sexta-feira, 4 de março de 2011

Os mestres loucos: o medo dos negros

Breve sinopse: Em Os mestres loucos, Jean Rouch, renomado etnoficçionista, traz ao conhecimento da comunidade do ocidente uma prática ritual, do culto hauka. De maneira simplificada (recomendo que assistam), durante a cerimônia anual, trabalhadores nigerenses, depois da concessão de um padre e da confissão coletiva, dão início às incorporações de entidades que simbolicamente representam a dominação colonial. Há um governador, a prostituta, ogeneral, o maquinista etc etc  


Crítica:
A insanidade, presente no título “Os mestres loucos”, se justifica plenamente neste documentário repleto de bizarrices e incivilidade!

Este poderia ser, muito provavelmente, um comentário tecido por boa parte da cultura ocidental(izada).
Os enunciadores desse discurso, muito provavelmente também, não estariam percebendo todo o etnocentrismo que o simples comentário encerra. E se a eles lhes pusermos em xeque seus valores, ouviremos uma refutação do tipo: “é só um comentário”, “a verdade é isso mesmo”.
Passa que histórica e ideologicamente os segmentos sociais vão incorporando discursos que ao fim e ao cabo ganham o status de “natural”. A naturalidade, no nosso caso, geralmente coincide com as práticas políticas e ideológicas (e por que não biológicas?) vigentes: as das direitas, cristãs, brancas, ocidentais, masculinas, capitalistas, belas e sadias.
Boa parte dos ocidentais sentiria repulsa, certo nojo, por algumas cenas do ritual dos hauka, tais como o sacrifício, todo o sangue, as secreções do transe, o cão servindo de alimento. Isto, na minha opinião, estaria relacionado a dois motivos fundamentais:
a)      ao medo que os ocidentais (ou melhor: os caucasianos, conforme comenta Almeida) criaram com relação ao negro e à negritude;
b)     e à incorporação passiva dos discursos vigentes, dos quais venho comentando até então.

Para ilustrar o medo dos negros, vou trazer dois ou três breves exemplos anedóticos. A atriz Elke Maravilha, russa de nascimento, numa entrevista, relata que, ao chegar ao Brasil, havia sentido certo medo dos negros, pois se tratava de um biótipo que ela a priori desconhecia:

- Veio um senhor de Minas Gerais e falou [para o meu pai]: nós temos uma fazenda em Itabira, essa fazenda é muito boa mas ela está abandonada. E tem um problema. Não sei se o senhor vai querer ir pra lá. Não sei se o senhor quer ir, pois lá só tem negros.
- Eu, no início, morria de medo dos negros. Nunca tinha visto.

O segundo exemplo, ouvi de uma paraguaia que uma vez me disse que tinha medo de visitar o Brasil, porque cá havia muitos negros.
Em Tiros em Columbine, por sua vez, Michael Moore conseguiu abordar brilhantemente este medo dos negros, presente na cultura norte americana.
Recuando bastante na história, Chimamanda nos conta que os relatos de John Locke, quando este descreve os negros como bestas cujas cabeças alcançavam a altura do peito, podem ter inaugurado uma tradição literária pautada no medo.
Então, todo este anteparo discursivo sobre o medo dos negros deve ter surgido das fantasiosas histórias que, há muito e por muitas vezes, se contou sobre a África como um continente dantesco. Delas extraiu-se um estereótipo que, por conseguinte, passou a ser estendido aos habitantes do continente.
Por outro lado também devemos lembrar que as teses de eugenia, dos séculos XIX e XX, apenas ratificaram a ideia de que a “raça” negra estaria vinculada à sexualidade exacerbada (os negros estupram) e a violência (os negros roubam e matam). Desse modo, por muito tempo associou-se os instintos mais primitivos do homem, como os sexuais, à negritude. No século XIX acreditava-se que os lóbulos frontais do cérebro do negro era relativamente reduzido, portanto, tratava-se de um órgão primitivo. O negro estaria, para os mais ferrenhos darwinistas, biologicamente mais próximos aos primatas.
Assim, o ocidente (a Europa, sobretudo) aprendeu a temer estes estranhos desconhecidos.
Já que a verdade era respaldada pelo discurso científico (e anteriormente pelo religioso), os ocidentais/caucasianos, ao longo de muitos séculos, aculturaram-se ao medo do negro. O discurso naturalizou-se e instaurou-se como verdade absoluta e incontestável.
O etnocentrismo, portanto, pode ser analisado nesse movimento de naturalização de verdade, que nem mesmo o maior dos relativismos pode combater.
Por ser assim, quem é capaz de analisar o ritual hauka? Eu, observador imerso em paradigmas diversos? Eles, cegos aos discursos naturais? A psicanálise, avaliadora dos processos psíquicos?
Eu, enquanto analista, devo fazer a ressalva de que tudo isto nada mais é de que meu próprio crivo.
Posto isso, devo continuar na tese de que também os hauka internalizam o discurso opressor e o repetem em suas práticas ritualísticas. Toda a estrutura colonizadora está sincreticamente de volta ao que se crê de mais genuíno neste povo.
No entanto, ao repetir o discurso do opressor, há o que Peucheux chama de deslizamento de sentidos. Algo novo surge na repetição. Neste caso, conforme já apontou Almeida, emerge a contestação do sistema colonial-marginalizante. O novo sentido deixa de falar tão somente dos oprimidos e passa a dizer muito sobre os opressores.
A crítica ao colonialismo se dá de forma escancarada neste ritual. Apenas não vê aquele que ainda está envolto nos véus do etnocentrismo naturalizado.