quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Notas sobre a intolerância

No semestre passado, cursei uma disciplina na Unicamp chamada “Formação do professor de língua”. Naquele semestre havia ocorrido o asqueroso Massacre do Realengo e, naquela mesma época, havia acontecido um caso de homofobia dirigido a um jogador de vôlei. A professora, deste modo, sugeriu que a turma discutisse sobre os temas, que além de envolver a sociedade, vem dizer muito sobre a sala de aula.
A discussão foi brilhante e resolvi escrever um relatório sobre este dia.
Ofereço-o a vocês:


Iniciamos a aula com uma discussão sobre o Massacre do Realengo.  Poderíamos considerar a tragédia como um fato sabido por todos os cidadãos brasileiros, mas tão somente principiamos a atividade e uma das colegas de sala relatou que no colégio onde ela trabalha seus alunos ainda não haviam tomado conhecimento do acontecido.
No dia 7 de abril do presente ano, Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, entrou numa escola pública do Rio de Janeiro, a Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro do Realengo, e cometeu um crime que abalou o sentimento coletivo. Munido de dois revólveres, o atirador investiu contra os alunos presentes. O resultado foi um massacre: 12 mortos, a maioria atingido na cabeça, e uma quantidade semelhante de feridos. Dentre os mortos, 10 meninas e dois meninos.
As repercussões foram das mais imediatas, graças ao poder de difusão da mídia. Antes de entrar no mérito da questão, devemos comentar dois pontos já suscitados, os quais têm bastante relação entre si:
1)     A repercussão midiática
2)     A alienação das elites
Coincidentemente, sete de abril, data do crime, era também o dia do jornalista. A empreitada, entretanto, fora contemplada com o pior tipo de jornalismo: o sensacionalista. O interlocutor, neste dia, foi interpelado por uma boa dose de desinformações, informações inverossímeis, prantos, dor e desespero. Pouco se discutiu, na ocasião, sobre os problemas sociais culminados neste ato de violência.
A posteriori, a discussão foi, timidamente, feita pelos blogs e pelas redes sociais. A mídia, igualmente no caso de Columbine, prestou apenas um desserviço ao público. Aproveitou-se de momentos sociais críticos para ganhar Ibope ou vender jornais e revistas. Mais tarde esta mesma imprensa tentou explicar o fenômeno, porém, uma vez mais o fez de maneira equivocada: ora dando voz a especialistas para imputar culpa apenas ao criminoso, ora para mostrar as lágrimas e indignações da classe média. No máximo, debateram sobre o bullying.
E por falar em classe média, devemos retomar o diagnóstico feito por nossa colega de sala: seus alunos desconheciam a notícia. Foi o que nos comentou uma companheira de sala, que trabalha como monitora na área de linguagem para um colégio de elite da região de Campinas. Um dia após o crime, ela havia preparado um debate a ser feito com os alunos que procurassem seu plantão. Contudo, para que isto fosse possível, ela teve de previamente informar-lhes sobre o massacre. O que nos chamou a atenção não foi o fato de que os alunos não conhecessem seu entorno imediato, senão a ideia de que nenhum professor oficial (nossa colega não é professora mas monitora) houvesse sequer tangenciado a questão.
Se por um lado a mídia não propôs uma análise legítima do problema social, a escola de elite preferiu fingir que crimes hediondos, que talvez para eles podem ser considerados delitos da classe baixa, pouco lhes dizem respeito. 
Um episódio crônico destes, sucedido em uma escola, por mais chocante que seja, não deve ser deixado de fora dos âmbitos de reflexão e formação. Portanto, é repugnante que sejam completamente ignorados. Imbuídos neste espírito, e por também estarmos cerceados pelo ambiente formador, é que passamos a relatar nossa reflexão sobre o massacre do Realengo.
***
Em julho do ano passado uma travesti, Camille Gerin, 25, foi violentamente assassinada nas ruas do bairro Bonfim de Campinas. Morta a pauladas, Gerin teve o rosto completamente desfigurado. O assassino foi pego em flagrante ao tentar se desfazer do corpo da vítima, o qual seria jogado em uma valeta. Uma viatura da polícia fazia a ronda pelo local. Os policiais prenderam Roberto Rubens de Macedo, 25, que tentou fugir, e puderam prestar socorros à vítima ainda com vida. Entretanto, Gerin não resistiu aos ferimentos e teve a morte cerebral confirmada três dias depois no hospital Mario Gatti na mesma cidade.
Este breve relato serve para ilustrar o mesmo cunho social de crimes de ódio como o do massacre do Realengo.
Crimes de ódio são aqueles cometidos contra as minorias (de raça, gênero, religião etc). E por que o massacre do Realengo seria um crime de ódio?
Lola, em seu brilhante post, argumentou pela hipótese de misoginia: o número de mortas foi muito maior que o número de mortos. Na sequência ela faz uma comparação com outros crimes de ódio cometidos no EUA. Um exemplo que ela traz é o caso de George Sodini, um assassino que, em agosto de 2009, entrou numa academia de aeróbica e dizimou o publico feminino presente. Outro caso é o de um psicopata que invadiu uma escola rural, em 2006, na Pensilvânia, e separou os meninos das meninas e em seguida desferiu tiros contra elas.
Nenhum desses casos, inclusive, o nosso, foi classificado pela mídia ou pela sociedade, (ou melhor: pelos espaços de discussão coletivo) como um crime de ódio. Isso porque o machismo é tão naturalizado e a violência contra a mulher (e o feminino) é vista como comum que a torna, de certo modo, esperada.
Sabemos que todos esses criminosos têm um potencial psicótico, o qual se manifestou nas ocasiões relatadas. É claro que se trata de um problema do sujeito, mas como as relações se dão num nicho interativo, o problema também é social.
Nesse sentido, acreditamos que as questões relevantes, enquanto cidadãos e educadores, deveriam ser:
O QUE EU TENHO A VER COM ISSO? O que nós temos a ver com isso? O que a sociedade tem a ver com isso?
Ao tentar responder essas perguntas, e trazendo-as para dentro da sala de aula, não apenas estaremos encontrando nossa parcela de culpa, como também estaremos engajando nossos alunos para o despertar de um discurso ao qual ele já se assujeitou. Fica fácil, assim, mostrar as contradições do choque diante de uma brutal violência e o prazer que um aluno sente ao cometer o bullying com seu parceiro. No primeiro caso, é demais para a sensibilidade daquele, enquanto que no segundo, a diversão a partir do sofrimento alheio é mais evidente. A raiz do problema é a mesma: a violência, a intolerância.
Mas por que num caso o aluno/o professor é sensível a isso e no segundo, muitas vezez, não? Porque cada um de nós quando repetimos expressões machistas e opressoras não percebemos que estamos sendo uma força que se soma a violência. Não percebemos a formação ideológico-discursiva que nos perpassa.
Tanto é assim, que as dezenas de torcedores do Sada Cruzeiro desterraram, mais uma vez, a violência verbal, de teor homofóbico contra o jogador do vôlei Futuro, Michael, homossexual assumido.
Este épisodio, que foi a segunda reflexão realizada na aula do dia 13/04, serviu para ilustrar novamente outro crime de ódio.
Na ocasião das aulas, o Vôlei Futuro e o Sada Cruzeiro haviam disputado duas partidas da Superliga. Poucos dos alunos presentes conheciam o fato. Por isso, a professora dividiu a sala entre os que sabiam do problema e aqueles que o ignoravam. Ela relatou então que, na primeira partida entre a equipe de Araçatuba (SP), o Vôlei Futuro, e a de Contagem (MG), o Sada Cruzeiro, realizada na casa do segundo, houve uma manifestação homofóbica da torcida. Todas as vezes que a bola caia nas mãos do jogador Michael Pinto dos Santos, 27, a torcida do Cruzeiro levantava uma onda de insultos do tipo: “bixa”, “gay”. Como resultado, o jogador foi substituído e a equipe perdeu a partida.
A segunda partida, com cunho de revanche, fora realizada na casa do time injuriado. Aproveitando-se do fato de que muitos alunos não haviam assistido ao torneio, a professora perguntou a eles o que poderia ter ocorrido nesta nova disputa. Depois de longa discussão em torno da violência nos estádios e sobre a homofobia, soubemos que a equipe de Araçatuba houvera entrado em campo, para o aquecimento, trajando camisetas rosas, ataduras rosas, camisetas com o arco-íris e a torcida portava artefatos igualmente rosas, bandeiras com manifestações de intolerância contra a homofobia.
Nossas reflexões quanto a esse episódio giram em torno de alguns eixos:
i) Achamos importante que o Vôlei Futuro não tenha ignorado a injúria, desse modo, foi possível dar visibilidade a uma questão séria do preconceito contra os homossexuais.
ii) Fazemos uma ressalva quanto à simbologia utilizada pela equipe. A cor rosa presente nos materiais de protesto pode ser uma maneira politicamente incorreta, ou equivocada, de representar os gays e combater a homofobia. Entendemos que o símbolo a que o rosa representa é fortemente entendido por todos e por isso a mensagem contra a homofobia pode ser mais clara. No entanto, há uma questão histórico-ideológica mais forte por traz desse símbolo. O rosa se associa ao feminino e ao mesclá-lo a um elemento masculino, acredita-se caracterizar os gays (trata-se de uma questão histórica, os gays nos campos de concentração, durante o nazismo, eram identificados pelo triângulo rosa, p. ex.). Acreditamos ser um equívoco tanto porque a sexualidade é muito mais complexa do que aquela que meramente gira em torno de dois gêneros (ou masculino ou feminino), quanto por vincular a questão do feminino à fêmea e ao frágil.  Portanto, não aprovamos totalmente a metodologia do protesto.
            Os dois ocorridos, o massacre do Realengo e a inventiva contra gays, podem comumente fazer-nos retornar a questão já anunciada. O que eu tenho a ver com isso? Com já dito, não se trata apenas de buscar uma parcela da culpa, senão de entender que se trata de toda uma construção social da qual participamos. A culpa da violência não é do sujeito, como poderia prever as teses inatistas, tampouco se trata de uma culpa exclusiva do outro, como poderia prever o behaviorismo. O construto interativo-social perpassa por ambas as questões e diz que o preconceito é construído e mantido nesse movimento.