quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Presidenta?

Ultimamente têm-se comentado bastante sobre a forma "presidenta" em língua portuguesa.
O fato me faz pensar em duas coisas: i) muitos se sentem aptos a legislar sobre a língua (mas não são ou não podem) e ii) como a língua se torna algo material, de uma forma que os falantes lidam tranquilamente com a metalinguagem.
O primeiro ponto é algo de muita discussão na Linguística brasileira. Por exemplo, sobre a lei de Aldo Rebelo, aquela que bania os estrangeirismos da língua vernácula, o professor Rajan deixou claro seu ponto de vista. A discussão inclusive se transformou num livro dialógico: "A linguística que nos faz falhar". Recomendo! Neste livro, falou-se muito sobre como os linguistas são ignorados quando o assunto legal envolve a linguagem.
O professor Sírio Possenti também assinala veementemente a postura da maioria dos linguistas quase que semanalmente em sua coluna no Terra Magazine. Sobre o assunto, sugiro a leitura deste seu breve artigo: Não há trabalho mais complicado que o dos linguistas
Em geral, os linguistas costumamos fazer uma comparação com as outras ciências. Para elas a voz do cientista não está afastada da prática de seu campo. De certo modo, podemos dizer, então, que o discurso da verdade científica não respalda a ciência da linguagem.
Isso me leva ao segundo ponto: a lingua(gem), objeto da Linguística, não tem a mesma relação humana que os demais objetos das outras ciências. O senso comum pode muito bem se interessar pela vida, pelos processos físicos e químicos, pelas sociedades e pelo comportamento, mas é através da linguagem que este interesse se manifesta.
Acredito que por esta proximidade (ou melhor: inerência) é que qualquer um se sente apto a desenvolver suas teses sobre a linguagem. Não que o senso comum não deva fazê-lo, pelo contrário! No entanto, quando se fala sobre linguagem o que falta é um rigor científico-metodológico ou até mesmo um teor reflexivo rigoroso. O senso comum e muitos dos intelectuais não formados na área medem a linguagem por um viés normativo e, às vezes, moralista.
O que falta a estes sujeitos é o distanciamento de suas crenças, normas, moral, e de certa maneira, daquilo que está por trás de todas elas, as suas ideologias.
Abrir mão da ideologia pode ser algo impossível para alguns, já que é ela produto da educação linguística, dos construtos sociais de entorno e de suas crenças, inclusive, das religiosas.
Então entramos num daqueles famosos ciclos viciosos: a nova sociedade, depois de transmitida sua identidade aos mais jovens, novamente se sente apta a decidir o que se fazer com sua língua.
Mandar e desmandar em uma língua é tão cultural quanto a religião católica na América Latina, quanto ao carnaval brasileiro, quanto ao amor que sentem os sulistas pela carne.
Mandar e desmandar na língua também tem relação com o poder. 
Mas assim como a religião católica não existia na América Latina antes da colonização, assim como o carnaval não existia antes do catolicismo e o amor pela carne dos gaúchos não existia antes dos bois na região, os linguistas ainda estamos buscando nosso lugar ao sol. Já que a transmissão de saberes não é completamente passiva tampouco é linear.
Resta-nos lutar contra (ou aliar-nos) àqueles que detêm o poder e, por consequência, detêm o poder linguístico.
Estas são as entraves que a Linguística enfrenta depois de quase um século de sua constituição como ciência: quase ninguém sabe que nós, os linguistas, existimos.
Entre o senso comum, entre aqueles que detêm o poder e entre os linguistas existe uma gama enorme de teorias sobre as línguas. Contudo, são estas controvérsias que fazem com que, maior ou menormente, a ciência avance e a Linguística aos poucos vá mostrando sua cara (e sua “utilidade”).
Voltemos ao caso da ocorrência da palavra "Presidenta" em língua portuguesa para que possamos ilustrar como há muita controvérsia em língua.
Se fóssemos às ruas e perguntássemos o que pensa a população sobre a forma "presidenta", escutaríamos muito frequentemente um "não sei" ou "eu não sei português" ou "eu não sei gramática" ou ainda "tenho que ver no dicionário". E aqueles que respondessem afirmando que "presidenta" existe ou não existe, estaria embasando sua resposta no conhecimento que têm da gramática normativa (ou no dicionário). É que o conhecimento metalinguístico dos falantes está quase que reduzido a esta gramática e ao dicionário. 
O Houaiss e o Aurélio registram ambas as formas, o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras também aceita as duas ocorrências.
Até o professor Pasquale não enguiça com o uso de “presidenta”. Claro, já que quase todas as gramáticas normativas admitem. O que ele faz é dizer que “presidenta” é uma forma desnecessária e incomum. Veja você mesmo: aqui.
Mas todas as gramáticas normativas estão de acordo? Nem todas: a controvérsia também visita a norma: por que se deve aceitar o feminino de presidente? Desde quando se aceita o acréscimo do morfema feminino em "ent-"? Porém, depois de o fato de Dilma se eleger, acredito que todas as gramáticas entrarão em acordo.
O máximo do triunfo de uma mudança linguística é quando ela consegue figurar numa gramática de normas. A eleição de Dilma pelo menos já conquistou essa mudança!
Passemos ao jornalismo, já que é ele que faz (ou tenta fazer) a mediação, usando-se da linguagem (e da norma), entre a ciência e o senso comum.
Uma notícia saída na Folha on-line (24/04/2010) leva o seguinte título:

Dilma copia ex-presidente chilena e quer se lançar candidata a "presidenta"

Não sei se se trata de uma cópia, afinal o espanhol é outra língua! Mas adiante comentarei essas semelhanças e diferenças entre o espanhol e o português.
Logo no segundo parágrafo o repórter alega:
“As palavras 'presidente' e 'presidenta' estão corretas, 'mas a forma feminina é pouco usada'", diz Thaís Nicoleti, consultora de português do Grupo Folha-UOL”.
Com este trecho fica claro como os jornalistas também têm uma visão normativa sobre a linguagem.
Correção passa pela norma e é disso que o jornalista está tratando. E é esta correção o que unicamente importa de modo que aqui fica claríssimo que também o repórter confunde gramática (normativa) com a língua em si.
O alvoroço todo se faz em torno do suposto erro, já que se trata de uma forma rara na norma.
Agora vamos observar a “opinião” dos linguistas. Sim, falo de opinião, porque em ocorrências sociais como uma eleição presidencial, muitos linguistas deixam de lado seu rigor científico e usam de seu prestígio ou destreza argumentativa, enfim, sua também ideologia para propagar as suas crenças.
Nesta mesma reportagem se diz: “Maria Helena de Moura Neves, professora do Mackenzie e da Unesp, concorda que não é necessário usar "presidenta"".
Neste trecho não fica claro o que diz a linguista. O simples verbo “concorda” leva a entender que a opinião é mais do jornalista que da linguista. O linguista não julgaria a necessidade do uso, constataria e analisaria essa necessidade. Aliás, é o que o resto do parágrafo faz ao trazer o trecho realmente enunciado pela profissional da linguagem: “mas diz que, do ponto de vista da campanha, ‘faz sentido, porque valoriza o fato de o PT estar lançando uma mulher à Presidência’”.
Se faz sentido para valorizar a presença feminina, logo o uso é necessário.
Neste caso, mais uma vez a norma, aquela admirada pelo jornalismo, falou mais alto.
Outra especialista evocada, que duvido ser linguista, é apresentada ainda na notícia “Também da UnB, Susana Moreira de Lima diz que ‘o correto é usar 'presidenta', pois é a palavra registrada para designar a mulher que preside’: ‘A discussão é saudável, porque traz a questão do machismo na linguagem’".
De novo norma e correção funcionando como lentes para a análise.
O assunto deu o que falar e muita coisa se publicou na imprensa sobre o tema.
Esperei a coluna do Possenti, mas ele me disse que se tratava de um assunto tão banal que não valia a pena gastar as velas com um defunto barato.
Mesmo assim acabei encontrando um de seus artigos intitulado "Gênero?" em que ele discute o discurso do politicamente correto, quando se enuncia “amigos e amigas”.
O que une o uso de “Presidenta” e as formas politicamente corretas de “fulano e fulana” é, de fato, a questão do machismo linguístico. Mas não é essa a conclusão mais imediata a que chega Possenti.
O professor apresenta a tese de Martin, com a qual concorda. Com muita destreza Martin argumenta que o morfema “–o” não representaria o masculino.
É pela sintaxe que ele chega a esta conclusão.
Frases como “Pedro é alto” e “Maria é alta”, em oposição às agramaticais “Pedro é alta” e “Maria é alto”, geram uma primeira regra:
1)      O predicativo concorda com o sujeito
No entanto, há outros dados na língua:
i)                    “Está cheio de meninos na praia”;
ii)                   “Está cheio de laranja na geladeira”;
iii)                 “Aqui é bom”;
iv)                 “Tomar uma cerveja seria ótimo”.
Todas as palavras em negrito e grifadas estão no masculino (notem que o feminino tornaria as frases agramaticais). E, então, por que aparece o masculino, com o que eles concordam? Nas três primeiras sentenças não há um sujeito para se concordar e, na quarta, "ótimo" estaria relacionado com uma oração “tomar uma cerveja”.
O argumento dos gerativistas é de que seria estranho se houvesse a concordância de feminino com feminino, por um lado, e de masculino com masculino, com nada e com orações, por outro.
Orações ou a ausência do sujeito, naturalmente, não possuiriam o gênero. Isso os levou a pensar que, citando Possenti, “o que estamos acostumados a chamar de masculino na verdade não passa de um caso de ausência de gênero (ou de não feminino)”. E a regra de concordância esboçada em 1 deveria ser modificada para:
2)      “A concordância só ocorre quando o elemento a ser flexionado se liga ao feminino. Nos outros casos, a palavra que sofreria concordância fica como está”.
Ora, até aqui acordo em partes. Acho interessante que as regras sejam mais parcimoniosas. Porém, não estou de acordo com a seguinte ideia:

“... a forma básica dos nomes (e dos adjetivos) é não marcada quanto ao gênero. Assim, ‘menino’, ‘sapato’ etc. não seriam formas masculinas, mas apenas não femininas, isto é, não marcadas quanto ao gênero. O ‘o’ final não é uma desinência de masculino, mas uma espécie de vogal temática, cuja função é apenas classificar palavras, como no caso dos verbos. Observe-se que algumas palavras têm vogal temática ‘e’, como ‘valente’, e não se flexionam quanto ao gênero”.

a)      Não acho que a forma básica dos nomes seja não marcada. Pelo contrário, ela é marcada e historicamente ela é cada dia mais marcada. Caso contrário, em muitos discursos não ouviríamos “companheiros e companheiras”. Tampouco os grupos minoritários como o de homossexuais não apagariam essas designações que ao longo de tanto tempo vem servindo para categorizar “homens” e “mulheres”, o “macho” ou a “fêmea” etc.
No latim clássico, o gênero não estava marcado de forma simples. Além do gênero, os morfemas nominais marcavam o caso, o número e a declinação. Por exemplo, considerando o nominativo singular, o “-a” geralmente servia para classificar as palavras femininas da primeira declinação. No entanto, palavras como “poeta”, que eram masculinas, pertenciam a esta primeira declinação. O “-a” também caracterizava muitas palavras do gênero neutro, o qual não aparecia nas primeiras declinações. O masculino, via de regra, era marcado pela vogal “u”, e ocorria na segunda, quarta e quinta declinações. Muitas palavras latinas, por outro lado, eram completamente arbitrárias quanto ao gênero, não havia uma vogal que pudesse claramente defini-las como neutras, femininas ou masculinas. Apenas o conhecimento do falante poderia atribuir-lhe o gênero (ex: dei- “Deus”). O português se desfez do gênero neutro e categorizou todos os seus nomes em masculinos ou femininos. Geralmente o morfema “-a” serve para designar o feminino e o morfema “-o” o masculino. Quando não é assim, o gênero pode ser identificado pelo artigo: “o poeta”, “o creme”, “o dente”, “a personagem”, “o tubarão”. Ou ainda, por palavras que já se tornaram consagradas para um dos gêneros “leão”, “boi” etc. e que geralmente aceitam o artigo “o” para designar o masculino (o leão, o boi) ou o artigo “a” para designar o feminino (a atriz). Através do surgimento do artigo e da eliminação do neutro, o português conseguiu deixar ainda mais forte o contraste entre os gêneros.

b)     Ainda nesta citação, questiono:

        "Assim, ‘menino’, ‘sapato’ etc. não seriam formas masculinas, mas apenas não femininas, isto é, não marcadas quanto ao gênero”
Como que não seriam formas masculinas? Juro que quando meu primo nasceu, quando o médico disse que era um menino, ninguém pensou que se tratava de um andrógeno.
É que o gênero morfológico está intimamente relacionado com o gênero biológico. E sempre em língua portuguesa o gênero biológico masculino foi reconhecido pela marca do morfema “-o” e o feminino pelo “-a”. E é essa justamente a briga da comunidade LGBT, que questiona a sexualidade para além do gênero biológico.

c)    E:
   
    “O ‘o’ final não é uma desinência de masculino, mas uma espécie de vogal temática, cuja função é apenas classificar palavras, como no caso dos verbos”.
Essa é uma antiga ideia do Mattoso Camara que faz muito sentido para o contexto estruturalista em que nasceu. O estruturalismo precisava classificar a língua pela língua, mas hoje já não fazemos somente isso, já que sabemos que língua vai além de seu núcleo duro. A vogal ‘o’ pode muito bem funcionar como vogal temática, que classifica os nomes, mas ela TAMBÉM, pelo menos na Pragmática, serve para designar o masculino.

d)     E também:
       
     "Observe-se que algumas palavras têm vogal temática ‘e’, como ‘valente’, e não se flexionam quanto ao gênero”.
Eis o ponto fundamental da discussão.
É que gênero, neste caso, aparece além da palavra: “o valente”, “a valentona”, “o cara valente”, “a mulher valente”. Nestas orações, realmente não houve nenhuma mudança morfológica no nome “valente”. Contudo, o gênero estava marcado de uma outra forma morfológica: no artigo!
E atualmente a coisa é ainda mais grave, até as palavras com vogal temática “e” se flexionam, sim, quanto ao gênero. Não é mesmo, presidenta?

Para mim, não é que o “o” represente uma forma sem gênero. Pelo contrário, demonstra como o machismo foi se impondo também na língua. Em orações sem sujeito como “Está cheio de meninas na praia” ou nas impessoais, como “Faz frio”, o masculino ocorre porque coube ao masculino concordar com esse tipo de orações.
São duas características importantes que não devemos ignorar: 1) a língua portuguesa faz concordâncias (veja o caso de “Maria é alta”); 2) a língua portuguesa não tem o gênero neutro: todos os nomes (e suas partículas satélites) ou são masculinos ou são femininos.
Dessas duas premissas, quando a concordância tem de ser feita com algo que não é um nome (orações ou ausência de sujeitos), o masculino impera.
O masculino sempre foi o gênero mais importante em português e não seria de estranhar que a concordância se desse com ele! E se tivéssemos de substantivar uma oração, qual seria o gênero do artigo usado na construção? Adivinhem!
“O navegar é preciso foi repetido constantemente na história lusa”
Para substantivar também usamos o masculino.
Para generalizar também usamos o masculino.
Sírio diz: “as palavras ditas masculinas não são marcadas. Por isso é que podemos dizer que ‘ o circo tem dez leões’, mesmo que tenha cinco leões e cinco leoas, mas não podemos dizer, no mesmo caso que ele tem dez leoas”.
Oras, pode-se dizer o que se quer. Mas não é disso que se trata. É que, simplesmente, o masculino ganhou esse poder de generalização e é assim que o aluno aprende na escola.
As formas masculinas são historicamente marcadas!
E essa história morfológica do português também é muito parecida com a do espanhol. Mas no caso deles, é muito pior, porque a RAE (Real Academia Española) proíbe ainda da norma muitas formas femininas.
Muitas profissões são usadas na forma masculina: “el médico”, “el ingienero”. E outras somente no feminino: “La empleada doméstica”.
Mesmo que a população de muitos países hispano-falantes use o gênero morfológico de acordo com o gênero biológico do profissional, a RAE veda da norma essa concordância. (Se bem que nos últimos anos a RAE tem se aberto mais a este tipo de mudança). 
É claro que estamos diante de outro caso em que o masculino prevaleceu. E note-se que se trata de profissões canonicamente exercidas por homens. 
Lembro-me de que uma vez uma deputada espanhola usou a palavra “miembra” em um de seus discursos políticos e a imprensa transformou-a em alvo de chacota. Veja você mesmo a polêmica.
Por isso também é complicado dizer que “Dilma copiou a ex-presidente chilena”. Estamos diante de casos em que o nível de machismo linguístico é um tanto quanto diferente.
Enquanto o senso comum ainda vê a questão por um ponto de vista normativista, enquanto os gerativistas preferem deixar a cultura de lado e fingir que o masculino não existe em português, não enxergamos o que é nítido: o masculino sempre vai prevalecer.
Será que podemos legislar sobre a língua? Será que podemos desencadear uma mudança linguística repentina?
Confesso que mesmo sendo linguista, eu não tenho esse poder (até porque, como dizia, os linguistas não têm muito valor social). E garanto que você também sozinho não pode fazer nada. Mas, e juntos? Mas, e no decorrer do tempo?
Não sei, os fatos estão sendo construídos. Temos uma mulher eleita. Temos grupos feministas discutindo sobre a língua. Há grupos minoritários banindo o sexismo de seus jargões.
Qual a força de expressão desses fatos? Qual será a repercussão na linguagem? Ainda é cedo para avaliar! Certo é que a eleição de uma presidenta é muito mais relevante que a luta de movimentos sociais. Ela tem o poder, os movimentos não.
Mas é interessante notar como a linguagem vai se materializando, a metalinguagem vai acontecendo de forma saudável no senso comum.
Espero que com estas palavras fique claro qual é também a minha ideologia. E que fique claro que não se trata de uma ideologia espúria!


domingo, 7 de novembro de 2010

Mac Donald's

Muitas vezes quando vamos a um restaurante de comida rápida nos deparamos com um gracioso planfleto forrando nossas bandejas. Se você está acompanhado, o tema da mensagem acaba sendo comentado pelo grupo, ainda que rapidamente. Mas se você está sozinho, aquele simples pedaço de papel se torna um companheiro e te distraí enquanto se come.
Parece tão cool. Os desenhos, as ideias são tão legais.


É aí que você se engana! Por trás da feição cool destes anúncios se esconde um discurso de emburrecimento de massa. Aquele panfleto está nada mais do que simplificando coisas muito complexas, porque quem o faz acredita que você, consumidor, prefere a rapidez (até mesmo a imediatez do prazer do sabor) ao mundo complexo em que estamos inseridos. Você é tratado com um burro, incapaz de compreender o outro e a si mesmo. Ao simplificar, a mensagem se torna errada e as informações bastante inverossímeis.
Vou analisar um desses panfletos, veiculados por esses dias nos restaurantes Mac Donalds do Brasil. Espero ao final da análise que você entenda algumas das manobras da linguagem utilizadas pela culturalização de massas.
Eis o panfleto:
Senti-me na obrigação de esclarecer este anúncio, pois, mais uma vez, é tácita (e rídicula) a maneira como a língua(gem) é abordada.
Vejam, que bacana: "todo o mundo diz meu amigo". Venham, vamos comigo ver como diferentes "culturas" dizem "meu amigo". Mas, olha, preste atenção, sou eu, branco, rico, inteligente e que como no Mac Donalds quem vou dizer a você, também branco, rico, não tão inteligente mas que também come no Mac Donalds, como a cultura dos outros, muito distante da minha, diz "meu amigo".
De cara, o preconceito velado e a exotização da cultura do outro se (re)vela. E se analisamos mais de perto a linguagem, tanto no sentido semiótico quanto no linguístico, veremos que nem tudo é tão velado.
A começar pelo título do panfleto, o restaurante joga com o sentido da expressão "todo mundo". "Todo mundo"pode significar "o mundo inteiro" e também "muitas pessoas". Mas notem que entre as palavras "todo" e "mundo", há um artigo "o": "todo O mundo". Deste modo, somos induzidos a pensar que se trata mais do primeiro sentido da expressão. Se levamos em conta o desenho do globo terrestre por debaixo do título é ainda maior nossa inclinação para o sentido apontado.
O primeiro problema está revelado, já que ficamos esperando saber como é "meu amigo" em todas as línguas do mundo. O panfleto apenas trata por volta de uma trintena de idiomas.
Ainda no título há um problema menor, pois também está prometido que eles mostrarão como se "DIZ" "meu amigo". Na verdade, ainda que os dizeres dos personagens estejam mimeticamente copiando a fala (já que se utiliza de um recurso comum nas histórias em quadrinhos: os balões), ela está muito distante de ser uma "fala" real. Entendo que o verbo "dizer" tenha muitos sentidos além do "dizer".
Vamos agora dividir nossa análise em dois vieses: um semiótico e depois um linguístico.
Semioticamente, ou seja, a partir da observação das imagens e seus significados, notamos que há uma tremenda estereotipização das culturas. Vikings, sombreros, baguetes, vacas, deuses, colares, vampiros, macarrão, dragão, bonecas, leprechaus e elefantes representam muito significativamente, nesta ordem, os dinamarqueses, os mexicanos, os franceses, os holandeses, os gregos, os havaianos, os romenos, os italianos, os chineses, os russos, os irlandeses e os indianos.
Ao tratar do estereótipo o restaurante contribui para massificar as pessoas, nivela-se todo mundo. Estamos diante do "Perigo das histórias únicas", que conforme discorre Chimamanda Adichie, nesta palestra, o estereótipo não é de todo equívoco, apenas não trata o outro por completo! Incompletude perfeita para figurar num panfleto que forra a bandeja de um restaurante de comida rápida.
Três casos particulares merecem uma análise pormenorizada: o do grego, o do tupi-guarani e do latim.
Há um equívoco enorme na representação imagética desses três "idiomas" .
Grego: seriam os deuses os falantes do grego? O que quer representar aquela medusa verde dizendo "philos mou!"? (É o que ocorre também para o romeno).
Latim: seriam os franciscanos os falantes de latim?
Tupi-guarani: seguramente, o branco ao lado do índio é um antropólogo. Por que os índios não são amigos de outros índios? O que um branco está fazendo ali?
Os três casos têm em comum que o estereótipo está completamente equivocado. E então caímos no quesito linguístico. No meio de línguas modernas, introduz-se três línguas antigas. Não sabemos se o autor do panfleto quis abordar o grego clássico ou o grego moderno, de qualquer modo se trata de duas línguas bem diferentes (a relação entre elas é a mesma que há entre o latim e o português brasileiro), mas supomos se tratar da antiga, já que modernamente não há gregos de toga, tampouco se venera deuses mitológicos na Grécia moderna.
No caso do latim, a língua que hoje em dia está limitada ao reduto clerical, a imagem trazida à baila é a de um padre franciscano, que escreve a pena (imagem que nos remete as práticas ocidentais de uma religião que remonta ao século XVI). Que latim é esse? O clerical, o do Vaticano, o clássico?
O desastre é ainda maior para o tupi-guarani. De que língua se está falando em concreto? Tupinambá, guarani (e qual guarani)? Tupi-guarani não é uma língua, é uma família linguística! É como se alguém afirmasse que fala germânico, românico ou simplesmente itálico, ou seja, nenhuma língua específica! Está claro que o restaurante não conhece nada sobre línguas, muito menos sobre as indígenas. E, ao optar pelo estereótipo, ele apaga toda a diversidade dos idiomas indígenas, oculta, assim, as demais, relacionadas com outras famílias/troncos linguísticos, como o Macro-Jê ou o Aruaque, por exemplo.
Mais uma vez o ponto de vista do europeu está posto.
Neste sentido, ainda devo falar da grafia apresentada para os diversos idiomas. Todos eles estão apresentados a partir do alfabeto latino. Qual alfabeto é usado para as línguas europeias mesmo? E para o japonês, o grego, o coreano, o vietnamita, o turco, o árabe, o chinês, o indonésio, o russo e o hindu? Em que alfabeto os seus falantes escrevem?
Letrinhas estranhas poderiam espantar a clientela do Mac Donald's no Ocidente, não? Mas o engraçado é que, para certos idiomas, a ortografia é respeitada demais. Notem o espanhol, para este respeitou-se a pontuação, como podemos constatar pela exclamação invertida no começo do enunciado (¡Mi amiga!). Desse modo, o panfleto vai mostrando sua injustiça exotizante e etnocêntrica.
Provavelmente o anúncio deve ter vindo dos EUA, depois adaptado para o português. É pelo russo que percebemos essa meleca de adaptação: Moi Droog!
O "o" duplo demonstra uma regra ortográfica do inglês, que o pronunciaria como algo semelhante a um "u". Em português o duplo "o" não tem sentido. Os brasileiros, respeitando as regras de ortografia do português, tenderiam a pronunciar um "o" longo, quando na verdade a adaptação ortográfica deveria ser "Moi drug".
Assim, já posso dizer que o panfleto, além de não respeitar as culturas alheias, desrespeita a ortografia do idioma oficial do Brasil.
Aposto que quando você come ingenuamente seu hambúrguer num desses restaurantes, você não percebe como sua inteligência é menosprezada.
Nem "todo o mundo" conhece a fundo as informações específicas das línguas abordadas. Nem "todo o mundo" pode conhecer as culturas retratadas. Mas o que o panfleto sem dúvida faz é tratar de emburrecer "todo o mundo".
Presta atenção. Não seja um leitor passivo!

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Socorrista




Sob o título “Palavras da moda”, o professor Sírio Possenti abordou, no dia 21/10/2010 na sua coluna semanal do Terra (aqui), a ocorrência da palavra “socorrista” nos jornais brasileiros. Vejam:
Nas últimas semanas, especialmente a propósito da situação dos mineiros chilenos que finalmente foram resgatados, falou-se muito em "socorrista", que dicionários registram, mas cujo emprego era absolutamente raro (eu nunca tinha ouvido). No dia 16/10/2010, ouvi também "resgatista". O jornal falava de um desmoronamento em mina chinesa. Por algum tempo, desastres assim estarão na moda, acho. Como alguns bispos e pastores que logo desparecerão da mídia.
O Houaiss registra "socorrista", mas não "resgatista". Mas é fácil ver que se trata da aplicação da mesma regra derivacional: acrescenta-se o sufixo -ista a "socorro" ou a "resgate". Em ambos os casos, a vogal temática "cai" (-o em "socorro", -e em "resgate").
Procurei -ista no mesmo dicionário, já que uma de suas características é fornecer diversas informações sobre os sufixos muito produtivos. Manda ver -ismo, o que equivale a dizer que palavras em -ista têm um sentido associado à palavra correspondente em -ismo (getulismo, getulista; socorrismo, socorrista). O dicionário fornece diversos sentidos de -ismo e, claro, de -ista: em getulista, -ista significa adepto, simpatizante, seguidor; em socorrista, o agente (do socorro).

Ao ler o título do artigo, fiquei curioso para ver como o professor explicaria a ocorrência abrupta da palavra “socorrista” e o surgimento de “resgatista”. Fiquei esperando uma explicação sobre o porquê do modismo das palavras. Mas não foi o que aconteceu, Sírio apenas explicou suas morfologias e constatou que “resgatista” ainda não está dicionarizado.
Esperava uma resposta que para mim era óbvia, mas que não apareceu no resto da coluna. Por isso estou escrevendo este texto, para tentar explicar de um jeito diferente o que é comum no contato entre línguas. Aproveito o mote e falo também de outras palavras, que não necessariamente estão na moda e que aparecem ou se tornam freqüentes graças ao mesmo fenômeno.

***

Vamos lá:

O fato, o de que mineiros ficaram presos em uma mina, é chileno. Certo? E no Chile a língua oficial, ou seja, a língua da grande imprensa é o espanhol! Coincidentemente a palavra para o que em português dizemos/escrevemos “salva-vidas” em espanhol é “socorrista”.
Agora ficou fácil entender como “socorrista” veio aparecer repentinamente no nosso idioma.
É muito comum no meio jornalístico que notícias sejam “copiadas”. Qualquer um pode fazer uma busca no google e constatar que notícias muito parecidas aparecem em jornais bem diferentes. Este é o preço do jornalismo eletrônico, que tem de ser rápido e atualizado: perde-se a fidedignidade em troca da velocidade. Vocês se lembram quando a mídia eletrônica publicou a morte do senador Tuma, um mês antes, de fato, dele falecer?
Pois o que acontece com “socorrista” é o mesmo: os jornalistas brasileiros copiaram a palavra do idioma irmão.

Vejam as manchetes dos jornais brasileiros:

1) Socorristas da mina San José viram exemplos de coragem no Chile (14/10/2010)
(aqui

2) Último socorrista é resgatado e termina missão na mina (14/10/2010)
 (aqui)

3) Socorristas também são considerados heróis do resgate no Chile (14/10/2010)

4) Médico-socorrista chega até os mineiros soterrados (13/10/2010) 


E agora a dos de língua espanhola:

1) Manuel González, último socorrista que salió de la mina San José (14/10/2010) 

2) Con salida del socorrista Manuel González culmina exitoso operativo de rescate minero (14/10/2010)
(aqui




Podemos notar que a palavra “socorrista” aparece tanto nos jornais de língua espanhola como nos jornais brasileiros.
Embora o Houaiss registre “socorrista”, a palavra está nitidamente decalcada do espanhol. Os jornalistas capturaram a palavra que não soou estranha ao português (respeita as regras fonotáticas e ainda está registrada em dicionário) e introduziram em seu léxico corriqueiro.
Exemplos semelhantes estão esparramados a revelia em nossa língua, oriundos de muitas línguas, mas, claro, bastante originários do idioma de maior prestígio econômico. Na própria Lingüística há muitas palavras que são “traduzidas” estranhamente ao português. Digo “estranhamente” porque o português pode até registrar um verbete para o termo, mas o que se faz é adaptá-lo do idioma fonte. É o que acontece, por exemplo, para o termo “otimalidade”, usado na Lingüística, que é preferido a “otimidade”, já que vem do inglês “optimality”.
O espanhol é um idioma que favorece bastante este tipo de “empréstimo”, já que temos uma estrutura fonética muito parecida, além de uma história lingüística bem próxima.
Ninguém desconfia hoje que palavras como “barroco”, “beldade”, “charque”, “tropeiro”, “aficionado”, “maciço”, entre outras tantas tão comuns na língua portuguesa tenham se originado no espanhol.
Mas não é bem isso o que acontece com “socorrista”, já que a palavra também existe em português. Neste caso, o espanhol apenas “ressuscita” uma palavra que não é frequente em nossa língua.
Existe muito léxico comum entre ambos idiomas, mas a frequência de uso deles é muito diferente. Exemplos de palavras freqüentes em espanhol e infrequentes em português: “quedar”, “enamorar”, “banhar-se” (a depender da região do país) etc.
Quando o jornal usa uma palavra decalcada do espanhol, ninguém percebe que os jornalistas também estão fazendo um tremendo portunhol. O portunhol só é percebido de duas formas: i) quando alguém usa uma palavra espanhola que não existe em português (ex: “lejos”) ou ii) quando alguém faz uso equivocado de falsos cognatos (ex: “rato”, “cubierto”, “apellido”).
 Outro dia, lendo uma tradução para o português de um livro russo, pude notar algumas palavras que a mim me soavam muito hispânicas. Provavelmente, o texto brasileiro poderia ter sido elaborado a partir ou com o apoio de uma versão espanhola. A bandeira da “cópia” ficou clara para mim quando li “joguete” no lugar de “brinquedo”. “Joguete” existe em português, mas não significa necessariamente “brinquedo” (o brinquedo de crianças).
Lembro-me também dos famosos episódios do seriado “Chaves”, que ficaram populares no Brasil na década de 80.
Muito desse tipo de portunhol lexical aparece nas falas dos personagens da vila.
Quantas vezes não ouvimos “dejejum” (cf. esp. "desayuno"), que inclusive dá título ao capítulo
"O dejejum do Chaves" (chamada) para designar “café da manhã”, tão mais frequente no português.
É assim que o contato entre as línguas funciona. E desencadeia todo um processo independente no idioma afetado. Depois que a moda está posta e a palavra está em voga, ela também está livre para seguir seu curso e “contaminar” outras partes da língua. Tanto é que vemos “resgatistas”, notadamente emparelhada a “socorrista”.
Será que o espanhol teria a palavra “rescatista”? Ou  seria melhor pensar que cada idioma, ou melhor, seus falantes têm sua relativa autonomia na língua, advindas tanto da sua história quanto de sua cultura? 

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Calhordice

Aproveitando esse período de eleições, vou mostrar.lhes como se manipula um discurso de campanha através da linguagem, sobretudo, desde seu aparato formal.
O texto, escrito por Miriany Amaral, é uma resposta a um desses e-mails circulados no período eleitoral.


Mensagem veiculada por e-mail:


O Diário do Nordeste,CE, publicou, em sua página 10, de 8 de outubro de 2010, o seguinte: “CIRO: MISTIFICAÇÃO DO TEMA ABORTO É “CALHORDICE”. Primeiro, fez bem colocar a palavra entre aspas, pois é uma “CALHORDICE” do coordenador da campanha da senhora DILMA no Nordeste, pois a palavra não faz parte da língua portuguesa, pelo menos não está nos dicionários...;  e segundo, a senhora Dilma, em declaração pelo Jornal Bom Dia  Brasil, tratou do assunto referido e se ela é uma CALHORDA  não fica bem para seu correligionário classificá-la desta maneira.






AURÉLIO diz: calhorda é: “uma pessoa desprezível, impudente, ordinária e o HOUAISS afirma: “sinonímia de pulha”. O coordenador foi muito infeliz em sua expressão, pois além de atacar a sua candidata chamou, de modo grosseiro, bispos, pastores e todos aqueles que pensam que o ABORTO é um tema sério, pois pensam que se encontra em JOGO A VIDA.

Pela posição que ocupa, caberia ao coordenador da campanha da senhora DILMA pedir desculpas da agressão aos que combatem o ABORTO. Seria um ato de elegância.

Como o coordenador que foi escorraçado da eleição e agora volta, submisso, atrás de sobras  de cargos e postos chamaria então o Presidente da República que declarou ontem (7-out-2010) que a “POLÍCIA BATE EM QUEM DEVER BATER”:
“arbitrário, absolutista, autocrático, autoritário, cesarista, cesarístico, discricionário, ditatorial, dominador, dominativo, opressivo, opressor, prepotente, tirânico”? Ou seria apenas UMA “CALHORDICE” do presidente, o que o chamaria de modo grosseiro: uma pessoa ordinária.


A POLÍCIA NÃO É PARA BATER E SIM PARA PROTEGER O CIDADÃO.

O PEIXE MORRE PELA BOCA E O HOMEM PELA LÍNGUA.


***


Resposta de Miriany Amaral

Olá Sérgio!

Demorei a responder porque não tive tempo antes (e creio que nem terei agora) de responder devidadamente o texto que me mandou.

Para começar, quero comentar a respeito das considerações sem fundamento feitas sobre a palavra "calhordice"

Sou formada em Letras pela Unicamp e atualmente curso graduação em Linguística e nesse semestre em especial estou cursando uma disciplina chamada "Lexicologia e Lexicografia", que simplificadamente falando é o estudo das palavras de uma língua. Como especialista em Língua Portuguesa, eu posso garantir a você que a palavra "calhordice" existe sim na nossa língua. O fato de ela não estar no dicionário (aliás, tenho quase certeza que quem escreveu esse comentário consultou na verdade um minidicionário e não "o" dicionário Aurélio mesmo), não implica a não existência dela. Tome como exemplo a palavra "gostei". Se você procurar no dicionário não vai encontrar essa palavra, entretanto qualquer falante reconhece o significado dessa palavra numa frase como "Eu gostei do filme que vi ontem". Se procurarmos no dicionário comum (o mini), encontraremos apenas a palavra "gostar" que é o verbo na sua forma infinitiva, sem flexão.




Ora, como o próprio texto apontou, o dicionário Aurélio registra a palavra "Calhorda" que é um adjetivo. A partir de "calhorda", forma-se então (por um processo chamado derivação sufixal) o substantivo "Calhordice", a partir do acréscimo do sufixo "-ice" que serve exatamente para transformar adjetivos em substantivos. Veja os exemplos:

Adjetivo                      Substantivo
Chato                            Chatice
Idiota                             Idiotice
Babaca                          Babaquice

Que coincidentemente são todos referentes a formas de insulto. Teria muito mais a dizer a você para demonstrar a "autenticidade" da palavra "Calhordice", mas acho que já deu para comprovar a existência dela. Caso ainda não esteja convencido, me avise que eu e dou mais "provas", ok?

Em segundo lugar, como professora de redação e revisora de textos profissional, quero dizer que esse pequeno texto em letras grandes e em negrito tem graves problemas de coesão e coerência, a começar pela falta de inteligibilidade do primeiro parágrafo. Qual era a intenção desse trecho? Chamar Dilma de Calhorda? Dizer que o Ciro a chamou de Calhorda? Dizer que Eles chamaram de calhordas as pessoas que são contra o aborto? Seja lá qual era a intenção, nenhuma dessas foi bem sucedida. A começar pela interpretação equivocada da declaração MISTIFICAÇÃO DO TEMA ABORTO É “CALHORDICE”.

Ao fazer essa afirmação, Ciro não chamou ninguém de calhorda. A palavra "calhordice" nessa frase remete à palavra Mistificação. O que Ciro quis dizer, portanto, é que devemos tratar o tema "aborto" de modo objetivo ao invés de deixar as morais religiosas tomarem conta da discussão. Discutir o tema do aborto apenas por um viés moral/religioso é que seria, segundo Ciro, uma calhordice (e sabemos que ele tem razão, uma vez que retomemos a História e analisemos como foi difícil separar Estado de Igreja).

Além da interpretação inadequada, como tinha dito antes, o trecho tem problemas graves de coesão, tanto dentro do parágrafo como no texto como um todo. Um exemplo de problema de coesão dentro do parágrafo é o trecho "tratou do assunto referido" que, além de estar mal colocado, dificultando a leitura, é ambíguo por poder se referir tanto à Dilma quanto ao jornal. Outro problema é o trecho "e se ela é calhorda". Porque ela seria calhorda? Onde está dito isso no texto?

Tomando o texto como um todo, podemos observar que cada parágrafo trata de um assunto diferente e não "amarra" as informações. Sendo assim, fica difícil apreender qual era a intenção real de quem escreveu. O texto começa com a afirmação de Ciro, comenta a palavra "calhordice", e muda bruscamente de assunto fazendo uma associação errada entre a fala de Ciro e a pessoa da Dilma. No segundo "parágrafo"  vem a citação do Aurélio, que também está deslocada, uma vez que o tema calhordice já tinha ficado para trás e não é retomado posteriormente. E no final o texto termina com uma afirmação do presidente que não é sintaticamente relacionada com nenhuma das ideias colocadas anteriormente (mais um problema de coesão dentro desse parágrafo pela falta de definição do sujeito do verbo "chamaria")
Bom.. acho que eu já me prolonguei muito, embora ainda teria muitas incoerências e imprecisões a ser apontadas nesse texto.

Antes de repassar um email "sensacionalista" como esse, procure verificar o conteúdo do mesmo, porque este email é completamente vazio de sentido. A única coisa que dá para entender disso tudo é que você e/ou o autor desse texto pretende falar mal da Dilma, mas não sabe como fazer isso, então enfeita, floreia, enche de "blablablá", mas nãos diz coisa-com-coisa, o que alíás é típico dos Tucanos que usam a ignorância das pessoas para disseminarem informações falsas através do caráter apelativo que empregam em suas declarações.


Espero que você tenha paciência e inteligência suficiente para ler todo esse email, pois dediquei um bom tempo a ele e não gostaria de ter esse trabalho perdido.

Aguardo sua "réplica",

Miriany


domingo, 31 de outubro de 2010

Bordões

Enquanto preparo um post interessante, vou repetir uma mensagem velha (é sempre bom lembrar). Ela já foi postada no Catarse, como vcs já devem ter notado.
A mensagem está de volta aqui pra mostrar que por trás de um discurso ingênuo há muito preconceito. Trata-se de uma réplica a um colunista de um jornal local. A seguir reproduzo a mensagem original de José Lacerda e logo depois a minha resposta.

Bordões

Quem mora em Barão Geraldo há algum tempo passa a conhecer mais de perto seus moradores e, também, seus fornecedores.
Todos nós precisamos de alguma coisa e vamos à busca. Em Barão, tudo fica mais perto, mais à mão, mas nem tudo é fácil de se conseguir, em determinados estabelecimentos.
Há supermercados onde algumas caixas, sonolentas, falam entre os dentes o bordão do momento, quando vamos pagar: “Quécepéfnanota?”
Eu levei algumas semanas para entender o que aquela moça, de muita má vontade, estava me dizendo. Senti-me agredido, gratuitamente. Fico imaginando os estrangeiros que chegam ao bairro, mal dominando o idioma nacional, tentando entender esse atentado aos nossos ouvidos.
Nunca vi ninguém, entre os que entendem o idioma das caixas de supermercados, dizer “sim”, diante de tal pergunta com a qual nos agridem. Mas elas não desistem!
Alguns mecânicos, mesmo sendo atenciosos, também não primam pela clareza em seus palavreados ao cliente ali, à sua frente: “Costaliquijávai!”
Ele está pedindo que encostemos nossos carros na calçada e que irá nos atender em breve.
Outros que falam um idioma desconhecido são os frentistas de postos (exceto os do antigo Texaco, hoje Shell, ali da esquina da avenida dois).
Ao colocarmos o carro defronte da bomba de combustível, lá vem um deles e grita em nossa janela: “Xutankacomum?” Lembro, de novo, do professor estrangeiro chegando ao Brasil e indo abastecer seu carro. Coitado!
Outra atividade que pode ser complicada é a compra de material hidráulico. Acostumados a dialogar com operários da indústria da construção, os balconistas sempre fazem perguntas que nos deixam travados, tentando entender qual o idioma que o citado profissional adotou, naquele instante em que diz, quando pedimos algum material: “Trêsquartoumeia?”


Inicialmente, ficamos imaginando porque ele está nos oferecendo três quartos, quando já temos nossa própria casa, com sala, cozinha, banheiros, etc. Pior ainda quando vemos que ele também nos oferece meia, artigo que supomos ser mais adequado às lojas de vestuário, ou sapatarias.
Em certos açougues, o drama se repete. Quando pedimos carne, logo ouvimos: “Acempatinhoucoxão?” Os homens, principalmente, que nada entendem de carne, e foram apenas buscar algo para o churrasco de sábado, ficam com cara de espanto, diante do fraseado pouco claro.
Mas, não desanimamos, e continuamos comprando em Barão. Afinal, somos reconhecidos pelos nossos fornecedores e, embora mudem o idioma no ato da venda, ainda assim podemos chegar a bom entendimento.
Em algumas farmácias, então, a coisa pode ficar bem complicada. Outro dia, precisando de pastilhas para amenizar uma dor de garganta, entrei num conhecido local aqui do bairro. Expliquei o que queria, e o vendedor, baixinho e troncudo, com seu jeito nordestino, perguntou, em voz rouca e acelerada: “Xarópastilhougargrejo?” Cheguei a pensar que era uma nova fórmula que chegava ao mercado, com nome científico um tanto complicado. Logo veio o dono do estabelecimento, vendo a colossal interrogação sobre minha pobre cabeça e explicou que seu funcionário indagava, pertinentimente, se eu queria um medicamento em forma de xarope, de pastilha ou para gargarejar. Ufa! Imaginei o que seria se o dono não corresse a me socorrer!
Nas padarias, conforme o horário, temos que ampliar ao máximo o grau de entendimento do idioma que ouvimos, vindo do outro lado do balcão. Quando se pede o tradicional pão francês, logo ouvimos: “Scurinhoubrankin?” É a versão para pão mais ou menos queimado, conforme a preferência do cliente. Uma atenção que o profissional do balcão quer acrescentar ao seu atendimento, mas que, para ouvidos pouco afeitos, pode soar como um palavrão, uma agressão. O professor estrangeiro vai desistir da compra, certamente.
Hoje, com a moda dos cartões de crédito, também somos agredidos com um outro bordão, nos caixas de qualquer estabelecimento: “Détoucred?” Seria tão mais fácil dizer débito ou crédito, mas a pressa – essa inimiga de nosso idioma – cria essas frases toscas, arremessadas ao nosso encontro, sempre que usamos um cartão.
Ainda bem que não somos professores estrangeiros! Conseguimos, por isso, sobreviver aqui no velho Barão Geraldo, adaptando nossos neurônios para entender rapidamente o palavreado “esculpido a machadadas”, como diz um bom amigo meu, também aqui do bairro.

Resposta do Jiquilin






Bordões?

Diego Jiquilin Ramirez

A edição da primeira quinzena de agosto trouxe na coluna ANOTE AÍ, escrita por José Lacerda, que falava corriqueiramente dos “bordões” por aí ecoados no comércio geraldense (Jornal Integração. Barão Geraldo, 05 a 19 de agosto de 2009) . Logo percebe-se que o autor é pouco entendido sobre os estudos da linguagem. Sua coluna, mitigada de preconceito lingüístico, não deixa por menos um pensamento muito comum na intelectualidade: os intelectuais não entendem, ou entendem muito pouco, sobre lingüística – e aqui acabo sendo repetitivo, como o é meu velho e bom professor Sírio Possenti.
Fala-se o que quer sobre linguagem. Geralmente, estes intelectuais falam de um ponto de vista normativista e elitista.
Percorrendo a coluna, fica evidente que Lacerda é daqueles que acredita que a linguagem é estática, que as palavras tem um sentido exato e que o melhor sentido é o antigo. Parece que existe apenas uma maneira de falar corretamente e várias erradas de se falar e escrever. Acho que para ele o dicionário é a ferramenta em que se tem registrado este sentido exato das palavras. Se não tem no dicionário, a palavra não existe!
Linguagem é visão de mundo e Lacerda, seguramente, vê o mundo de um jeito muito diferente das caixas de supermercado, dos frentistas de posto, dos mecânicos, dos balconistas, dos açougueiros, dos atendentes em geral. É que para estes os, até então, chamados bordões são muito mais frequentes que para aquele.
Aposto que Lacerda frequenta um supermercado bem menos vezes que sua caixa. Aposto também que a má vontade e a sonolência da mocinha do caixa iriam imediatamente embora se o salário dela fosse equivalente à metade do salário de Lacerda.
De tanto falar, de tanto repetir, de tanto perguntar exaustivamente se o cliente gostaria que o seu CPF saísse na nota, a expressão, que pouco tem a ver com um bordão, acaba sofrendo as erosões fonéticas do cotidiano. E quando as caixas perguntam “Quer nota fiscal paulista?” em vez de “Quer CPF na nota?”, os clientes se admiram muito mais, pois a segunda pergunta é muito mais comum que a primeira.
É assim que a linguagem funciona, ou estaríamos falando até hoje “canis” no lugar de “cão”.
Vamos olhar mais de perto o que descreve nosso amigo e veremos quão retrógrado é seu pensamento no que se refere à linguagem:
“Quécepéfnanota?”
Em primeiro lugar, há uma enorme confusão, como em todos os outros exemplos, entre a oralidade e a escrita. Acho que o geraldense aí queria representar com a escrita oficial da língua portuguesa um fenômeno da fala. Veremos, de imediato, o desastre.
O que os acentos estão representando? A abertura da vogal média? Pois, se assim for, Lacerda esqueceu-se de acentuar “nota”.
“Costaliquijávai” – E agora, o que o acento representa?
“Xutankacomum” – E por que utilizar o “x” e o “k”? Seria uma indicação de que o dígrafo converge para o som do “x”? Ou seria uma indicação de que a letra é arbitrária ao som, como no caso do “k”? Oras, onde está o critério? Nos exemplos anteriores que não é, visto que o autor usa “qu” e, no mesmo exemplo, aparece o “c”! 


Mas o pior ainda está por vir. “Trêsquartoumeia”. Se o “critério” para a crítica era fonético, agora passou a ser semântico, já que neste exemplo não há nada de mais para a compreensão fonética da expressão. Pasmem: o idioma que fala o profissional da construção é o mesmo, por incrível que pareça, que o do nosso conterrâneo. O que muda é a variedade lingüística, que neste caso, nada tem a ver com a variação especificamente na fonética.
Desta vez, até parece que o simples operáriao da construção é mais inteligente que o nosso intelectual de B.G., pois o operário, sim, é capaz de entender as palavras polissémicas da língua portuguesa. Se Lacerda entendeu “trêsquartos ou meia”, por que não grafou assim? Conveniente taxar os outros, não?
E como nosso colega é tão conservador, deveria saber que antigamente usavam-se as medidas pelos números fracionários. Se de tudo isso ele soubesse, entenderia a polissemia do numeral “quarto” com o substantivo homógrafo “quarto”(parte da casa) bem como a do numeral “meia”(metade) e seu substantivo homógrafo “meia”(para usar nos pés).
“Acempatinhoucoxão?” – E por que, agora, não brincou com a polissemia de “Ah! 100”, “patinho” e “colchão”? Por que não representou “patinho” por “patim”, muito mais comum na fala? Por que necessariamente teria de ser a mulher a única capaz de entender a língua do açougueiro? Machista, não?
Se for desistir de comprar em Barão por causa do linguajar, você vai morrer de fome. Em todo lugar a língua funciona desse mesmo jeito.
Ninguém muda de idioma assim. Pelo que sei, B. G. não é um distrito diglóssico-bilingue.
“Xarópastilhougargrejo?” – Pelo menos, Lacerda dá conta de que na fala rápida são comuns os sandis e as elisões, como ocorre em “saudade (de) você”, “clube (de) campo”. Francamente, fiquei sem entender por que caracterizar o vendedor como um nordestino. Não há nada na expressão acima que possa denunciar quaisquer dos dialetos nordestinos. Será que o autor quis nos enfatizar que a condição dos nordestinos, pobres retirantes, é a de simples trabalhadores, a massa do sudeste? Mais uma vez seu preconceito velado aos poucos vai se revelando.
Bem que o dono da farmácia poderia não lhe socorrer, quem sabe sua pobre cabeça – e bota pobre nisso, não explodisse.
“Scurinhoubrankin?” – De novo a inconsistência, tanto do “k”, quanto do diminutivo.



“Détoucred?” – Inconsitência nos acentos. Seria tão mais fácil não confundir fala com escrita!
É muito comum nesses tipos de discurso uma impultação de culpa à mácula do idioma. Os inimigos da língua pátria. Pressa que eu saiba é inimiga da perfeição, mas no que diz respeito ao idioma não há (im)perfeição. As línguas mudam, as pessoas mudam e tudo graças ao tempo. Se não há pressa, se não há velocidade, não haverá movimento, não haverá ação. A língua(gem) é ação.
Depois de olhar de perto estes exemplos, ainda vale desfazer a confusão em torno do conceito de “bordão”. Tais expressões são nada menos que jargões (sobre o tema, recomendo uma reportagem saída na revista Língua Portuguesa, nº 4, 2006). O jargão é utilizado por um certo grupo, como requer a profissão desses trabalhadores. Os bordões são frases criadas para cair na boca do povo. Bordões são muito comum nas expressões do telejornal, slogans do humor, cacos de novela.
Quanto ao professor estrangeiro, pode ficar tranquilo, sr. Lacerda, que um dia ele aprende bem o português. Ao contrário de você, pobre estrangeiro no próprio idioma, o professor forasteiro um dia será capaz de dicernir as situações linguísticas e aprenderá que a pragmática também “faz parte” da aquisição do idioma. Não sei como você conseguiu pensar no pobre professor estrangeiro, sendo que sua fala denuncia a todo momento seu caráter bem bairrista. Fora de Barão, a língua também é assim.
Lembre-se que não são as simples pessoas, que apenas falam a sua língua nativa, que agridem os ouvidos de um intelectual. Pelo contrário, é o intelectual, que com seus consideráveis anos de estudo, além de agredir  os intelectuais que também dedicam muitos anos de sua vida para poder entender a linguagem, agride a população com seus comentários tão preconceituosos e mesquinhos.