sexta-feira, 11 de novembro de 2011

PM contra o movimento estudantil

 
 
Sobre o caso da USP, isto é, a ocupação dos estudantes e a invasão da polícia no campus (e notem que usei “ocupar” para os alunos e “invadir” para os policiais, de modo que já declaro minha posição), escrevi um mote e, em seguida, meus amigos continuaram num interessante debate.
Replico a discussão para vocês. Mantive o anonimato das partes, já que pretendo dar destaque as idéias, sem causar exposição da figura de ninguém.
 
 
Mote
"Sou contra a ocupação dos alunos na reitoria". "Sou a favor da PM no campus". É tão fácil ter um posicionamento, e ser coerente com ele, quando não é você que vai a luta. É muito fácil para vc que é um alienado e nunca teve de se posicionar em outros assuntos além dos velhos temas: tradição, família e propriedade!
 
Debate
Envolvidos:
MA
TC
BM
DR
CN
Jiquilin

MA: O pior, Diego, é que nem coerência esse tipo de gente tem, sabe por quê? Porque eles são os primeiros a se inflarem em discursos contra a "repressão" quando jornalistazinho leva bala no morro fazendo matéria sensacionalista, reivindicando a "...liberdade de expressão". Mas não são capazes de perceberem a manipulação por trás da perseguição às poucas cabeças pensantes que ainda existem nesse país, o que é, isso sim, um grande ataque à democracia!

TC: A situação é simples: a lei é para todos e não vejo porque esses "únicos seres pensantes e isentos de alienação" da face da Terra devem ter tratamento diferenciado. Simples assim. Sem falar que a destruição que eles causaram será consertada com o meu dinheiro.

MA: Seu dinheiro?? Pode apostar que se não fosse por esses "únicos seres pensantes e isentos de alienação", o SEU dinheiro já teria ido todo pro ralo há tempos. Aliás, se existe preocupação com o uso do dinheiro público, que é de TODOS e não só seu, essa preocupação deveria estar voltada para o modo como esse dinheiro está sendo gasto em processos obscuros de financiamento de bolsas, em desvios para campanhas políticas, superfaturamentos, incentivos fiscais, obras faraônicas para o circo da Copa do Mundo (enquanto para a Educação só 4,5 do PIB)... e não com a "depredação" de prédios velhos já há muito depredados.. isso aí é ninharia perto do buraco negro pra onde o "SEU" dinheiro vai todos os dias, sem você perceber, porque pra isso não tem TV nem jornal nenhum pra mostrar!
E quanto à lei ser a única para todos... concordo plenamente... aliás, se vc não sabe, esses estudantes estão lá dedicando suas vidas, justamente para garantir a aplicação da lei maior, da nossa constituição, de que é para TODOS o direito à educação pública e de qualidade.

TC: Aham, volta lá no início e veja o que desencadeou essa revolta. Esse discursinho "damos a vida" pelo Brasil é tão antigo. Vocês sabem o que se passa na cabeça dessa gente. É um teatro baderneiro que encenam desde 1960 e nunca buscam métodos efetivos de mudança. Mas enfim, nunca pensaremos igual...

MA: Pois é... desde a década de 60... e se não fosse esses "baderneiros" sem métodos muito provavelmente ainda estaríamos vivendo sob aquele regime. Se vivemos em uma sociedade democrática hoje, deve ser porque os esforços iniciados nos anos 60 não eram tão sem métodos assim, não acha? E acho que os milhares que morreram torturados pelos representantes do governo, são provas de que o "dar a vida pelo país" não é um simples "discursinho" como vc coloca.
Agora se vc não acha que a democracia é uma conquista, também não deve achar importante a existência de uma Universidade pública, e consequentemente a luta por isso... aí nesse caso terei que concordar com vc.. nunca pensaremos igual mesmo.

TC: Detalhe, os baderneiros de 1960 são os caras que hoje vocês atacam e vão contra.

MA: Olha como vcs se contradizem o tempo todo, TC, se os caras da ditadura eram apenas baderneiros e "sem método", como podem estar no poder hoje mandando e desmandando no SEU dinheiro, hein?? O que acontece, meu caro, é que infelizmente, o poder e o dinheiro muitas vezes falam mais alto do que os ideais, mas isso não é argumento para desqualificar toda uma luta que é muito maior que exemplos individuais de militantes que "viraram a casaca".... Vcs falam que nós somos baderneiros e sem métodos efetivos de mudança, primeiro porque vcs nem sabem o que precisa ser mudado e segundo porque vcs não sabem trabalhar metodologicamente com IDEIAS. Se vcs conhecessem a força de uma ideia, saberiam que ela é muito maior do que a força de mil policiais. Por isso nós incomodamos tanto e só somos vencidos assim: com a mídia manipulando a pouca ideia de vcs!

BM: Acho que, se essa galera 'vira a casaca' é porque é muito mais fácil manter uma IDEIA de oposição e bagunça do que, efetivamente, fazer alguma coisa inteligente pra mudar. Nesse caso, posso considerar o VALOR DA IDEIA nulo.

TC: MA, alguns caras da época da ditadura deram origem ao movimento Diretas Já! e aí sim algo aconteceu. A ditadura não acabou porque um bando de revolucionário maconheiro invadiu gabinete ou escritório de nenhum General ou fez ato de similar impacto e/ou inteligência.

DR: Tem que ter PM dentro das prefeituras e dentro da Esplanada também. Lá eles não colocam policiais! É público também minha gente!

MA: BM, não existe ação sem ideia, seja ela boa ou má, o valor de uma ideia nunca é nulo. O que acontece é que algumas ideias são deturpadas pela mídia ou outros grupos mais poderosos. Além disso, vc(s) confunde(m) oposição com bagunça/baderna...... Sinceramente... num lugar tão grande como SP.. acho que se os jovens quisessem simplesmente fazer bagunça, eles teriam opções muito melhores do que a reitoria da USP, onde aliás eles correm o risco inclusive de serem jubilados... sinceramente... quem seria tão burro??

MA: Bom, TC, vc mesmo já deu um bom exemplo de como o movimento estudantil já contribuiu para construir um país diferente, apesar de ter menosprezado o papel dos estudantes nessa história. E se vc pesquisar um pouquinho vai ver que esses mesmos estudantes também foram tachados de coisas piores até do que de maconheiros.. aliás não só estudantes, qualquer militante de esquerda era considerado "comunista comedor de criancinha" e até hoje tem gente que pensa assim... Fazer o quê?.. Quem se instrui um pouco mais sabe que não é bem assim. Acho que ao invés de comprar o discurso da mídia, vc podia se informar um pouco melhor sobre o movimento de greve das universidades estaduais que começou muito antes dessa história da invasão da PM ao campus (sim, se houve alguma invasão foi a da PM), para depois sair por aí tachando os estudantes de "baderneiros" e "maconheiros"... sinceramente, isso é sinônimo de ignorância pura....

TC: Vocês que sofrem de esquerdopatia tem a mania de achar que qualquer opinião diferente da de vocês é ignorância, falta de informação, cabeça manipulada pela mídia etc etc etc. Seja um pouco mais humilde e debata sem subir no pedestal de único ser pensante do assunto. Apesar de você ter opinião contrária a minha, não te considero alienada, burra, desinformada. Aprenda a respeitar a diversidade de opiniões e pensamentos.

MA: Respeito demais a diversidade, e mais ainda, adoro encontrar pessoas que me façam repensar e rever minhas opiniões. Te garanto que não sofro de "esquerdopatia", embora entendo do que vc está falando. É que tem certas opiniões, TC, que não tem como deixar de notar que é produto da manipulação da mídia sim. E essa história de estudante baderneiro é uma delas. Se você conseguir provar para mim que os estudantes invadiram a reitoria da USP em busca do direito de serem maconheiros, eu humildemente tirarei o meu chapéu pra vc e saio da discussão. O fato é que a polícia não estava lá apenas para garantir a ordem e o cumprimento da lei. Se fosse um movimento anti drogas, porque eles não foram lá no centro onde os viciados não deixam nem o trânsito fluir de tanto que dominaram o local? Se a PM fosse um exeeeemplo de eficiência, se o crime já tivesse totalmente controlado em outros pontos da cidade e a polícia não tivesse nada pra fazer.. tudo bem ir lá na UNIVERSIDADE prender uns maconheirinhos... mas pera lá, né?... não tá nem perto de ser o caso... Não te considero nem alienado nem burro, se não nem me daria o trabalho de continuar essa discussão, agora.. que vc no mínimo está um pouco desinformado.. isso com certeza.. se não ao invés de mudar de assunto jogando a culpa na minha "esquerdopatia" vc tinha me apresentando alguma informação que me fizesse calar a boca!
 
TC: Eu concordo quando você compara a atuação da polícia na USP e em outros ponto violentos da cidade, e também acho um absurdo a falta de coerência de atitudes. Por outro lado, não podemos usar esse argumento para justificar certas atitudes. Se fosse assim, viveríamos numa anarquia, já que no Brasil todos se sentiriam no direito de roubar, usar drogas, contrabandear etc, se sentindo no direito de fazer como uma parcela da população que faz e não é punida. Mas isso seria correto? Outra coisa, se esses alunos lutam pela democracia, por que não seguiram a vontade da maioria dos alunos da USP (vai ver porque se acham os únicos seres pensantes da face da Terra)? Por que a grande maioria dos alunos da USP estão contra eles? Por que são alienadinhos no conceito de vocês ou por que vivem lá o dia todo e sabem o que se passa naquela universidade? Ontem os professores da USP decidiram não aderir àquela greve de alunos, estranho isso, não? Aluno faz greve e professor não? Que mundo transcendental é esse que vive o grupo seletos dos pensantes da USP?

CN: Não acho bem isso... Eu tenho as minhas razões pra ter minhas opiniões. Eu pesquisei, li várias coisas a respeito, conversei com conhecidos que estudam lá. E permaneço contra a ocupação porque eu sei que entre os manifestantes existem os "massa de manobra" que estão lá por auê (veja que não estou dizendo que são todos ou a maioria) Sei, porque eu já estudei na fflch e sei que lá existe gente que está na faculdade pra fazer politicagem, depois de cumprir sua missão na USP vai pra outra universidade, e assim vai indo! Sim sim sim, eles existem.
Ao mesmo tempo, não sou contra a presença da PM no campus SE ela agir de acordo como deve agir, e não como quer agir ou como um superior quer que ela aja.
Pronto, opinião justificada.

Jiquilin: CN, como a MA, já disse, esses são casos particulares que não devem deslegitimar toda uma luta muito MAIOR que massas de manobra. Sugiro que vc leia toda a discussão, está muito interessante. Do mesmo modo, eu ainda continuo opinando que "pensar sobre" não é a mesma coisa que "pensar com". A gente não tá lá, não sofre perseguição política, não levantamos a bunda por nada (somos uma geração que aprendeu só a nascer e a morrer, porque crescemos, segundo dizem, num ambiente preocupado com a segurança - do negro ao mulçumano-, com medo da Aids etc etc). Só podemos nos solidarizar com a classe, muito embora possamos não concordar com seus métodos. Isso, no entanto, não significa que somos seres privilegiados, porque somos os únicos pensantes, obviamente esse argumento é patético. Como a MA tb já disse, defendemos que todos devem pensar e isso só é possível numa sociedade cada vez mais democrática, com uma educação pública e de qualidade.



MA: Vejo que a discussão está cada vez mais interessante.. Começando pelo último comentário do TC, gostaria de lembraá-lo e a todos, que os estudantes do Movimento Estudantil de qualquer universidade, inclusive o da USP, são representantes eleitos democraticamente através de votações legítimas, então é inaceitável falar em falta de democracia, ou que eles representam uma minoria. Se eles representam uma minoria, é porque a "maioria" se absteve de participar dos espaços destinados para as tomadas de decisões, como as assembléias estudantis, formação de chapas, etc. No "dia-a-dia" do campus, como o TC diz, poucos se atentam para a importância desses espaços e quando algo grande acontece, como a invasão da PM, muitos desses que passam seus dias preocupados apenas com os "SEUS" afazeres, usam da internet para dizer coisas que deveriam dizer ao longo da vida acadêmica, nos espaços legítimos criados para essas discussões. Então, TC, se os estudantes que ocuparam a reitoria não atendem a vontade da maioria, não é por falta de democracia, nem muito menos por se acharam mais pensantes ou mais inteligentes do que essa suposta "maioria", mas sim (SUPONDO que de fato exista essa maioria que discorda dos últimos atos dos estudantes) porque essa maioria não se fez ouvir e não esteve presente nas assembléias que deliberaram sobre o assunto.

Agora, sobre a parte moralista do seu comentário, como vc mesmo apontou, há uma grande incoerência na atitude da polícia, e o fato de destacarmos essa incoerência não significa que queremos "justificar certas atitudes", muito pelo contrário. Mostrar o exagero da polícia é mostrar justamente quem são os verdadeiros bandidos dessa história, a saber, a corja de tucanos que quer destruir tudo que é público. Se os bandidos fossem simplesmente um bando de deliquentes juvenis, não haveria motivo algum para abalar metade do efetivo da PM, para combatê-los. Meia duzia de viaturas e um bom comandante já resolveria o problema da "baderna". Veja bem, ontem mesmo precisei ligar no 190 e não atenderam a ligação depois de várias tentativas! Depois me explicaram que eles não tem culpa, que a demanda é grande para poucos atendentes, as viaturas demoram a chegar porque é coisa de 1 viatura para 60 mil habiltantes... e por aí vai... Então quando eu disse que vcs não sabem o que significa aquele verdadeiro arsenal militar dentro de uma universidade pública.. é porque vcs não sabem mesmo, e eu não to falando isso tipo "me achando A cabeça pensante". É como o Jiquilin disse, nada como estar DENTRO de uma realidade para compreendê-la com mais propriedade. E no final é isso o que acontece: os estudantes que estão lá ocupando a reitoria, votando em greve, etc, são estudantes que dedicam boa parte de suas vidas na luta pela universidade pública, gratuita e de qualidade. E só quem está nessa luta conhece bem as manobras do governo para tirar o mérito de quem está lutando. Então, TC, quando dizemos que julgar os estudantes do movimento de "maconheiros deliquentes" é alienação, não é porque sofremos de "esquerdopatia", mas sim porque reconhecemos nesse discurso a eficiência da manobra do governo para tirar o foco daquilo que é realmente importante: o sucateamento da educação pública em todos os níveis de ensino.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Como reconhecer a VERDADEIRA identidade de um transexual


É inspirado em um dos debates sobre sexualidade, que volta e meia são levantados na Rede TV, e também sob inspiração de conversas com minha amiga Bia que farei esta breve reflexão.
O SuperPop é famoso por dar voz às trans. É lá que Luisa Marilac sempre está presente. LeoÁquila também já andou por aqueles palcos da emissora. Dessa vez, chamou-me atenção um episódio que envolveu Patrícia Araújo no programa Manhã Maior.
Particularmente não gosto muito de televisão e nem da maneira com que temas-tabu, como sexualidade, são abordados. Acredito que a televisão está muito preocupada com sua audiência. O sensacionalismo é grande quando o SuperPop, o Manhã Maior, por exemplo, tratam destas questões. Estão o tempo todo querendo saber das curiosidades da vida misteriosa das travestis, querem ver quantos homens elas conseguem “enganar” ou então querem mostrar que há cura para o “homossexualismo” (só pode ser isso, quando eles trazem à cena um pastor que se diz ex-gay). Quando não é assim, convidam o Bolsonaro para discutir com Luisa Marilac, afinal os dois lados (WTF???) tem de ser ouvidos. Temos de ser justos com os homofóbicos, já que estamos dando espaço para uma trans!
Sensacionalismo! Estão fazendo sensacionalismo em cima de uma questão séria!
Mas o discurso da emissora é daqueles que se auto-intitulam democrático. Afinal, a transexualidade está em evidência.
Sensacionalismo não é democracia, porque, no final das contas, a trans é sempre abordada neste tom de “curiosidade”. Democrático seria se ela ocupasse o lugar de uma Luciana Gimenez. Mas, pensem, coitada da trans, ela não fez por merecer! Jamais poderá ser uma Luciana Gimenez, a não ser que tenha nascido num berço privilegiado como o de Lea T. Está tudo certo, então, a meritocracia continua intocada.
O episódio, transmitido no Manhã Maior, que me chamou a atenção se chama: “você sabe reconhecer um transexual?” 
Há vários equívocos com esse título. Do primeiro já falei: veja como uma transexual consegue enganar os homens!
E estes equívocos só vão aumentando conforme o debate avança.
Logo no início uma das apresentadoras diz: “o povo reconheceu a verdadeira identidade de Patrícia Araújo”.
Gostaria de dar destaque para a palavra “identidade”, pois é justamente sobre identidade que se trata, quando abordamos gênero.
Aqui, a apresentadora, apenas ratificou a acepção mais comum de “identidade”: o Registro Geral (vulgo RG). Ao tratar da identidade de uma pessoa pelo RG caímos em um paradoxo. As identidades são fluidas, são móveis e estão a todo o momento se desenhando. Por isso, ela não deve ser confundida com algo que é estático, tal qual um pedaço de papel ou uma fotografia. A identidade é dinâmica enquanto que a fotografia é apenas um estágio momentâneo, que jamais será o mesmo no minuto seguinte ao de sua revelação.
Então qual seria a “verdadeira” identidade de uma transexual? Aquela presente em seu RG?
Um pouco mais a frente, o programa traz um especialista, um médico expert em cirurgia de mudança de sexo. Lá pelas tantas ele solta a pérola de que Patrícia Araújo estaria mais para o (sic) travesti do que para o (sic) transexual. A justificativa é de que Patrícia gostava de se aparecer, de que ela era exuberante demais pra ser uma transexual. Afinal todas as transexuais são tímidas.
É claro que todo mundo vai acreditar no que diz o médico. Afinal ele é médico. Estudou demais. A medicina é poderosa, jamais poderá se equivocar. Como já disse uma vez, o discurso da verdade se respalda na ciência. Trata-se, portanto, de um discurso muito poderoso.
Uma das minhas críticas a medicina, de modo geral, é que ela é deveras patologicizante. Adora dar um diagnóstico. E como a classe média adora um diagnóstico, fica tudo certo. Contudo, o que os médicos precisam entender, e algumas escolas já compreenderam isso melhor que outras, é que o ser humano não é uma célula. Nós não somos tão somente um ente orgânico.
Em matéria de sexualidade estamos pisando num terreno de pura identidade, pouca organicidade.
Por ser assim, é com a língua que devemos tomar cuidado. É, senão, nas frestas lingüísticas que percebemos o sujeito e seu desejo. Notemos que o médico insiste em mais de uma vez em tratar Patrícia Araújo pelo masculino lingüístico: o transexual, o travesti.
A identidade e a língua andam de mãos dadas: “a identidade sexual se afirma no campo da linguagem, e não do corpo”.
A linguagem é muito mais evanescente que o corpo, portanto, é mais afeita às identidades. Não que a língua não seja problemática também, afinal elas encapsulam em pouco menos de meia dúzia de termos o amplo espectro das sexualidades.
Passemos então aos usos lingüísticos destas identidades: quais seriam as diferenças entre “transexual”, “travesti”, “trans”, “transex”?
O termo travesti hoje está carregado de uma carga semântica pejorativa. Às vezes ele é usado até mesmo como uma ofensa. Assim como o médico, muitas pessoas associam “travesti” ao exuberante, ao chamativo, o que nos faz chegar facilmente na prostituição, nas drogas e na violência. Ser travesti, para muitas pessoas, é estar condicionado a uma vida assim. Por isso, algumas trans não se reconhecem como travestis. Mas, por outro lado, existem grupos de travestis que sentem orgulho dessa denominação e lutam por investir positivamente os usos e semântica do termo.
A transexual é vista, nos usos populares e em alguns usos científicos, como um termo para se referir à pessoa que nasceu no corpo errado. Àquelas que possuem um diagnóstico médico de “transtorno de gênero”, podendo ser ftm (sigla em inglês para “de feminino para masculino”) ou mtf (sigla em inglês para “de masculino para feminino”).
O termo “trans” pode significar “transgênero” ou “transexual”, a depender do contexto. Transgênero seria um vocábulo-chapéu para incluir “travestis” e “transexuais” e sua abreviatura usaria o asterisco:  trans*
“Transex”, pode ter a acepção de “trans”, mas faz alusão a “sexy”, o que traz uma conotação mais sensual.
Há muitas outras acepções mais, mas até mesmo a língua limita. Gostaria de lembrar que estes são apenas alguns recortes muito sucintos sobre os 4 vocábulos em questão. Há inúmeras narrativas sobre gênero e suas vivências, assim há inúmeros rearranjos linguísticos também.
Recentemente tive uma discussão com uma amiga trans* sobre esse programa e ela chegou a seguinte conclusão. Transcrevo o diálogo:

Jiquilin: _ Que era mesmo que você tinha comentado desses vídeos [Do programa Manhã Maior]? Nunca tinha pensado no que você me disse.
Bia: _ Eu sempre pensei. Esses médicos engessam através desses tais "diagnósticos" de transexuais x travestis, sendo que a realidade humana é maior. Engessam comportamentos, limita a situação que é infinitamente ampla porque cada pessoa é de um jeito. Esse negócio de diferenciar “trava” de “trans” é coisa de brasileiro. Nos EUA, por ex., eles não têm esse famoso termo "travesti" muito usado, quem vive como mulher é tudo transexual.
Travesti para eles são homens que se vestem de mulher apenas na intimidade pra ter excitação sexual. A Patrícia tem um passado que os médicos, com certeza, a considerariam como "travesti" já que ela fez vários filmes pornôs. Mas na intimidade dela isso não interfere na "sua feminilidade", e nem deveria. As pessoas, até os médicos, confundem muito sexo com gênero, homem com masculino, mulher com feminino, papel de gênero com sexo biológico. Pode se notar isso nos adjetivos, em formas linguísticas "transexual masculino", estaria ele se referindo ao sexo de nascimento ou à identidade de gênero da pessoa? A solução, dizem, é os termos em inglês mtf ou ftm, mas que para mim, são termos genéricos pra se identificar, mas se a gente for ver o significado mais profundo, é inadequado pra mim.
Querem classificar e qualificar através desse diagnóstico:
Se você é transexual, você deve ter comportamento X e se sentir X.
Se você é travesti, você deve se comportar Y e agir Y.
A realidade vai muito além disso. Cada pessoa é única.
Tem também um certo mito da elegibilidade da cirurgia. É algo como “você nasceu pra cirurgia ou não”, como se fosse simples. Quero dizer: na crença dos médicos existem pessoas que ficarão 100% realizadas com a cirurgia já que já nasceram "doentes", e se você não é doente, e fizer a cirurgia, vai se suicidar porque você não é mulher de verdade. Por isso que a travesti não entra na lógica desses médicos. Se eles não querem a cirurgia, porque iria querer tomar hormônios? Para alguns isso é uma aberração, uma anormalidade, porque não entra no extremo do binarismo.
Quando a questão chega no "prazer sexual" das operadas, isso só quem sabe é quem fez mesmo. O médico ainda diz "100% das que fazem têm sensibilidade". Bom, sensibilidade é uma coisa, eu sinto toda minha pele, por exemplo, e não tenho orgasmos só de tocar em objetos. Não dá pra saber. Meu cu pra esses médicos. Pensam que entendem de trans. Só sendo uma pra entender. Porque essa questão envolve duas esferas muito diferentes. Por isso que transgênero é mais interessante.

O binarismo sexual que existe vai além do macho e da fêmea. Muitos confundem sexualidade com “ter pênis” ou “ter vagina”. Ora, ser feminino ou ser masculino não tem a ver com o corpo somente. Mas tem a ver com a linguagem. Outro binarismo que se desmancha é o advindo dos transgêneros. Muitos tendem a classificar os transgêneros entre ou travestis ou transexuais: se você está descontente com sua genitália, você é um(a) transexual. Se você gosta de ter pênis e mamas (e é exuberante), então, consequentemente você é uma travesti. A classificação é tão machista quanto àquela que organiza a sexualidade em torno de “macho” e “fêmea”, uma vez que privilegia os transgêneros que nasceram com pênis e porque não permite lugar à oscilação. E se eu for uma mulher muito bem resolvida, me considero uma transexual, e gostar de ter meu pênis? Do que a sociedade deverá me chamar? Travesti, se eu acabei de dizer que me considero uma transexual?
A identidade é plástica e acredito que sempre o indivíduo deve ser consultado: “neste momento, você se identifica com quê?”
Não há um protocolo que te faça ser travesti ou transexual. Muito pelo contrário do que pensa o médico: não há uma lista de requisitos que tornam uma pessoa menos ou mais travesti.
Mudar o corpo, através de uma cirurgia de mudança de sexo, é, realmente, algo definitivo. Diferente da identidade, que se está construindo a cada instante. No entanto, a preocupação da medicina não deveria ser a de buscar normas e requisitos que componham a “verdadeira” identidade de uma transexual, uma identidade doentia; senão que deveria ser a de se voltar a estas identidades e compreendê-las para além do organismo.
Enquanto isso, vamos nos significando na língua e buscando nossos lugares. Os morfemas –a e –o já podem ter começado a deixar de significar o “masculino” ou o “feminino”.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Notas sobre a intolerância

No semestre passado, cursei uma disciplina na Unicamp chamada “Formação do professor de língua”. Naquele semestre havia ocorrido o asqueroso Massacre do Realengo e, naquela mesma época, havia acontecido um caso de homofobia dirigido a um jogador de vôlei. A professora, deste modo, sugeriu que a turma discutisse sobre os temas, que além de envolver a sociedade, vem dizer muito sobre a sala de aula.
A discussão foi brilhante e resolvi escrever um relatório sobre este dia.
Ofereço-o a vocês:


Iniciamos a aula com uma discussão sobre o Massacre do Realengo.  Poderíamos considerar a tragédia como um fato sabido por todos os cidadãos brasileiros, mas tão somente principiamos a atividade e uma das colegas de sala relatou que no colégio onde ela trabalha seus alunos ainda não haviam tomado conhecimento do acontecido.
No dia 7 de abril do presente ano, Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, entrou numa escola pública do Rio de Janeiro, a Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro do Realengo, e cometeu um crime que abalou o sentimento coletivo. Munido de dois revólveres, o atirador investiu contra os alunos presentes. O resultado foi um massacre: 12 mortos, a maioria atingido na cabeça, e uma quantidade semelhante de feridos. Dentre os mortos, 10 meninas e dois meninos.
As repercussões foram das mais imediatas, graças ao poder de difusão da mídia. Antes de entrar no mérito da questão, devemos comentar dois pontos já suscitados, os quais têm bastante relação entre si:
1)     A repercussão midiática
2)     A alienação das elites
Coincidentemente, sete de abril, data do crime, era também o dia do jornalista. A empreitada, entretanto, fora contemplada com o pior tipo de jornalismo: o sensacionalista. O interlocutor, neste dia, foi interpelado por uma boa dose de desinformações, informações inverossímeis, prantos, dor e desespero. Pouco se discutiu, na ocasião, sobre os problemas sociais culminados neste ato de violência.
A posteriori, a discussão foi, timidamente, feita pelos blogs e pelas redes sociais. A mídia, igualmente no caso de Columbine, prestou apenas um desserviço ao público. Aproveitou-se de momentos sociais críticos para ganhar Ibope ou vender jornais e revistas. Mais tarde esta mesma imprensa tentou explicar o fenômeno, porém, uma vez mais o fez de maneira equivocada: ora dando voz a especialistas para imputar culpa apenas ao criminoso, ora para mostrar as lágrimas e indignações da classe média. No máximo, debateram sobre o bullying.
E por falar em classe média, devemos retomar o diagnóstico feito por nossa colega de sala: seus alunos desconheciam a notícia. Foi o que nos comentou uma companheira de sala, que trabalha como monitora na área de linguagem para um colégio de elite da região de Campinas. Um dia após o crime, ela havia preparado um debate a ser feito com os alunos que procurassem seu plantão. Contudo, para que isto fosse possível, ela teve de previamente informar-lhes sobre o massacre. O que nos chamou a atenção não foi o fato de que os alunos não conhecessem seu entorno imediato, senão a ideia de que nenhum professor oficial (nossa colega não é professora mas monitora) houvesse sequer tangenciado a questão.
Se por um lado a mídia não propôs uma análise legítima do problema social, a escola de elite preferiu fingir que crimes hediondos, que talvez para eles podem ser considerados delitos da classe baixa, pouco lhes dizem respeito. 
Um episódio crônico destes, sucedido em uma escola, por mais chocante que seja, não deve ser deixado de fora dos âmbitos de reflexão e formação. Portanto, é repugnante que sejam completamente ignorados. Imbuídos neste espírito, e por também estarmos cerceados pelo ambiente formador, é que passamos a relatar nossa reflexão sobre o massacre do Realengo.
***
Em julho do ano passado uma travesti, Camille Gerin, 25, foi violentamente assassinada nas ruas do bairro Bonfim de Campinas. Morta a pauladas, Gerin teve o rosto completamente desfigurado. O assassino foi pego em flagrante ao tentar se desfazer do corpo da vítima, o qual seria jogado em uma valeta. Uma viatura da polícia fazia a ronda pelo local. Os policiais prenderam Roberto Rubens de Macedo, 25, que tentou fugir, e puderam prestar socorros à vítima ainda com vida. Entretanto, Gerin não resistiu aos ferimentos e teve a morte cerebral confirmada três dias depois no hospital Mario Gatti na mesma cidade.
Este breve relato serve para ilustrar o mesmo cunho social de crimes de ódio como o do massacre do Realengo.
Crimes de ódio são aqueles cometidos contra as minorias (de raça, gênero, religião etc). E por que o massacre do Realengo seria um crime de ódio?
Lola, em seu brilhante post, argumentou pela hipótese de misoginia: o número de mortas foi muito maior que o número de mortos. Na sequência ela faz uma comparação com outros crimes de ódio cometidos no EUA. Um exemplo que ela traz é o caso de George Sodini, um assassino que, em agosto de 2009, entrou numa academia de aeróbica e dizimou o publico feminino presente. Outro caso é o de um psicopata que invadiu uma escola rural, em 2006, na Pensilvânia, e separou os meninos das meninas e em seguida desferiu tiros contra elas.
Nenhum desses casos, inclusive, o nosso, foi classificado pela mídia ou pela sociedade, (ou melhor: pelos espaços de discussão coletivo) como um crime de ódio. Isso porque o machismo é tão naturalizado e a violência contra a mulher (e o feminino) é vista como comum que a torna, de certo modo, esperada.
Sabemos que todos esses criminosos têm um potencial psicótico, o qual se manifestou nas ocasiões relatadas. É claro que se trata de um problema do sujeito, mas como as relações se dão num nicho interativo, o problema também é social.
Nesse sentido, acreditamos que as questões relevantes, enquanto cidadãos e educadores, deveriam ser:
O QUE EU TENHO A VER COM ISSO? O que nós temos a ver com isso? O que a sociedade tem a ver com isso?
Ao tentar responder essas perguntas, e trazendo-as para dentro da sala de aula, não apenas estaremos encontrando nossa parcela de culpa, como também estaremos engajando nossos alunos para o despertar de um discurso ao qual ele já se assujeitou. Fica fácil, assim, mostrar as contradições do choque diante de uma brutal violência e o prazer que um aluno sente ao cometer o bullying com seu parceiro. No primeiro caso, é demais para a sensibilidade daquele, enquanto que no segundo, a diversão a partir do sofrimento alheio é mais evidente. A raiz do problema é a mesma: a violência, a intolerância.
Mas por que num caso o aluno/o professor é sensível a isso e no segundo, muitas vezez, não? Porque cada um de nós quando repetimos expressões machistas e opressoras não percebemos que estamos sendo uma força que se soma a violência. Não percebemos a formação ideológico-discursiva que nos perpassa.
Tanto é assim, que as dezenas de torcedores do Sada Cruzeiro desterraram, mais uma vez, a violência verbal, de teor homofóbico contra o jogador do vôlei Futuro, Michael, homossexual assumido.
Este épisodio, que foi a segunda reflexão realizada na aula do dia 13/04, serviu para ilustrar novamente outro crime de ódio.
Na ocasião das aulas, o Vôlei Futuro e o Sada Cruzeiro haviam disputado duas partidas da Superliga. Poucos dos alunos presentes conheciam o fato. Por isso, a professora dividiu a sala entre os que sabiam do problema e aqueles que o ignoravam. Ela relatou então que, na primeira partida entre a equipe de Araçatuba (SP), o Vôlei Futuro, e a de Contagem (MG), o Sada Cruzeiro, realizada na casa do segundo, houve uma manifestação homofóbica da torcida. Todas as vezes que a bola caia nas mãos do jogador Michael Pinto dos Santos, 27, a torcida do Cruzeiro levantava uma onda de insultos do tipo: “bixa”, “gay”. Como resultado, o jogador foi substituído e a equipe perdeu a partida.
A segunda partida, com cunho de revanche, fora realizada na casa do time injuriado. Aproveitando-se do fato de que muitos alunos não haviam assistido ao torneio, a professora perguntou a eles o que poderia ter ocorrido nesta nova disputa. Depois de longa discussão em torno da violência nos estádios e sobre a homofobia, soubemos que a equipe de Araçatuba houvera entrado em campo, para o aquecimento, trajando camisetas rosas, ataduras rosas, camisetas com o arco-íris e a torcida portava artefatos igualmente rosas, bandeiras com manifestações de intolerância contra a homofobia.
Nossas reflexões quanto a esse episódio giram em torno de alguns eixos:
i) Achamos importante que o Vôlei Futuro não tenha ignorado a injúria, desse modo, foi possível dar visibilidade a uma questão séria do preconceito contra os homossexuais.
ii) Fazemos uma ressalva quanto à simbologia utilizada pela equipe. A cor rosa presente nos materiais de protesto pode ser uma maneira politicamente incorreta, ou equivocada, de representar os gays e combater a homofobia. Entendemos que o símbolo a que o rosa representa é fortemente entendido por todos e por isso a mensagem contra a homofobia pode ser mais clara. No entanto, há uma questão histórico-ideológica mais forte por traz desse símbolo. O rosa se associa ao feminino e ao mesclá-lo a um elemento masculino, acredita-se caracterizar os gays (trata-se de uma questão histórica, os gays nos campos de concentração, durante o nazismo, eram identificados pelo triângulo rosa, p. ex.). Acreditamos ser um equívoco tanto porque a sexualidade é muito mais complexa do que aquela que meramente gira em torno de dois gêneros (ou masculino ou feminino), quanto por vincular a questão do feminino à fêmea e ao frágil.  Portanto, não aprovamos totalmente a metodologia do protesto.
            Os dois ocorridos, o massacre do Realengo e a inventiva contra gays, podem comumente fazer-nos retornar a questão já anunciada. O que eu tenho a ver com isso? Com já dito, não se trata apenas de buscar uma parcela da culpa, senão de entender que se trata de toda uma construção social da qual participamos. A culpa da violência não é do sujeito, como poderia prever as teses inatistas, tampouco se trata de uma culpa exclusiva do outro, como poderia prever o behaviorismo. O construto interativo-social perpassa por ambas as questões e diz que o preconceito é construído e mantido nesse movimento.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Resenha: Hibisco Roxo


ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011 [2003]. 328 pp. Trad: Julia Romeu. Título original: Purple hibiscus.



rara, com o cheiro suave de liberdade (...)
 Liberdade para ser, para fazer (p. 22)



Um romance reflexivo, Hisbisco Roxo, de Chimamanda Adichie, é narrado em primeira pessoa por Kambili, uma jovem nigeriana de classe alta.
A narrativa está divida em quatro capítulos, cuja nomenclatura gira em torno da temática principal do enredo: o catolicismo exacerbado introduzido pelos colonizadores. Os nomes dos capítulos fazem alusão ao domingo de ramos católico e narram as cenas pré, pós e durante esta data. No entanto, o enredo não é linear. Logo de início o leitor é surpreendido por uma breve cena ocorrida no domingo de ramos, o título desse capítulo é: “Quebrando deuses: Domingo de Ramos”. O capítulo seguinte, “Falando com nossos espíritos: antes do domingo de ramos”, prepara o leitor para que ele entenda a cena inicial. É o capítulo mais longo e é o principal do livro. O terceiro capítulo se intitula: “Os pedaços de deuses: após o domingo de ramos”. E o último capítulo é uma espécie de posfácio, em que Kambili nos conta as seqüelas da narrativa: “Um silêncio diferente: o presente”.
            No primeiro capítulo, caso o leitor não saiba se tratar de um romance nigeriano, não fica muito claro onde se passa a história que se vai iniciar. As primeiras descrições são bastante universais e a cena introdutória é bastante comum às dos países colonizados. Mas aos poucos o universalismo vai se delineando e temos noção mais ou menos de que conheceremos a realidade de um país africano, pois é-nos descrita uma vegetação peculiar: hibiscos roxos, plumérias, buganvílias. Também é a primeira vez que se narra uma cena de refeição: sopa onugbu com fufu, suco de caju. Serão recorrentes em todo o livro tais cenas do momento de alimentação, o que servirá para caracterizar a riqueza da família de Kambili em contraste com a pobreza do país.
Ainda neste primeiro capítulo conhecemos o núcleo familiar da jovem nigeriana: Eugene, o Papa, rico industrial e dono de um jornal progressista; Beatrice, a Mama, dona de casa e seu irmão mais velho Jaja.
Eugene, no primeiro capítulo, arremessa seu pesado missal contra Jaja, o que faz quebrar lindas estatuetas que ornam uma das estantes da sala. Eugene, que já começa a ser caracterizado como um fanático religioso, fica furioso porque seu filho deixa de receber a comunhão por dois domingos seguidos.
Á primeira vista, pareceu-me inverossímil uma descrição de uma casa tão rica e de um catolicismo tão ignorante. Mas após a leitura do capítulo principal, o segundo, tal perspectiva se desfaz.
Aos poucos, percebemos a ingenuidade de Kambili e como ela vai amadurecendo ao longo da trama. Ela é vítima de uma criação extremamente superprotetora, por parte de seu pai Eugene, o que acaba tornando-a uma menina inexpressiva. Se a história não fosse contada a partir do ponto de vista de Kambili, poderia dizer que esta seria uma personagem apática. Mas sabemos que não é bem assim. Embora Kambili seja calada e introspectiva, dentro de sua mente voa um carrilhão, é como a descreve padre Amadi, figura por quem a garota desenvolve um amor platônico.
A menina sente um respeito exacerbado por seu pai. Esse respeito, por vezes é confundido com temor. Do início ao fim, Kambili não faz o leitor sentir ódio por Papa, mesmo nos momentos mais críticos da narrativa. Pelo contrário, a garota tenta a todo custo sempre agradar a seu pai.
Eugene é um homem paradoxal, pois ao mesmo tempo em que demonstra ser extremamente altruísta, (mantém várias instituições filantrópicas, p. ex.), ele paulatinamente vai destruindo sua própria família, devido a sua tirania religiosa. Este personagem pode ser interpretado como um arquétipo da religião colonizadora. Apesar de ser muito rico, seu pai, Papa-Nukwu, vive à beira da miséria em sua cidade natal. O avô de Kambili é o arquétipo da cultura local, pouco penetrada pelo colonialismo europeu.
Eugene recusa ajudar seu próprio pai, porque este nega converter-se ao catolicismo e abrir mão de seu tradicionalismo. Desse modo, Kambili e Jaja quase não têm contato com o avô. Eles o visitam uma vez ao ano, no natal, quando a família deixa Abba e volta para sua ummuna, sua comunidade. Nesta ocasião, os netos vão até a casa do avô, levados pelo motorista Kevin, e têm o direito de permanecer não mais que quinze minutos com seu Papa-Nukwu.
A rigidez de Eugene também assombra sua esposa. Em algumas passagens não muito explícitas, parece que Eugene espanca sua esposa Beatrice. Numa delas, a mulher sofre um aborto em decorrência dos traumas. As cenas não são explícitas porque quem nos conta é Kambili, num ponto de vista muito inocente.
Eugene realmente é um pai superprotetor. Exige que seus filhos sejam sempre os primeiros colocados da turma. Caso isso não aconteça, como vemos num episódio em que Kambili fica em segundo lugar da classe, os filhos são punidos. Além disso, Jaja e Kambili devem seguir um horário rigoroso dentro de uma rotina de estudos rigorosa.
Este é o estado da arte na casa de Kambili e sua família. Mas a história começa a dar uma quinada quando os irmãos vão passar dez dias de suas férias na casa de tia Ifeoma, uma irmã de Eugene. Lá em Enugu, o casal de irmãos entram em contato com uma realidade mais próxima do país. Tia Ifeoma é uma professora universitária que vê a corrupção assolar a Nigéria. Kambili transcreve diálogos interessantes de sua tia com seus dois filhos mais velhos, Obiora, o maior, e Amaka, a questionadora. Além deles, Ifeoma, que é viúva, tem mais um filho, Chima, o caçula. Nesse núcleo, ainda aparece Amadi, um padre que consegue conciliar a cultura local à fé católica.
Ifeoma e filhos são obrigados a imigrar para os EUA, pois a universidade a despede com a desculpa de que a professora estaria envolvida em atividades ilegais, o que não é verdade. Nesse mesmo período, o padre Amadi, por quem, a esta altura, Kambili já está perdidamente apaixonada, também tem de mudar-se, já que é missionariamente transferido, numa crítica irônica ao colonialismo, para a Alemanha.
Antes disso, Papa-Nukwu fica muito doente e tia Ifeoma o traz para passar seus últimos dias junto a ela e aos netos. Neste período, Amaka pinta um quadro do avô. Kambili e Jaja passam momentos jamais vividos ao lado de seu ancestral e notam que ele, apesar de não ser cristão, também é uma pessoa boa.
Eugene, ao descobrir que seus filhos estão sob o mesmo teto de um pagão, vai pessoalmente buscá-los e surpreende-se com a morte do pai. Mesmo assim, Kambili e Jaja são brutalmente punidos. Eugene lava os pés de seus filhos com água fervente. A cena é narrada não com ódio, mas de um ponto de vista que nos faz entender que o pai só quer o bem de seus filhos.
Jaja traz mudas de hibisco roxos da casa da tia e as planta em sua casa em Abba. O quadro pintado por Amaka é dado de presente à Kambili, que o esconde a todo custo de seu punitivo pai.
A estadia na casa de tia Ifeoma transforma profundamente os irmãos. Kambili passa a ser mais extrovertida e Jaja a buscar mais sua autonomia (o que nos dá a impressão de se tratar de uma certa rebeldia).
A vida de Eugene se modifica quando Ade Coker, seu jornalista do peito, morre. Ade Coker é conhecido por fazer denúncias políticas no jornal de Eugene, o Standart. O jornalista vai preso um par de vezes e sempre é solto graças à influência de seu patrão. Coker termina seus dias vítima de uma carta bomba, que explode na mesa do café da manhã, diante de sua mulher e filhos.
Desde esse dia, Eugene parece entrar num estado depressivo e se torna ainda mais agressivo. Ao descobrir o quadro de Papa-Nukwu, dado por Amaka, e mantido escondido por Kambili, Eugene espanca a filha até o ponto de a garota desmaiar.
Kambili passa dias em coma no hospital e ao recuperar-se viaja para a casa de tia Ifeoma novamente. Diante da sociedade, o crime é disfarçado de acidente, como sempre ocorre quando Eugene agride a esposa e os filhos.
No domingo de ramos, Jaja recusa-se a comungar. E novamente Eugene demonstra sua fúria. Depois do domingo de ramos, Beatrice começa a botar veneno no chá de Eugene, que morre na mesa de seu escritório na fábrica.
Jaja assume a culpa e vai preso. Beatrice enlouquece e Kambili amadurece de vez.
Através desse romance, Adichie denuncia a situação em que se encontra uma Nigéria pós-colonial. O livro, como já disse, apesar do universalismo, capricha nos regionalismos. Adichie se recusa a reproduzir as histórias estrangeiras muito comumente lidas em seu país, A língua veicular da Nigéria é o inglês e a tradição literária do país costuma ser a de língua inglesa. Mas Adichie não faz isso. Ela descreve muito bem a paisagem nigeriana, como o título não deixa mentir. Faz uma simbiose entre as características psicológicas de seus personagens e o clima nigeriano: descreve as chuvas e os ventos do harmantan, os inúmeros por e nascer do sol; descreve os alimentos, as frutas, o ambiente rural.
A crítica ao colonialismo não se dá somente através da situação religiosa. Numa perspectiva linguística, Adichie também deixa claro que a língua do colonizador é mais prestigiada. Por vezes, Eugene repreende as pessoas por falarem inglês: “Papa quase nunca falava em igbo, embora Jaja e eu usássemos a língua com Mama quando estávamos em casa, ele não gostava que o fizéssemos em público. Precisávamos ser civilizados em público, ele nos dizia; precisávamos falar inglês” (p.20). E denuncia o ridículo linguajar forjado: “Ela falava mais igbo do que inglês, mas todas as suas palavras em inglês saíam com um sotaque britânico consistente, diferente do de Papa, que só surgia quando ele estava diante de gente branca, e às vezes, sumia em algumas palavras, de forma que metade da frase ficava com sotaque nigeriano e outra metade com sotaque britânico” (p. 256-7).
De forma irônica, como todo o livro, a autora também aponta para o racismo: “fazia as coisas do jeito certo, do jeito que os brancos fazem, não como nosso povo faz agora!” (p.74).
O mais interessante deste livro é que ela dá a conhecer ao mundo, através da literatura, uma realidade social, política e educativa da Nigéria. Desfaz o mito de que a África é única. Desfaz também o estereótipo da África como um continente miserável. A personagem principal é rica. Ifeoma é uma professora universitária e há bastante felicidade na cultura local. Se algum sentimento de piedade é evocado no leitor, este sentimento pouco tem a ver com a situação de uma Nigéria na miséria. Surge, não obstante, uma piedade de uma Nigéria esfacelada pelo contato.
Outra questão que se mostra é a preocupação da autora em lutar para que a Nigéria deixe de ser um lugar de corruptos. Através de Ifeoma, Adichie empreende uma reflexão sobre a migração aos EUA. Obiora defende a ideia de que sair do país não é uma solução: “os que estudaram vão embora, aqueles que têm potencial para consertar o que está errado. Eles deixam os fracos para trás. Os tiranos continuam reinando porque os fracos não conseguem resistir. Você não vê que é um círculo vicioso? Quem vai quebrar esse círculo?” (p. 258-9).
De maneira geral, fica evidente que Adichie escreve uma história em que os nigerianos têm vez: “existem pessoas, escreveu tia Ifeoma certa vez, que acham que nós não conseguimos governar nosso próprio país, pois nas poucas vezes em que tentamos  nós falhamos, como se todos os outros que se governam hoje em dia tivessem acertado de primeira. É como dizer a um bebê que está engatinhando, tenta andar e cai de bunda no chão que ele deve permanecer no chão. Como se todos os adultos que passam por ele também não houvessem engatinhado um dia” (p. 315)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O problema é do feminino





O machismo está aí batendo em nossas casas há muitos séculos. A adoração ao masculino não é uma invenção da nossa sociedade e nem se originou no nosso tempo. É difícil precisar como se deu a primeira manifestação machista. Há os que digam que essa forma de poder existe desde que o homem das cavernas começou a puxar a mulher pelos cabelos. Mas não importa. O machismo é algo cultural, isso quer dizer que ele foi criado pelo homem, ainda que a retrógrada psicologia evolucionista apregoe que se trata da própria biologia humana. Por ser algo cultural, ele funciona como um efeito catraca: o homem o aprendeu em alguma etapa de sua filogênese e o foi aperfeiçoando (se é que podemos dizer que o machismo é algo perfeito). Da Grécia Antiga, da qual legamos muito da cultura, podemos ler tragédias e comédias de autores muito influentes que menosprezam a mulher, que a inferiorizam. A misoginia, cujo próprio termo é grego, é o ódio pelo feminino.

Com o passar do tempo, o machismo vai sendo transmitido culturalmente para as novas gerações e vai se modificando. A análise que faço do machismo hoje no Brasil, e talvez na América Latina, é de que ele é um tipo de misoginia. O machismo nosso hoje é uma aversão pelo feminino. 

Odiamos o feminino na medida em que exaltamos o masculino. Aprendemos que ser masculino é mais importante que ser feminino. Ser masculino é prestigioso. Também criamos toda uma concepção do que é ser feminino. Ser feminino é ser sentimental, é ser frágil, é ser sensível, entre muitas outras coisas.

Portanto, ser feminino não é apenas possuir uma vagina. Mas quem possui uma vagina sofre em dobro, porque se espera dessas pessoas um comportamento feminino. Essa forma de machismo se manifesta por todos os lados e inclusive dentro dos movimentos de minorias.  

A lesbofobia, que é a aversão por lésbicas, é um exemplo desses. Muitos gays (do sexo masculino) têm horror a lésbicas. Mas essa fobia é por causa do elemento “feminino” advinto do estereótipo daquela que possui uma vagina. No fundo, o lesbofóbico é misógino, porque tem horror ao feminino. 

O gay afeminado também vai sofrer desse preconceito dentro do próprio coletivo do qual faz parte, porque os gays não afeminados estão inseridos nessa lógica do machismo. Quase todo mundo odeia o feminino. Muitos queimarão as bandeiras cor-de-rosa. Por quê? Porque o rosa representa o... feminino. Mas o engraçado disso tudo é que os gays percebem que eles são oprimidos pela sociedade heteronormativa. Os gays percebem que o machismo os oprime. Mas eles não percebem que até eles mesmos são opressores quando lhes toca. O machismo só é percebido quando se infringe uma norma heterossexual: a de que homens se relacionam com mulheres. Contudo, o machismo não é percebido quando ele infringe uma conduta homonormativa: o de que gays devem ser masculinos. 

Os gays percebem como lhes pesa uma macrofísica do poder, mas não percebem que eles instauram uma microfísica desse mesmo poder. Recentemente saiu um vídeo chamado “Não gosto de meninos”. Eu, particularmente, não gostei muito dele, porque apesar de ser muito instrutivo, e por isso tem uma mensagem vendável, ele demonstra essa microfísica do poder. Lá pelas tantas, um dos entrevistados diz: eu achava que ser gay era ter uma postura assim (e nesse “assim”, você entende “ser bixinha”). Sabe, tudo bem de você não gostar de comportamentos afeminados. Mas, por favor, não me venha recriminar o “feminino”. 


Exatamente pelo ódio ao feminino ser uma tradição e exatamente por ser um construto social, é que podemos combater esse tipo de preconceito. Não odeie as travestis, não odeie as transexuais ou os transgêneros. Acredito que essas categorias, umas que transitam outras que transgridem as fronteiras entre o masculino e o feminino, deveriam ser as mais prestigiadas dentro da cultura gay. Porque, na maior das instâncias, são elas que derrubam e desfazem as hierarquias entre masculino e feminino e permitem que você, gay masculino, não tenha medo do armário. Por outro lado, não adianta você sair do armário, se você carrega um guarda-roupas de preconceito contra o feminino.Quando a gente começar a vencer essas barreiras dentro do grupo é, então, que poderemos falar de combate PLENO ao machismo. Reage, galera, machismo é violência.