domingo, 31 de outubro de 2010

Bordões

Enquanto preparo um post interessante, vou repetir uma mensagem velha (é sempre bom lembrar). Ela já foi postada no Catarse, como vcs já devem ter notado.
A mensagem está de volta aqui pra mostrar que por trás de um discurso ingênuo há muito preconceito. Trata-se de uma réplica a um colunista de um jornal local. A seguir reproduzo a mensagem original de José Lacerda e logo depois a minha resposta.

Bordões

Quem mora em Barão Geraldo há algum tempo passa a conhecer mais de perto seus moradores e, também, seus fornecedores.
Todos nós precisamos de alguma coisa e vamos à busca. Em Barão, tudo fica mais perto, mais à mão, mas nem tudo é fácil de se conseguir, em determinados estabelecimentos.
Há supermercados onde algumas caixas, sonolentas, falam entre os dentes o bordão do momento, quando vamos pagar: “Quécepéfnanota?”
Eu levei algumas semanas para entender o que aquela moça, de muita má vontade, estava me dizendo. Senti-me agredido, gratuitamente. Fico imaginando os estrangeiros que chegam ao bairro, mal dominando o idioma nacional, tentando entender esse atentado aos nossos ouvidos.
Nunca vi ninguém, entre os que entendem o idioma das caixas de supermercados, dizer “sim”, diante de tal pergunta com a qual nos agridem. Mas elas não desistem!
Alguns mecânicos, mesmo sendo atenciosos, também não primam pela clareza em seus palavreados ao cliente ali, à sua frente: “Costaliquijávai!”
Ele está pedindo que encostemos nossos carros na calçada e que irá nos atender em breve.
Outros que falam um idioma desconhecido são os frentistas de postos (exceto os do antigo Texaco, hoje Shell, ali da esquina da avenida dois).
Ao colocarmos o carro defronte da bomba de combustível, lá vem um deles e grita em nossa janela: “Xutankacomum?” Lembro, de novo, do professor estrangeiro chegando ao Brasil e indo abastecer seu carro. Coitado!
Outra atividade que pode ser complicada é a compra de material hidráulico. Acostumados a dialogar com operários da indústria da construção, os balconistas sempre fazem perguntas que nos deixam travados, tentando entender qual o idioma que o citado profissional adotou, naquele instante em que diz, quando pedimos algum material: “Trêsquartoumeia?”


Inicialmente, ficamos imaginando porque ele está nos oferecendo três quartos, quando já temos nossa própria casa, com sala, cozinha, banheiros, etc. Pior ainda quando vemos que ele também nos oferece meia, artigo que supomos ser mais adequado às lojas de vestuário, ou sapatarias.
Em certos açougues, o drama se repete. Quando pedimos carne, logo ouvimos: “Acempatinhoucoxão?” Os homens, principalmente, que nada entendem de carne, e foram apenas buscar algo para o churrasco de sábado, ficam com cara de espanto, diante do fraseado pouco claro.
Mas, não desanimamos, e continuamos comprando em Barão. Afinal, somos reconhecidos pelos nossos fornecedores e, embora mudem o idioma no ato da venda, ainda assim podemos chegar a bom entendimento.
Em algumas farmácias, então, a coisa pode ficar bem complicada. Outro dia, precisando de pastilhas para amenizar uma dor de garganta, entrei num conhecido local aqui do bairro. Expliquei o que queria, e o vendedor, baixinho e troncudo, com seu jeito nordestino, perguntou, em voz rouca e acelerada: “Xarópastilhougargrejo?” Cheguei a pensar que era uma nova fórmula que chegava ao mercado, com nome científico um tanto complicado. Logo veio o dono do estabelecimento, vendo a colossal interrogação sobre minha pobre cabeça e explicou que seu funcionário indagava, pertinentimente, se eu queria um medicamento em forma de xarope, de pastilha ou para gargarejar. Ufa! Imaginei o que seria se o dono não corresse a me socorrer!
Nas padarias, conforme o horário, temos que ampliar ao máximo o grau de entendimento do idioma que ouvimos, vindo do outro lado do balcão. Quando se pede o tradicional pão francês, logo ouvimos: “Scurinhoubrankin?” É a versão para pão mais ou menos queimado, conforme a preferência do cliente. Uma atenção que o profissional do balcão quer acrescentar ao seu atendimento, mas que, para ouvidos pouco afeitos, pode soar como um palavrão, uma agressão. O professor estrangeiro vai desistir da compra, certamente.
Hoje, com a moda dos cartões de crédito, também somos agredidos com um outro bordão, nos caixas de qualquer estabelecimento: “Détoucred?” Seria tão mais fácil dizer débito ou crédito, mas a pressa – essa inimiga de nosso idioma – cria essas frases toscas, arremessadas ao nosso encontro, sempre que usamos um cartão.
Ainda bem que não somos professores estrangeiros! Conseguimos, por isso, sobreviver aqui no velho Barão Geraldo, adaptando nossos neurônios para entender rapidamente o palavreado “esculpido a machadadas”, como diz um bom amigo meu, também aqui do bairro.

Resposta do Jiquilin






Bordões?

Diego Jiquilin Ramirez

A edição da primeira quinzena de agosto trouxe na coluna ANOTE AÍ, escrita por José Lacerda, que falava corriqueiramente dos “bordões” por aí ecoados no comércio geraldense (Jornal Integração. Barão Geraldo, 05 a 19 de agosto de 2009) . Logo percebe-se que o autor é pouco entendido sobre os estudos da linguagem. Sua coluna, mitigada de preconceito lingüístico, não deixa por menos um pensamento muito comum na intelectualidade: os intelectuais não entendem, ou entendem muito pouco, sobre lingüística – e aqui acabo sendo repetitivo, como o é meu velho e bom professor Sírio Possenti.
Fala-se o que quer sobre linguagem. Geralmente, estes intelectuais falam de um ponto de vista normativista e elitista.
Percorrendo a coluna, fica evidente que Lacerda é daqueles que acredita que a linguagem é estática, que as palavras tem um sentido exato e que o melhor sentido é o antigo. Parece que existe apenas uma maneira de falar corretamente e várias erradas de se falar e escrever. Acho que para ele o dicionário é a ferramenta em que se tem registrado este sentido exato das palavras. Se não tem no dicionário, a palavra não existe!
Linguagem é visão de mundo e Lacerda, seguramente, vê o mundo de um jeito muito diferente das caixas de supermercado, dos frentistas de posto, dos mecânicos, dos balconistas, dos açougueiros, dos atendentes em geral. É que para estes os, até então, chamados bordões são muito mais frequentes que para aquele.
Aposto que Lacerda frequenta um supermercado bem menos vezes que sua caixa. Aposto também que a má vontade e a sonolência da mocinha do caixa iriam imediatamente embora se o salário dela fosse equivalente à metade do salário de Lacerda.
De tanto falar, de tanto repetir, de tanto perguntar exaustivamente se o cliente gostaria que o seu CPF saísse na nota, a expressão, que pouco tem a ver com um bordão, acaba sofrendo as erosões fonéticas do cotidiano. E quando as caixas perguntam “Quer nota fiscal paulista?” em vez de “Quer CPF na nota?”, os clientes se admiram muito mais, pois a segunda pergunta é muito mais comum que a primeira.
É assim que a linguagem funciona, ou estaríamos falando até hoje “canis” no lugar de “cão”.
Vamos olhar mais de perto o que descreve nosso amigo e veremos quão retrógrado é seu pensamento no que se refere à linguagem:
“Quécepéfnanota?”
Em primeiro lugar, há uma enorme confusão, como em todos os outros exemplos, entre a oralidade e a escrita. Acho que o geraldense aí queria representar com a escrita oficial da língua portuguesa um fenômeno da fala. Veremos, de imediato, o desastre.
O que os acentos estão representando? A abertura da vogal média? Pois, se assim for, Lacerda esqueceu-se de acentuar “nota”.
“Costaliquijávai” – E agora, o que o acento representa?
“Xutankacomum” – E por que utilizar o “x” e o “k”? Seria uma indicação de que o dígrafo converge para o som do “x”? Ou seria uma indicação de que a letra é arbitrária ao som, como no caso do “k”? Oras, onde está o critério? Nos exemplos anteriores que não é, visto que o autor usa “qu” e, no mesmo exemplo, aparece o “c”! 


Mas o pior ainda está por vir. “Trêsquartoumeia”. Se o “critério” para a crítica era fonético, agora passou a ser semântico, já que neste exemplo não há nada de mais para a compreensão fonética da expressão. Pasmem: o idioma que fala o profissional da construção é o mesmo, por incrível que pareça, que o do nosso conterrâneo. O que muda é a variedade lingüística, que neste caso, nada tem a ver com a variação especificamente na fonética.
Desta vez, até parece que o simples operáriao da construção é mais inteligente que o nosso intelectual de B.G., pois o operário, sim, é capaz de entender as palavras polissémicas da língua portuguesa. Se Lacerda entendeu “trêsquartos ou meia”, por que não grafou assim? Conveniente taxar os outros, não?
E como nosso colega é tão conservador, deveria saber que antigamente usavam-se as medidas pelos números fracionários. Se de tudo isso ele soubesse, entenderia a polissemia do numeral “quarto” com o substantivo homógrafo “quarto”(parte da casa) bem como a do numeral “meia”(metade) e seu substantivo homógrafo “meia”(para usar nos pés).
“Acempatinhoucoxão?” – E por que, agora, não brincou com a polissemia de “Ah! 100”, “patinho” e “colchão”? Por que não representou “patinho” por “patim”, muito mais comum na fala? Por que necessariamente teria de ser a mulher a única capaz de entender a língua do açougueiro? Machista, não?
Se for desistir de comprar em Barão por causa do linguajar, você vai morrer de fome. Em todo lugar a língua funciona desse mesmo jeito.
Ninguém muda de idioma assim. Pelo que sei, B. G. não é um distrito diglóssico-bilingue.
“Xarópastilhougargrejo?” – Pelo menos, Lacerda dá conta de que na fala rápida são comuns os sandis e as elisões, como ocorre em “saudade (de) você”, “clube (de) campo”. Francamente, fiquei sem entender por que caracterizar o vendedor como um nordestino. Não há nada na expressão acima que possa denunciar quaisquer dos dialetos nordestinos. Será que o autor quis nos enfatizar que a condição dos nordestinos, pobres retirantes, é a de simples trabalhadores, a massa do sudeste? Mais uma vez seu preconceito velado aos poucos vai se revelando.
Bem que o dono da farmácia poderia não lhe socorrer, quem sabe sua pobre cabeça – e bota pobre nisso, não explodisse.
“Scurinhoubrankin?” – De novo a inconsistência, tanto do “k”, quanto do diminutivo.



“Détoucred?” – Inconsitência nos acentos. Seria tão mais fácil não confundir fala com escrita!
É muito comum nesses tipos de discurso uma impultação de culpa à mácula do idioma. Os inimigos da língua pátria. Pressa que eu saiba é inimiga da perfeição, mas no que diz respeito ao idioma não há (im)perfeição. As línguas mudam, as pessoas mudam e tudo graças ao tempo. Se não há pressa, se não há velocidade, não haverá movimento, não haverá ação. A língua(gem) é ação.
Depois de olhar de perto estes exemplos, ainda vale desfazer a confusão em torno do conceito de “bordão”. Tais expressões são nada menos que jargões (sobre o tema, recomendo uma reportagem saída na revista Língua Portuguesa, nº 4, 2006). O jargão é utilizado por um certo grupo, como requer a profissão desses trabalhadores. Os bordões são frases criadas para cair na boca do povo. Bordões são muito comum nas expressões do telejornal, slogans do humor, cacos de novela.
Quanto ao professor estrangeiro, pode ficar tranquilo, sr. Lacerda, que um dia ele aprende bem o português. Ao contrário de você, pobre estrangeiro no próprio idioma, o professor forasteiro um dia será capaz de dicernir as situações linguísticas e aprenderá que a pragmática também “faz parte” da aquisição do idioma. Não sei como você conseguiu pensar no pobre professor estrangeiro, sendo que sua fala denuncia a todo momento seu caráter bem bairrista. Fora de Barão, a língua também é assim.
Lembre-se que não são as simples pessoas, que apenas falam a sua língua nativa, que agridem os ouvidos de um intelectual. Pelo contrário, é o intelectual, que com seus consideráveis anos de estudo, além de agredir  os intelectuais que também dedicam muitos anos de sua vida para poder entender a linguagem, agride a população com seus comentários tão preconceituosos e mesquinhos.