segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Paraguaia/paraguaio

A América do Sul segundo os EUA
Na semana passada vi circular pela internet alguns mapas sobre os estereótipos mundiais, segundo a visão de determinados grupos. E isso me levou às seguintes perguntas:

Você acha que os estereótipos se dão por acaso?
Por que as loiras são chamadas de burras? Por que acreditamos que brasileiro é alegre? Por que achamos que a África é miserável? Por que pensamos que o japonês só trabalha? Por que cremos que o alemão só come salsicha? Por que os mexicanos são conhecidos por serem só comedores de pimenta? Por que será que imaginamos um ianque vestindo camisas coloridas? Por que lusitano é sinônimo de estupidez? E por que dizemos que as coisas paraguaias não prestam?
Antes de responder estas questões, (as quais acredito nem precisarem de respostas) vamos nos lembrar que a constituição do estereótipo obriga a existência de duas partes: o estereotipizado (a coisa/pessoa a ser estereotipizada) e o estereotipizador (isto é: aquele que cria o estereótipo).
Sobre a coisa/pessoa a ser estereotipizada não falarei muito, acho que Chimamanda deu muito bem conta do recado: o estereótipo não é de todo equívoco, é que ele não trata seu objeto em completude. Se você viu o vídeo com calma, vai perceber que algumas das idéias de nossa colega nigeriana ainda vão aparecer por aqui. Falei também um pouco sobre estereótipos aqui.
Em muitos casos, o estereotipizado é visto a partir de suas qualidades (brasileiro = alegria / japonês = trabalho [porque trabalhar em nossa sociedade é visto como uma coisa positiva]).
Mas, na sua imensa maioria, o estereotipizado é tratado por um estigma (loira = MULHER burra / África = miséria etc).

E quero dar atenção a este ponto: quem cria este estigma?
Quem cria o estereótipo? Vamos olhar de perto o outro lado da moeda.

No caso dos estereótipos originários de estigmas, há sempre um grupo dominador (ou que se crê superior) exercendo seu poder sobre outro. O estigma ganha um nome e este nome é ressignificado neste novo contexto de injúria.
Os antigos já faziam isso, e é fácil falar sobre eles porque há muita documentação, já que, como disse a nigeriana, dos vencedores sempre haverá muitas histórias.
Se um romano possuísse alguma característica física fora do padrão esperado, logo, esta “deformidade” se transformava no nome do sujeito:
Cícero, por exemplo, é um desses nomes, vem do latim Cicerone “grão de bico”. Tratava-se de uma verruga que o avô de Cícero, o famoso orador romano, tinha no nariz. Pronto. Bastou para que toda a sua descendência herdasse a característica.
Mas não era só com os famosos. Nomes como Paulo (do latim Paulus) significava em sua origem algo como “nanico, tampinha”, dado aos sujeitos de baixa estatura ou Cláudio (de Claudius) que significou “coxo, manco”, apelido dado a quem tinha essa deficiência.
Faz algum tempo que aprendemos a dominar e a acreditar que os outros podem ser nossas propriedades (lembrem-se de todos os momentos de escravidão na história da humanidade). Dar um nome injurioso ao outro não é somente uma forma de ofendê-lo, senão de dizer-lhe que aquele corpo (ou porção de terra) fora do padrão não é dele. É uma forma de dizer que há apenas uma maneira correta de felicidade, aquela que segue o padrão de beleza, sucesso financeiro e profissional, e que coincidentemente é a maneira de viver daquele que comete a injúria. O estereótipo estigmatizante nada mais é que uma intolerância com as diferenças, além de um pleno exercício de dominação.
No caso de uma nação, o estereótipo estigmatizante jamais irá coincidir com a identidade nacional daquele povo (até porque a identificação nacional é uma coisa muito mais complexa do que imaginamos). Você acha que um africano tem orgulho de sua miséria? Você acha que um argentino pensa que ele é metido?

As bandeira do Paraguai e do
Uruguai estão invertidas
Na ilustração que abre este texto, você acha que o Equador e o Panamá se identificam com o título de “república das bananas”? Ou a Colômbia como a “Cocaína dos EUA”? Ou o Peru como "o lugar que fornece as putas dos americanos"?
Fica evidente como a mentalidade norte-americana de que a América Latina ainda é seu quintal é verdadeira. E toda aquela ideia de posse aparece naquele mapa acima. Através de um nome eu te digo qual é o seu lugar. Eu te digo que você não é você. Eu te digo quem manda aqui!
Mas se você me contrariar, e eu não puder ser seu dono, vou te taxar de outra forma: Brasil, comunistas liberais (será que isso tem a ver com o fato de Lula, do PT, ter boas relações diplomáticas com o Irã?). Paraguai, socialistas católicos (será que isso tem a ver com o fato de Lugo, aliado dos partidos de esquerda, ser um ex-bispo?)
E é justamente desses dois países que tratarei agora:
Nós, os brasileiros, tampouco estamos isentos de ser imperialistas. Também fazemos isso com nossos vizinhos. Também fazemos isso com o Paraguai.

O que significa dizer, em língua portuguesa do Brasil, que tal coisa é paraguaia? O que queremos dizer quando dizemos:
Um computador paraguaio? Um cd paraguaio? Um eletrodoméstico paraguaio?
Se formos a qualquer dicionário, encontraremos a seguinte definição para “paraguaia/o” (na verdade vamos achar somente a forma masculina no dicionário): que ou aquele que habita o Paraguai. Original do Paraguai.
Nota dicionarística: morfologicamente, a palavra funciona como um adjetivo pátrio (comida paraguaia), mas também, por substantivação deste, ela poderá ser um substantivo (A paraguaia é bela).
Todavia, como venho dizendo, o uso pelos falantes e o registro no dicionário nem sempre coincidem.
O vocábulo nas últimas décadas ganhou um novo sentido. E no que diz respeito a este novo sentido, aposto que você caiu na risada quando escrevi: “original do Paraguai”.
“Paraguaia, paraguaio, do Paraguai” é sinônimo de “falso, não verdadeiro, contrabandeado, que ou aquilo que não presta, de pouca duração, de pouco valor”.
Sendo assim, o novo sentido vem afetar somente o adjetivo pátrio. O substantivo ainda é pouco (ou nada) afetado. Exemplo: no post anterior,  quando disse que a senhora dona de um hostel não falava guarani e nem tomava tereré (ações comuns entre os paraguaios), ouvi um comentário do tipo: Que paraguaia mais paraguaia! 
Ali os dois sentidos, o novo e o velho, estão funcionando lado a lado. O primeiro “paraguaia” é um substantivo a que o segundo “paraguaia” qualifica.
O sentido pejorativo ainda não passou para a forma substantivada. Pelo menos, quando alguém me diz “Paraguaio, vem aqui!” não interpreto assim “Falso, vem aqui”.
Em espanhol, a depender do país, o adjetivo “paraguaya, paraguayo” (a forma feminina tampouco aparece registrada no dicionário espanhol, somente há uma remissão ao feminino), para além de adjetivo pátrio, não significa algo pejorativo.
Na Espanha, o adjetivo emprestou nome a um substantivo. É o nome de uma fruta da família do pêssego, de formato um pouco achatado. Nunca vi esta fruta no Brasil e acredito que ela não deva existir na América do Sul. Também não sei por que uma fruta achatada parecida com um pêssego leva o nome de “paraguaya”.
Na Bolívia e em Cuba, parece que a palavra também tem um significado próprio.
Na Argentina, no Uruguai e em muitos países hispano-falantes, o adjetivo “paraguaya” vem associado a um substantivo e juntos eles formam um substantivo: “hamaca paraguaya” que significa “rede”. Aquela rede usada para dormir, hábito oriundo dos índios. A palavra “hamaca” por si só já significa “rede”, mas nesses países “hamaca” vem quase sempre associada ao adjetivo “paraguaya”. Creio que por ser um objeto mais popular no Paraguai e difundido para as outras nações hispano-falantes a partir dele.
No Paraguai, não se diz “hamaca paraguaya” obviamente. Neste país, existe uma palavra formada a partir do seu diminutivo: “paraguayito”. Dizer que fulano é “paraguayito” equivale a dizer que fulano é um espertinho e que sabe dar um jeitinho (coincidência com o “jeitinho brasileiro”, não?).
Notem como a forma pejorativa do adjetivo é coisa bem brasileira.
É que o sentido pejorativo tem origem em um estereótipo feito pelos tupiniquins. A partir de uma situação dada, a de compras, e um lugar específico, uma ou duas fronteiras, os brasileiros generalizaram a característica para todo o território do país vizinho.
A zona franca de Ciudad del Este, e mais recentemente a de Pedro Juan Caballero, realmente possibilita e incentiva a entrada de produtos muito baratos e a preços inferiores no Brasil. Além de não corresponder a todo o território nacional, as zonas referidas têm muito pouco de Paraguai. A imensa maioria dos comerciantes são coreanos, chineses, turcos, árabes em geral. A minoria deles são brasileiros e paraguaios. Os produtos comercializados nenhum é fabricado no Paraguai. E os sacoleiros são todos brasileiros. Então, por que raios os brasileiros dizem “paraguaio” para as coisas falsas? Porque e tão somente porque é o Paraguai, vítima de sua pobreza, que empresta o território a este tipo de comércio.
Identidade é aquilo com o que queremos ser reconhecidos. E qual é a identidade nacional paraguaia? É esta a identidade com a qual os paraguaios se identificam?
Claro que não.
De uma maneira muito, mas muito simplificada, posso afirmar que o povo paraguaio se reconhece pela mestiçagem guarani com a branca, pelo uso da língua guarani, pelos hábitos alimentares como a sopa paraguaia, o bori bori, a chipa, o puchero, muita carne e muita mandioca etc etc. pelo tereré e pelo mate; na dança, pela polca e pela guarânia (entre muitas outras coisas). A identidade paraguaia se associa pelo próprio orgulho de sua identidade, facilmente comprovado por uma simples publicidade de cerveja, cujo slogan é “ñande mba’e teete” (o que é nosso).
Disso, aposto que a maioria dos brasileiros não sabe!
Foto do meu acervo familiar. Minha prima Dolly, dançando a polca executada
por meu pai e meus tios.
Além de revelar a profunda ignorância de um brasileiro, quando este faz uso de “paraguaio” num sentido depreciativo, revela que o Brasil é também imperialista. Ao dizer que o Paraguai não presta, o Brasil diz que o país guarani é sua propriedade, diz que a fronteira é seu lugar de compra. Do mesmo jeito que os norte-americanos dizem que o Peru é local fornecedor de puta DELES. (Veja no mapa: “Our bitches”).
Dar nome aos outros sempre foi uma maneira de dominar. As comunidades indígenas que o digam. Quase nenhuma sociedade indígena é chamada pelo nome que ela mesma se dá. Sempre é uma visão de fora que prevalece, seja de uma tribo inimiga, seja dos brancos (que no fundo não seria mais que outra tribo inimiga).
O Paraguai já está acostumado com este tipo de dominação. Desde a chegada dos espanhóis, à redução dos padres jesuítas, à Guerra do Chaco e à Guerra da Tríplice Aliança, os nomes sempre vieram de fora.
O que o brasileiro faz atualmente é exatamente repetir a opressão, do qual também ele é vítima (veja a nossa colonização e veja a neocolonização americana).
No entanto, a forma como o Brasil estereotipiza o Paraguai é ainda mais perversa, pois os brasileiros se apossam de um nome já existente e provocam uma mudança semântica. Renomeamos e ressignificamos um nome que já existe. Dissecamos a identidade nacional paraguaia, presente em seu adjetivo pátrio, e lhe atribuímos uma carga injuriosa.
A língua não está tão distante assim da gente. Ela só existe, porque as pessoas existem. E agora eu te pergunto: você, praticante do português brasileiro, vai continuar avalizando o uso dominador de expressões colonizadoras? Quer continuar repetindo a opressão a qual você abomina?
Pensem bem, não se trata apenas de uma atitude politicamente correta.



quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Turista na língua


Detesto o turismo. Detesto, sobretudo, os brasileiros turistas.
Com todas as ressalvas e entendendo a diversidade do país, temos de convir que no tipo brasileiro a corrupção está instaurada. Temos palavras que oficializam essa nossa conduta: “malandragem”, “jeitinho”. Expressões também: “jeitinho brasileiro”, “tirar vantagem” etc.
No Brasil, é um absurdo que você pense no bem coletivo antes de pensar no bem individual. Para ilustrar isso, basta lembrar do comportamento do motorista no trânsito ou lembrar de quantas vezes, fazendo um mea culpa, furamos uma longa fila. A corrupção, do mais baixo ao mais alto rango, é uma tradição (também) brasileira. Digo “também” porque diversos países latino-americanos dividem conosco essa característica.
Aliar este caráter ao “fazer turismo” dá um resultado muito daninho. O turista brasileiro quer tirar vantagem de todos os momentos de sua viagem. Ele não perde tempo. Quer ver o belo e somente o belo. Quer desfrutar da boa culinária local. Quer badalar.
Dormir bastante num passeio turístico: nem pensar. Não se pode “perder” nenhum segundo.
Por ser assim, considero o turismo como uma forma de pilhagem. O turista saqueia os benefícios locais e zarpa dali deixando sua sujeira.
O mais chato de tudo isso é que ele volta para a sua casa sem ser modificado pela experiência, já que ele não vivenciou o lugar e tentou enxergar o destino com o seu próprio olhar.
Antes de comentar o que a lingüística tem a ver com isso, vou dar um exemplo que para mim é comum.
Muitos brasileiros me perguntam como eu consigo viver no Paraguai, um país tão pacato, com uma língua de índios e com hábitos alimentares estranhos.
Em Assunção é comum ver as ruas invadidas por brasileiros, afoitos por visitar todas as atrações turísticas, por conhecer a noite assuncena e, se ainda sobrar tempo, comprar os baratíssimos eletro-eletrônicos (e ultimamente tenho visto alguns estudantes-empreendedores que chegam ao país para fazer uma pós a distância, mais barata, mais rápida e que ainda tem validade no Mercosul). A estes mal informados, o passeio vai ser nada prazeroso: as atrações turísticas da capital podem ser visitadas em um dia, a noite da capital só existe no final de semana e os produtos baratos não são vendidos na capital (esse é o resultado do estereótipo que fazem os brasileiros do Paraguai como o país do contrabando).
Assunção não é um lugar para ser consumido. Você pode até tentar consumir Assunção, mas vai voltar decepcionado para casa.
É que aqui você tem de abrir mão, pelo menos um pouquinho, da sua cultura e da sua visão de mundo.  
Amigo, não se hospede em um hostel, mesmo que você pense que lá é o lugar de gente descolada. Lá não haverá nenhum paraguaio, a não ser a dona do lugar (que não fala guarani e que não toma tereré). Num hostel em Assunção você vai aprender muito da cultura americana e saberá que na América eles falam inglês. Vai aprender muito da cultura alemã. Vai aprender muito da cultura brasileira.
Amigo, não ande de táxi. Você vai perder a oportunidade de comprar uma “rica chipa” dos vendedores ambulantes.
Amigo, não visite só museus e shoppings. Os mercados populares são um show à parte.
Mas esses conselhos lhes dou num tom bem brasileiro. Você aproveitará MELHOR seu passeio se seguir meus conselhos.
Agora vai a dica de ouro: tenha olhos para a diferença. Entenda que ali a cultura é outra.
Contudo, ter olhos para a diferença não é garantia de que você sairá transformado. Como diria uma grande lingüista: “o reconhecimento da diferença, no sistema capitalista, não implica sua aceitação”.
Posso reconhecer que eles são diferentes, mas não quero aceitá-los. Os paraguaios são exóticos, porque o exótico é o outro. (A palavra “exótico” guarda até hoje o etnocentrismo na linguagem: ex-ótico, aquele que está além do meu campo de visão, ou seja, o outro). Como posso aceitar aquilo que é exótico? Com tanta história europeia sobre os índios como poderei aceitar esses canibais, despudorados e incivilizados?
Perceber que há diferenças, por outro lado, apaga o fato de que há muitas semelhanças entre brasileiros e paraguaios. Mas isso pouco importa, o enfoque sempre tem de recair na diferença!
Esse é o turismo praticado pelos brasileiros aos países inferiores. Veja aqui, o turismo brasileiro praticado aos países superiores.


Sobre a língua:
O turista brasileiro, dado a sua escassa alteridade, tem muita dificuldade com a língua no Paraguai. A falta de alteridade faz com que o indivíduo procure sempre os correspondentes na sua língua materna. E aqui me desculpem, terei de citar uma passagem linda de um texto de Revuz: “o que se estilhaça ao contato com a língua estrangeira é a ilusão de que existe um ponto de vista único sobre as coisas, é a ilusão de uma possível tradução termo a termo, de uma adequação da palavra à coisa”.
Como o espanhol tem muito léxico em comum com o português, o turista brasileiro não se desespera tanto. Ele sequer abre mão de seu português, arranha bem pouco no portunhol. Ele vai se zangar quando um paraguaio lhe falar em guarani.
A cosmovisão guarani é quase que completamente opaca ao brasileiro. E o termo a termo não vai rolar mesmo.
Mas todo o embaraço se dá porque o brasileiro acaba sendo um turista na língua, ele também quer cometer a pilhagem na língua.
Mas como aprender um idioma vai além de um consumo, não há um curso e nem um método que vá fazer alguém aprender milagrosamente um idioma estrangeiro, a frustração sai à baila. E o Paraguai se torna um país detestável: sequer ele pôde entender algo de guarani.
Ainda bem que o guarani está longe de pertencer ao mercantilismo idiomático, ele continua sendo ainda uma língua do povo.
Muitos brasileiros odeiam o Paraguai. E eu só tenho isso a declarar: Rohayhy eterei, che Paraguai!