Muitas vezes quando vamos a um restaurante de comida rápida nos deparamos com um gracioso planfleto forrando nossas bandejas. Se você está acompanhado, o tema da mensagem acaba sendo comentado pelo grupo, ainda que rapidamente. Mas se você está sozinho, aquele simples pedaço de papel se torna um companheiro e te distraí enquanto se come.
Parece tão cool. Os desenhos, as ideias são tão legais.
É aí que você se engana! Por trás da feição cool destes anúncios se esconde um discurso de emburrecimento de massa. Aquele panfleto está nada mais do que simplificando coisas muito complexas, porque quem o faz acredita que você, consumidor, prefere a rapidez (até mesmo a imediatez do prazer do sabor) ao mundo complexo em que estamos inseridos. Você é tratado com um burro, incapaz de compreender o outro e a si mesmo. Ao simplificar, a mensagem se torna errada e as informações bastante inverossímeis.
Vou analisar um desses panfletos, veiculados por esses dias nos restaurantes Mac Donalds do Brasil. Espero ao final da análise que você entenda algumas das manobras da linguagem utilizadas pela culturalização de massas.
Eis o panfleto:
Senti-me na obrigação de esclarecer este anúncio, pois, mais uma vez, é tácita (e rídicula) a maneira como a língua(gem) é abordada.
Senti-me na obrigação de esclarecer este anúncio, pois, mais uma vez, é tácita (e rídicula) a maneira como a língua(gem) é abordada.
Vejam, que bacana: "todo o mundo diz meu amigo". Venham, vamos comigo ver como diferentes "culturas" dizem "meu amigo". Mas, olha, preste atenção, sou eu, branco, rico, inteligente e que como no Mac Donalds quem vou dizer a você, também branco, rico, não tão inteligente mas que também come no Mac Donalds, como a cultura dos outros, muito distante da minha, diz "meu amigo".
De cara, o preconceito velado e a exotização da cultura do outro se (re)vela. E se analisamos mais de perto a linguagem, tanto no sentido semiótico quanto no linguístico, veremos que nem tudo é tão velado.
A começar pelo título do panfleto, o restaurante joga com o sentido da expressão "todo mundo". "Todo mundo"pode significar "o mundo inteiro" e também "muitas pessoas". Mas notem que entre as palavras "todo" e "mundo", há um artigo "o": "todo O mundo". Deste modo, somos induzidos a pensar que se trata mais do primeiro sentido da expressão. Se levamos em conta o desenho do globo terrestre por debaixo do título é ainda maior nossa inclinação para o sentido apontado.
O primeiro problema está revelado, já que ficamos esperando saber como é "meu amigo" em todas as línguas do mundo. O panfleto apenas trata por volta de uma trintena de idiomas.
Ainda no título há um problema menor, pois também está prometido que eles mostrarão como se "DIZ" "meu amigo". Na verdade, ainda que os dizeres dos personagens estejam mimeticamente copiando a fala (já que se utiliza de um recurso comum nas histórias em quadrinhos: os balões), ela está muito distante de ser uma "fala" real. Entendo que o verbo "dizer" tenha muitos sentidos além do "dizer".
Vamos agora dividir nossa análise em dois vieses: um semiótico e depois um linguístico.
Semioticamente, ou seja, a partir da observação das imagens e seus significados, notamos que há uma tremenda estereotipização das culturas. Vikings, sombreros, baguetes, vacas, deuses, colares, vampiros, macarrão, dragão, bonecas, leprechaus e elefantes representam muito significativamente, nesta ordem, os dinamarqueses, os mexicanos, os franceses, os holandeses, os gregos, os havaianos, os romenos, os italianos, os chineses, os russos, os irlandeses e os indianos.
Ao tratar do estereótipo o restaurante contribui para massificar as pessoas, nivela-se todo mundo. Estamos diante do "Perigo das histórias únicas", que conforme discorre Chimamanda Adichie, nesta palestra, o estereótipo não é de todo equívoco, apenas não trata o outro por completo! Incompletude perfeita para figurar num panfleto que forra a bandeja de um restaurante de comida rápida.
Três casos particulares merecem uma análise pormenorizada: o do grego, o do tupi-guarani e do latim.
Há um equívoco enorme na representação imagética desses três "idiomas" .
Grego: seriam os deuses os falantes do grego? O que quer representar aquela medusa verde dizendo "philos mou!"? (É o que ocorre também para o romeno).
Latim: seriam os franciscanos os falantes de latim?
Tupi-guarani: seguramente, o branco ao lado do índio é um antropólogo. Por que os índios não são amigos de outros índios? O que um branco está fazendo ali?
Os três casos têm em comum que o estereótipo está completamente equivocado. E então caímos no quesito linguístico. No meio de línguas modernas, introduz-se três línguas antigas. Não sabemos se o autor do panfleto quis abordar o grego clássico ou o grego moderno, de qualquer modo se trata de duas línguas bem diferentes (a relação entre elas é a mesma que há entre o latim e o português brasileiro), mas supomos se tratar da antiga, já que modernamente não há gregos de toga, tampouco se venera deuses mitológicos na Grécia moderna.
No caso do latim, a língua que hoje em dia está limitada ao reduto clerical, a imagem trazida à baila é a de um padre franciscano, que escreve a pena (imagem que nos remete as práticas ocidentais de uma religião que remonta ao século XVI). Que latim é esse? O clerical, o do Vaticano, o clássico?
O desastre é ainda maior para o tupi-guarani. De que língua se está falando em concreto? Tupinambá, guarani (e qual guarani)? Tupi-guarani não é uma língua, é uma família linguística! É como se alguém afirmasse que fala germânico, românico ou simplesmente itálico, ou seja, nenhuma língua específica! Está claro que o restaurante não conhece nada sobre línguas, muito menos sobre as indígenas. E, ao optar pelo estereótipo, ele apaga toda a diversidade dos idiomas indígenas, oculta, assim, as demais, relacionadas com outras famílias/troncos linguísticos, como o Macro-Jê ou o Aruaque, por exemplo.
Mais uma vez o ponto de vista do europeu está posto.
Neste sentido, ainda devo falar da grafia apresentada para os diversos idiomas. Todos eles estão apresentados a partir do alfabeto latino. Qual alfabeto é usado para as línguas europeias mesmo? E para o japonês, o grego, o coreano, o vietnamita, o turco, o árabe, o chinês, o indonésio, o russo e o hindu? Em que alfabeto os seus falantes escrevem?
Letrinhas estranhas poderiam espantar a clientela do Mac Donald's no Ocidente, não? Mas o engraçado é que, para certos idiomas, a ortografia é respeitada demais. Notem o espanhol, para este respeitou-se a pontuação, como podemos constatar pela exclamação invertida no começo do enunciado (¡Mi amiga!). Desse modo, o panfleto vai mostrando sua injustiça exotizante e etnocêntrica.
Provavelmente o anúncio deve ter vindo dos EUA, depois adaptado para o português. É pelo russo que percebemos essa meleca de adaptação: Moi Droog!
O "o" duplo demonstra uma regra ortográfica do inglês, que o pronunciaria como algo semelhante a um "u". Em português o duplo "o" não tem sentido. Os brasileiros, respeitando as regras de ortografia do português, tenderiam a pronunciar um "o" longo, quando na verdade a adaptação ortográfica deveria ser "Moi drug".
Assim, já posso dizer que o panfleto, além de não respeitar as culturas alheias, desrespeita a ortografia do idioma oficial do Brasil.
Aposto que quando você come ingenuamente seu hambúrguer num desses restaurantes, você não percebe como sua inteligência é menosprezada.
Nem "todo o mundo" conhece a fundo as informações específicas das línguas abordadas. Nem "todo o mundo" pode conhecer as culturas retratadas. Mas o que o panfleto sem dúvida faz é tratar de emburrecer "todo o mundo".
Presta atenção. Não seja um leitor passivo!
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