofreria concordância fica como está”.
Ora, até aqui acordo em partes. Acho interessante que as regras sejam mais parcimoniosas. Porém, não estou de acordo com a seguinte ideia:

“... a forma básica dos nomes (e dos adjetivos) é não marcada quanto ao gênero. Assim, ‘menino’, ‘sapato’ etc. não seriam formas masculinas, mas apenas não femininas, isto é, não marcadas quanto ao gênero. O ‘o’ final não é uma desinência de masculino, mas uma espécie de vogal temática, cuja função é apenas classificar palavras, como no caso dos verbos. Observe-se que algumas palavras têm vogal temática ‘e’, como ‘valente’, e não se flexionam quanto ao gênero”.

a)      Não acho que a forma básica dos nomes seja não marcada. Pelo contrário, ela é marcada e historicamente ela é cada dia mais marcada. Caso contrário, em muitos discursos não ouviríamos “companheiros e companheiras”. Tampouco os grupos minoritários como o de homossexuais não apagariam essas designações que ao longo de tanto tempo vem servindo para categorizar “homens” e “mulheres”, o “macho” ou a “fêmea” etc.
No latim clássico, o gênero não estava marcado de forma simples. Além do gênero, os morfemas nominais marcavam o caso, o número e a declinação. Por exemplo, considerando o nominativo singular, o “-a” geralmente servia para classificar as palavras femininas da primeira declinação. No entanto, palavras como “poeta”, que eram masculinas, pertenciam a esta primeira declinação. O “-a” também caracterizava muitas palavras do gênero neutro, o qual não aparecia nas primeiras declinações. O masculino, via de regra, era marcado pela vogal “u”, e ocorria na segunda, quarta e quinta declinações. Muitas palavras latinas, por outro lado, eram completamente arbitrárias quanto ao gênero, não havia uma vogal que pudesse claramente defini-las como neutras, femininas ou masculinas. Apenas o conhecimento do falante poderia atribuir-lhe o gênero (ex: dei- “Deus”). O português se desfez do gênero neutro e categorizou todos os seus nomes em masculinos ou femininos. Geralmente o morfema “-a” serve para designar o feminino e o morfema “-o” o masculino. Quando não é assim, o gênero pode ser identificado pelo artigo: “o poeta”, “o creme”, “o dente”, “a personagem”, “o tubarão”. Ou ainda, por palavras que já se tornaram consagradas para um dos gêneros “leão”, “boi” etc. e que geralmente aceitam o artigo “o” para designar o masculino (o leão, o boi) ou o artigo “a” para designar o feminino (a atriz). Através do surgimento do artigo e da eliminação do neutro, o português conseguiu deixar ainda mais forte o contraste entre os gêneros.

b)     Ainda nesta citação, questiono:

        "Assim, ‘menino’, ‘sapato’ etc. não seriam formas masculinas, mas apenas não femininas, isto é, não marcadas quanto ao gênero”
Como que não seriam formas masculinas? Juro que quando meu primo nasceu, quando o médico disse que era um menino, ninguém pensou que se tratava de um andrógeno.
É que o gênero morfológico está intimamente relacionado com o gênero biológico. E sempre em língua portuguesa o gênero biológico masculino foi reconhecido pela marca do morfema “-o” e o feminino pelo “-a”. E é essa justamente a briga da comunidade LGBT, que questiona a sexualidade para além do gênero biológico.

c)    E:
   
    “O ‘o’ final não é uma desinência de masculino, mas uma espécie de vogal temática, cuja função é apenas classificar palavras, como no caso dos verbos”.
Essa é uma antiga ideia do Mattoso Camara que faz muito sentido para o contexto estruturalista em que nasceu. O estruturalismo precisava classificar a língua pela língua, mas hoje já não fazemos somente isso, já que sabemos que língua vai além de seu núcleo duro. A vogal ‘o’ pode muito bem funcionar como vogal temática, que classifica os nomes, mas ela TAMBÉM, pelo menos na Pragmática, serve para designar o masculino.

d)     E também:
       
     "Observe-se que algumas palavras têm vogal temática ‘e’, como ‘valente’, e não se flexionam quanto ao gênero”.
Eis o ponto fundamental da discussão.
É que gênero, neste caso, aparece além da palavra: “o valente”, “a valentona”, “o cara valente”, “a mulher valente”. Nestas orações, realmente não houve nenhuma mudança morfológica no nome “valente”. Contudo, o gênero estava marcado de uma outra forma morfológica: no artigo!
E atualmente a coisa é ainda mais grave, até as palavras com vogal temática “e” se flexionam, sim, quanto ao gênero. Não é mesmo, presidenta?

Para mim, não é que o “o” represente uma forma sem gênero. Pelo contrário, demonstra como o machismo foi se impondo também na língua. Em orações sem sujeito como “Está cheio de meninas na praia” ou nas impessoais, como “Faz frio”, o masculino ocorre porque coube ao masculino concordar com esse tipo de orações.
São duas características importantes que não devemos ignorar: 1) a língua portuguesa faz concordâncias (veja o caso de “Maria é alta”); 2) a língua portuguesa não tem o gênero neutro: todos os nomes (e suas partículas satélites) ou são masculinos ou são femininos.
Dessas duas premissas, quando a concordância tem de ser feita com algo que não é um nome (orações ou ausência de sujeitos), o masculino impera.
O masculino sempre foi o gênero mais importante em português e não seria de estranhar que a concordância se desse com ele! E se tivéssemos de substantivar uma oração, qual seria o gênero do artigo usado na construção? Adivinhem!
“O navegar é preciso foi repetido constantemente na história lusa”
Para substantivar também usamos o masculino.
Para generalizar também usamos o masculino.
Sírio diz: “as palavras ditas masculinas não são marcadas. Por isso é que podemos dizer que ‘ o circo tem dez leões’, mesmo que tenha cinco leões e cinco leoas, mas não podemos dizer, no mesmo caso que ele tem dez leoas”.
Oras, pode-se dizer o que se quer. Mas não é disso que se trata. É que, simplesmente, o masculino ganhou esse poder de generalização e é assim que o aluno aprende na escola.
As formas masculinas são historicamente marcadas!
E essa história morfológica do português também é muito parecida com a do espanhol. Mas no caso deles, é muito pior, porque a RAE (Real Academia Española) proíbe ainda da norma muitas formas femininas.
Muitas profissões são usadas na forma masculina: “el médico”, “el ingienero”. E outras somente no feminino: “La empleada doméstica”.
Mesmo que a população de muitos países hispano-falantes use o gênero morfológico de acordo com o gênero biológico do profissional, a RAE veda da norma essa concordância. (Se bem que nos últimos anos a RAE tem se aberto mais a este tipo de mudança). 
É claro que estamos diante de outro caso em que o masculino prevaleceu. E note-se que se trata de profissões canonicamente exercidas por homens. 
Lembro-me de que uma vez uma deputada espanhola usou a palavra “miembra” em um de seus discursos políticos e a imprensa transformou-a em alvo de chacota. Veja você mesmo a polêmica.
Por isso também é complicado dizer que “Dilma copiou a ex-presidente chilena”. Estamos diante de casos em que o nível de machismo linguístico é um tanto quanto diferente.
Enquanto o senso comum ainda vê a questão por um ponto de vista normativista, enquanto os gerativistas preferem deixar a cultura de lado e fingir que o masculino não existe em português, não enxergamos o que é nítido: o masculino sempre vai prevalecer.
Será que podemos legislar sobre a língua? Será que podemos desencadear uma mudança linguística repentina?
Confesso que mesmo sendo linguista, eu não tenho esse poder (até porque, como dizia, os linguistas não têm muito valor social). E garanto que você também sozinho não pode fazer nada. Mas, e juntos? Mas, e no decorrer do tempo?
Não sei, os fatos estão sendo construídos. Temos uma mulher eleita. Temos grupos feministas discutindo sobre a língua. Há grupos minoritários banindo o sexismo de seus jargões.
Qual a força de expressão desses fatos? Qual será a repercussão na linguagem? Ainda é cedo para avaliar! Certo é que a eleição de uma presidenta é muito mais relevante que a luta de movimentos sociais. Ela tem o poder, os movimentos não.
Mas é interessante notar como a linguagem vai se materializando, a metalinguagem vai acontecendo de forma saudável no senso comum.
Espero que com estas palavras fique claro qual é também a minha ideologia. E que fique claro que não se trata de uma ideologia espúria!