segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Como reconhecer a VERDADEIRA identidade de um transexual


É inspirado em um dos debates sobre sexualidade, que volta e meia são levantados na Rede TV, e também sob inspiração de conversas com minha amiga Bia que farei esta breve reflexão.
O SuperPop é famoso por dar voz às trans. É lá que Luisa Marilac sempre está presente. LeoÁquila também já andou por aqueles palcos da emissora. Dessa vez, chamou-me atenção um episódio que envolveu Patrícia Araújo no programa Manhã Maior.
Particularmente não gosto muito de televisão e nem da maneira com que temas-tabu, como sexualidade, são abordados. Acredito que a televisão está muito preocupada com sua audiência. O sensacionalismo é grande quando o SuperPop, o Manhã Maior, por exemplo, tratam destas questões. Estão o tempo todo querendo saber das curiosidades da vida misteriosa das travestis, querem ver quantos homens elas conseguem “enganar” ou então querem mostrar que há cura para o “homossexualismo” (só pode ser isso, quando eles trazem à cena um pastor que se diz ex-gay). Quando não é assim, convidam o Bolsonaro para discutir com Luisa Marilac, afinal os dois lados (WTF???) tem de ser ouvidos. Temos de ser justos com os homofóbicos, já que estamos dando espaço para uma trans!
Sensacionalismo! Estão fazendo sensacionalismo em cima de uma questão séria!
Mas o discurso da emissora é daqueles que se auto-intitulam democrático. Afinal, a transexualidade está em evidência.
Sensacionalismo não é democracia, porque, no final das contas, a trans é sempre abordada neste tom de “curiosidade”. Democrático seria se ela ocupasse o lugar de uma Luciana Gimenez. Mas, pensem, coitada da trans, ela não fez por merecer! Jamais poderá ser uma Luciana Gimenez, a não ser que tenha nascido num berço privilegiado como o de Lea T. Está tudo certo, então, a meritocracia continua intocada.
O episódio, transmitido no Manhã Maior, que me chamou a atenção se chama: “você sabe reconhecer um transexual?” 
Há vários equívocos com esse título. Do primeiro já falei: veja como uma transexual consegue enganar os homens!
E estes equívocos só vão aumentando conforme o debate avança.
Logo no início uma das apresentadoras diz: “o povo reconheceu a verdadeira identidade de Patrícia Araújo”.
Gostaria de dar destaque para a palavra “identidade”, pois é justamente sobre identidade que se trata, quando abordamos gênero.
Aqui, a apresentadora, apenas ratificou a acepção mais comum de “identidade”: o Registro Geral (vulgo RG). Ao tratar da identidade de uma pessoa pelo RG caímos em um paradoxo. As identidades são fluidas, são móveis e estão a todo o momento se desenhando. Por isso, ela não deve ser confundida com algo que é estático, tal qual um pedaço de papel ou uma fotografia. A identidade é dinâmica enquanto que a fotografia é apenas um estágio momentâneo, que jamais será o mesmo no minuto seguinte ao de sua revelação.
Então qual seria a “verdadeira” identidade de uma transexual? Aquela presente em seu RG?
Um pouco mais a frente, o programa traz um especialista, um médico expert em cirurgia de mudança de sexo. Lá pelas tantas ele solta a pérola de que Patrícia Araújo estaria mais para o (sic) travesti do que para o (sic) transexual. A justificativa é de que Patrícia gostava de se aparecer, de que ela era exuberante demais pra ser uma transexual. Afinal todas as transexuais são tímidas.
É claro que todo mundo vai acreditar no que diz o médico. Afinal ele é médico. Estudou demais. A medicina é poderosa, jamais poderá se equivocar. Como já disse uma vez, o discurso da verdade se respalda na ciência. Trata-se, portanto, de um discurso muito poderoso.
Uma das minhas críticas a medicina, de modo geral, é que ela é deveras patologicizante. Adora dar um diagnóstico. E como a classe média adora um diagnóstico, fica tudo certo. Contudo, o que os médicos precisam entender, e algumas escolas já compreenderam isso melhor que outras, é que o ser humano não é uma célula. Nós não somos tão somente um ente orgânico.
Em matéria de sexualidade estamos pisando num terreno de pura identidade, pouca organicidade.
Por ser assim, é com a língua que devemos tomar cuidado. É, senão, nas frestas lingüísticas que percebemos o sujeito e seu desejo. Notemos que o médico insiste em mais de uma vez em tratar Patrícia Araújo pelo masculino lingüístico: o transexual, o travesti.
A identidade e a língua andam de mãos dadas: “a identidade sexual se afirma no campo da linguagem, e não do corpo”.
A linguagem é muito mais evanescente que o corpo, portanto, é mais afeita às identidades. Não que a língua não seja problemática também, afinal elas encapsulam em pouco menos de meia dúzia de termos o amplo espectro das sexualidades.
Passemos então aos usos lingüísticos destas identidades: quais seriam as diferenças entre “transexual”, “travesti”, “trans”, “transex”?
O termo travesti hoje está carregado de uma carga semântica pejorativa. Às vezes ele é usado até mesmo como uma ofensa. Assim como o médico, muitas pessoas associam “travesti” ao exuberante, ao chamativo, o que nos faz chegar facilmente na prostituição, nas drogas e na violência. Ser travesti, para muitas pessoas, é estar condicionado a uma vida assim. Por isso, algumas trans não se reconhecem como travestis. Mas, por outro lado, existem grupos de travestis que sentem orgulho dessa denominação e lutam por investir positivamente os usos e semântica do termo.
A transexual é vista, nos usos populares e em alguns usos científicos, como um termo para se referir à pessoa que nasceu no corpo errado. Àquelas que possuem um diagnóstico médico de “transtorno de gênero”, podendo ser ftm (sigla em inglês para “de feminino para masculino”) ou mtf (sigla em inglês para “de masculino para feminino”).
O termo “trans” pode significar “transgênero” ou “transexual”, a depender do contexto. Transgênero seria um vocábulo-chapéu para incluir “travestis” e “transexuais” e sua abreviatura usaria o asterisco:  trans*
“Transex”, pode ter a acepção de “trans”, mas faz alusão a “sexy”, o que traz uma conotação mais sensual.
Há muitas outras acepções mais, mas até mesmo a língua limita. Gostaria de lembrar que estes são apenas alguns recortes muito sucintos sobre os 4 vocábulos em questão. Há inúmeras narrativas sobre gênero e suas vivências, assim há inúmeros rearranjos linguísticos também.
Recentemente tive uma discussão com uma amiga trans* sobre esse programa e ela chegou a seguinte conclusão. Transcrevo o diálogo:

Jiquilin: _ Que era mesmo que você tinha comentado desses vídeos [Do programa Manhã Maior]? Nunca tinha pensado no que você me disse.
Bia: _ Eu sempre pensei. Esses médicos engessam através desses tais "diagnósticos" de transexuais x travestis, sendo que a realidade humana é maior. Engessam comportamentos, limita a situação que é infinitamente ampla porque cada pessoa é de um jeito. Esse negócio de diferenciar “trava” de “trans” é coisa de brasileiro. Nos EUA, por ex., eles não têm esse famoso termo "travesti" muito usado, quem vive como mulher é tudo transexual.
Travesti para eles são homens que se vestem de mulher apenas na intimidade pra ter excitação sexual. A Patrícia tem um passado que os médicos, com certeza, a considerariam como "travesti" já que ela fez vários filmes pornôs. Mas na intimidade dela isso não interfere na "sua feminilidade", e nem deveria. As pessoas, até os médicos, confundem muito sexo com gênero, homem com masculino, mulher com feminino, papel de gênero com sexo biológico. Pode se notar isso nos adjetivos, em formas linguísticas "transexual masculino", estaria ele se referindo ao sexo de nascimento ou à identidade de gênero da pessoa? A solução, dizem, é os termos em inglês mtf ou ftm, mas que para mim, são termos genéricos pra se identificar, mas se a gente for ver o significado mais profundo, é inadequado pra mim.
Querem classificar e qualificar através desse diagnóstico:
Se você é transexual, você deve ter comportamento X e se sentir X.
Se você é travesti, você deve se comportar Y e agir Y.
A realidade vai muito além disso. Cada pessoa é única.
Tem também um certo mito da elegibilidade da cirurgia. É algo como “você nasceu pra cirurgia ou não”, como se fosse simples. Quero dizer: na crença dos médicos existem pessoas que ficarão 100% realizadas com a cirurgia já que já nasceram "doentes", e se você não é doente, e fizer a cirurgia, vai se suicidar porque você não é mulher de verdade. Por isso que a travesti não entra na lógica desses médicos. Se eles não querem a cirurgia, porque iria querer tomar hormônios? Para alguns isso é uma aberração, uma anormalidade, porque não entra no extremo do binarismo.
Quando a questão chega no "prazer sexual" das operadas, isso só quem sabe é quem fez mesmo. O médico ainda diz "100% das que fazem têm sensibilidade". Bom, sensibilidade é uma coisa, eu sinto toda minha pele, por exemplo, e não tenho orgasmos só de tocar em objetos. Não dá pra saber. Meu cu pra esses médicos. Pensam que entendem de trans. Só sendo uma pra entender. Porque essa questão envolve duas esferas muito diferentes. Por isso que transgênero é mais interessante.

O binarismo sexual que existe vai além do macho e da fêmea. Muitos confundem sexualidade com “ter pênis” ou “ter vagina”. Ora, ser feminino ou ser masculino não tem a ver com o corpo somente. Mas tem a ver com a linguagem. Outro binarismo que se desmancha é o advindo dos transgêneros. Muitos tendem a classificar os transgêneros entre ou travestis ou transexuais: se você está descontente com sua genitália, você é um(a) transexual. Se você gosta de ter pênis e mamas (e é exuberante), então, consequentemente você é uma travesti. A classificação é tão machista quanto àquela que organiza a sexualidade em torno de “macho” e “fêmea”, uma vez que privilegia os transgêneros que nasceram com pênis e porque não permite lugar à oscilação. E se eu for uma mulher muito bem resolvida, me considero uma transexual, e gostar de ter meu pênis? Do que a sociedade deverá me chamar? Travesti, se eu acabei de dizer que me considero uma transexual?
A identidade é plástica e acredito que sempre o indivíduo deve ser consultado: “neste momento, você se identifica com quê?”
Não há um protocolo que te faça ser travesti ou transexual. Muito pelo contrário do que pensa o médico: não há uma lista de requisitos que tornam uma pessoa menos ou mais travesti.
Mudar o corpo, através de uma cirurgia de mudança de sexo, é, realmente, algo definitivo. Diferente da identidade, que se está construindo a cada instante. No entanto, a preocupação da medicina não deveria ser a de buscar normas e requisitos que componham a “verdadeira” identidade de uma transexual, uma identidade doentia; senão que deveria ser a de se voltar a estas identidades e compreendê-las para além do organismo.
Enquanto isso, vamos nos significando na língua e buscando nossos lugares. Os morfemas –a e –o já podem ter começado a deixar de significar o “masculino” ou o “feminino”.