terça-feira, 5 de setembro de 2017

A colônia e nós. Uma aventura transgênera pela Análise do Discurso

Hoje eu saquei a estratégia argumentativa da colônia. Os grandes nomes da academia usam a estratégia de deturpar, enviesar e invisibilizar o ponto de vista que eles não compartilham para enfraquecê-lo de maneira a parecer que sua argumentação é irresistível. É o problema da torre de marfim também, em que ELES olham para NÓS e nos explicam e categorizam, como se eles também não fizessem parte de alguma categoria. Como se ELES, os analistas, estivessem fora do discurso da verdade. E o pior é que ELES combatem NOSSAS maneiras de explicar o mundo alegando que NÓS, os sujeitos da análise, é que estamos impregnados pelo discurso da verdade. Dizer que algo não é verdadeiro também é uma afirmação que pertence a lógica da verdade. Então, quando algum analista nega o ponto de vista dos sujeitos da sua análise, ele está simplesmente impondo de maneira sutil a sua nova verdade, que tem o ar de ser muito mais limpinha, porque circula num espaço que a legitima, como é a academia. 
A análise do discurso faz isso com a Pragmática. Alguns analistas importantes recortam ideias da pragmática, enviesam o pensamento pragmático para afirmar que a Análise do Discurso é superior à Pragmática. 
Hoje, ouvi trechos de uma palestra que me fez cair o cu da bunda. A mãe da análise do discurso veio a público criticar o termo “cisgênero”, sob a alegação de que essas categorias não dão conta do detalhe (Daí, eu mesma fiquei me perguntando: qual categoria dá conta do detalhe?). Ela citou um trecho do texto da Leila Dumaresq “O cisgênero existe” e sequer mencionou a autoria. Foi logo tratando de destilar suas crítica sutis, sob uma retórica non-sense, rebuscada e opaca ao termo “cisgênero” ali debatido. Sorte que pudemos reconhecer a autora do texto e saber que alhos não são bugalhos, mas os demais que ali presenciavam o discurso acadêmico de lágrimas cis não poderiam imaginar a fonte daquele excerto. Justo a AD que tanto presa pela autoria. 
Sob o manto do prestígio e com uma voz que tem ecoado na análise do discurso desde sua fundação, a dita cuja caiu de paraquedas na discussão sobre gênero e veio querer sentar na janelinha. O que me pareceu foi que a pessoa tinha acabado de descobrir a palavra “cisgênero” e quisesse revolucionar o pensamento com uma “análise crítica”. Isso é injusto com todo acúmulo de conhecimento e debate e é muito mais injusto ainda não dar caso às vozes dos sujeitos, que por acaso também são analistas. Pessoas trans parecem que tem a sina de serem invisibilizadas aonde quer que queiram estar. Inclusive, quando conquistam espaços de prestígio. 

Mas o que me consola é que o tempo vai dar um jeito nisso. Eu acredito que o mundo dá voltas e a colônia logo logo não vai dar conta da gente. Dentro em breve os acadêmicos não poderão mais falar suas bostas em 4 paredes sem que sejam problematizados

Tupi-guarani uma ova!!



Eu sempre escuto um uso equivocado da palavra "TUPI-GUARANI".
O senso comum pensa que os povos de hoje ou os povos da época da invasão colonial falavam ou eram "tupis-guaranis". De certo modo sim, pois se trata da característica da família linguística. Mas, no sentido mais trivial, não. A língua tupi-guarani não existe, pode ter existido um proto-tupi-guarani (e talvez nem mesmo ela, porque isso tb é só teoria acadêmica. Talvez nem seja adequado falar em "família". Há teóricos que falam de ramos e subramos e etc etc.. Teorias acadêmicas). Mas partindo desse pressuposto, tupi-guarani não é uma língua específica falada hoje. Hoje o que os povos indígenas provenientes desse grupo falam é guarani, tembé, urubu-kaapor, sirionó, guarayo, kamayurá, tapirapé, etc... Hoje são um pouco mais de 30 as diferentes línguas que compõe a família tupi-guarani.
Tupi-guarani não é uma língua e nem uma etnia específica. É o nome de uma família (ramo, grupo) de diferentes línguas.
Pensar que todo e qualquer índio é um tupi-guarani é o resultado do olhar simplista e invisibilizador do protagonista branco.
Os/as índios/as somos muito diversos/as. E isso porque estou apenas mencionando o tupi-guarani. Imagine se pensarmos no tronco Tupi, em outros troncos como o macro-Jê, em tantos outros ramos e nas dezenas de famílias e línguas isoladas não classificáveis?



quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Reflexões sobre a patologição da infância

Depois de tanto tempo, olha só quem tá aqui??
O texto de hoje é assinado pela Kiô Ramirez


A patologização de comportamentos considerados “anormais” tem se tornado cada vez mais comum, especialmente na idade escolar. Crianças com um ritmo de aprendizado diferente ou com uma deficiência de estímulos das habilidades da linguagem são rotuladas e tem sua identidade marcada por um laudo médico.
Crianças que apresentam dificuldades comuns no processo de letramento, como por exemplo, a troca de “p” por “b” ou ainda que apresentam dificuldades em completar um raciocínio lógico são corriqueiramente diagnosticadas como portadoras de dislexia, o que acarreta na sua exclusão do processo regular de ensino.
Esta exclusão se manifesta das maneiras mais sutis até as mais severas. Além de dar respaldo ao bullying, na maioria das vezes, estas crianças são consideradas menos capazes tanto pelos colegas quanto pelos professores. Ao serem excluídas e tratadas como “café com leite”, na maioria dos casos, estas crianças são alocadas para salas especiais cujos conteúdos são reduzidos. Isto, por sua vez, ocasiona-lhes um enorme déficit de conteúdo e de desenvolvimento.
O comportamento humano é muito mais complexo que um rótulo de TDH, de dislexia ou de hiperatividade. Neste sentido, Martz, Teixeira e Gomes (2015) nos alertam para o determinismo biológico: “Ao mesmo tempo em que o olhar da medicina avança de modo importante ao compreender os mecanismos de funcionamento do corpo, perspectivas histórico-sociais têm apresentado com muito cuidado olhares para o ser humano que nos permitem dizer que há um perigoso risco no determinismo biológico, do reducionismo do ser humano à lógica de seu funcionamento orgânico” (p. 175).
A medicina pode ser muito eficiente em explicar e prever características físicas como a cor dos olhos e a cor da pele, mas não pode determinar, por exemplo, o gênero, já que o gênero, assim como a linguagem são construções sociais, não sendo, portanto, determinadas exclusivamente pelos fatores orgânicos. Nesta perspectiva, até mesmo a corporalidade, a cor da pele e dos olhos têm suas implicações sociais.
Vale ressaltar que a construção das nossas identidades não são processos naturais (Martz, Teixeira e Gomes, p. 177). No processo de construção da identidade estudantil, por exemplo, a identificação do estudante com a identidade de aluno exemplar é tão anti-natural quanto sua identificação como “aluno-problema”. Essas duas categorias são impostas por um sistema de ensino que limita todas as diversas formas de aprender, pois está focado apenas no modelo padrão.
A partir de qual momento da fase escolar uma criança alegre, que brinca com amigos, é interativa se torna um “problema”? Qual o limiar para transformar essa criança saudável em “doente”? Qual a real implicação em medicalizar crianças que, em nome de um padrão de ensino excludente e pouco flexível, recebem um diagnóstico que regula seu comportamento? Seria esta uma tentativa real de incluir essas pessoas no sistema de ensino ou simplesmente uma ferramenta usada para colocar esses indivíduos em uma posição inferiorizada?
A construção da identidade é um processo constante, proteiforme e que depende do contato com o outro. É através desse contato que descobrimos novas formas de ser e de agir. Isso não acontece só com os seres humanos. Diversos estudos mostram que a maioria dos pássaros recém-nascidos não saem da proteção de sua mãe e continuam no ninho até que sua estrutura muscular se desenvolva o suficiente. Enquanto estão no ninho, sendo alimentos pelos pais, os filhotes acabam desenvolvendo uma dependência que precisa ser ultrapassada. Os pais, então, encorajam suas crias e incentivam pequenos avanços. É comum que os filhotes caiam do ninho e não consigam voar de primeira, mas os pais sempre incentivam novas tentativas e mostram que a prática leva a perfeição (Tomasello, 2003).
Assim como aprender a voar não é tão instintivo e nem tão fácil quanto se pareça, o processo de letramento, apesar de estar tão enraizado e naturalizado, tampouco o é. É comum que o processo de aprendizagem não seja tão fluido para todos, dificuldades no meio do caminho são esperadas. Um simples problema comum na aquisição da escrita como a troca de “p” por “b”, por exemplo, não pode ser encarado como um sintoma de alguma patologia, mas sim como uma etapa natural do processo de letramento. Cada indivíduo tem uma habilidade diferente, mas é preciso sempre incentivar novas tentativas e principalmente, não desistir do aluno, pois a capacidade de aprender é comum a nossa espécie, cabe aos educadores mostrar que existem vários caminhos.
A escola tem como objetivo atingir e ensinar a todos através de um sistema de ensino homogêneo, que ensina todos da mesma maneira. O que acaba por desconsiderar as desigualdades sociais, as particularidades que diferenciam e caracterizam cada aluno.
Muitas vezes os alunos se sentem entediados e desinteressados em sala de aula, pois o conteúdo das disciplinas são inacessíveis a linguagem e a visão de mundo do aluno. O professor, nestes casos, não sabe lidar com situações deste tipo e o aluno fica desamparado. É preciso que os educadores estimulem a imaginação e o interesse do aluno trazendo para a sala de aula elementos que não estão presentes no cotidiano escolar.
Neste sentido, a tecnologia pode ser uma grande aliada ao processo de letramento, já que uma grande parte das crianças está habituada ao uso de celulares e crescem mediadas pelo computador seja jogando, desenhando ou simplesmente brincando. A tecnologia pode ser usada para incentivar a leitura e o reconhecimento de sílabas. O AniWorld é um bom exemplo de aplicativo que pode auxiliar no processo de letramento. O aplicativo funciona como um zoológico virtual com dezenas de animais, inclui o que os animais podem e não podem comer, onde vivem e onde dormem. Com mais de 250 imagens é uma ferramenta que distrai enquanto ensina. Esse programa, disponível em Android, incentiva a leitura e o reconhecimento de sílabas.
Quando a criança está na escola e já tem um histórico de dificuldade de aprendizado, o aluno acaba se sentindo obrigado a aprender. Este tom de obrigação dificulta a concentração e, inclusive, pode ser traumático para o aprendiz, já que o método de ensino é homogêneo e a criança não consegue se desenvolver nesse ambiente. A tecnologia a distrai, porque chama a atenção visualmente e força a criança a ter um mínimo de concentração para cumprir pequenos objetivos. Assim ela nem percebe que está aprendendo, tornando o processo menos doloroso.
É preciso entender que a patologização da infância não traz nada de positivo, apenas contribui para a manutenção do preconceito entorno das noções de normalidade, anormalidade e patologia. Os tratamentos propostos a partir de um diagnóstico são baseados na incapacidade do sujeito. Porém não podemos simplesmente acreditar que o sistema de ensino atual é capaz de acolher e ensinar a todos, já que ele tem como ideia a homogeneização do conteúdo. As crianças que não se encaixam nesse sistema devem ter uma atenção especial, não por que são incapazes de aprender ou pensar, mas porque o sistema não está preparado para lidar com pessoas que não seguem os padrões impostos pela sociedade normativa.

Referências bibliográficas:
MARTZ, M. L. W. ; TEIXEIRA, V. R. V. ; GOMES, Jason . Determinismo biológico: a necessidade da desconstrução desse olhar no contexto educacional. Sociedade e Medicalização. 1ed.Campinas: Pontes, 2015, v. 1, p. 175-.

Tomasello, M.Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. (C. Berliner, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1999), 2003

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Em convite: Análise crítica do filme 'A guerra do fogo' (1981) sob a perspectiva das teorias evolutivas da linguagem

Depois de muito tempo parado, o bloguinho volta com uma resenha do filme "A guerra do fogo" (Quest for fire), de Annaud.
Trata-se de um filme que levanta muitas questões filosóficas sobre como eram e evoluíram nossos antepassados. "A guerra do fogo" também pode ser discutida sob diferentes aspectos do conhecimento como a antropologia, a sociologia, a psicologia. Aqui, no entanto, Frederico Prado, um aluno do curso de Linguística da Unicamp, faz uma análise com foco em algumas teorias sobre evolução da linguagem.

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1) Informações gerais


A Guerra do Fogo (fr: La Guerre du Feu) foi um filme dirigido por Jean-Jacques Annaud, em cartaz no ano de 1981. O filme tornou-se, nas décadas seguintes, uma espécie de produção emblemática sobre a humanidade primitiva, normalmente exibido em escolas nas aulas de ciências naturais ou história para dar uma representação visual das condições de existência do homem pré-histórico. Além disso, obteve grande sucesso comercial e razoável sucesso de crítica.

O filme narra, ao longo de uma hora e quarenta minutos, a história de três integrantes de uma tribo de Homo neanderthalensis, que têm para si designada a tarefa de buscar fogo após a última chama conservada por sua tribo ter se apagado num incidente. Os três Neanderthais saem então em busca do fogo ao longo do território que corresponde hoje ao continente europeu. No percurso, passam por situações envolvendo a fauna selvagem e tribos hostis, além de interagirem com outras espécies do gênero Homo, em especial uma tribo de Homo sapiens, da qual uma integrante se assimila ao grupo de Neanderthais.

Estão presentes no filme três grupos identificáveis: i) duas tribos de Neanderthais ii) uma tribo de Homo erectus iii) uma tribo de Homo sapiens. No primeiro grupo, as duas tribos são apresentadas de forma semelhante: utilizam vestimentas rudimentares, organizam-se em grupos, utilizam ferramentas e armamentos simples (lanças de madeira, pedras afiadas) e desconhecem a técnica para criar fogo independentemente de fatores externos. O que diferencia a primeira tribo (a qual pertencem os três personagens principais) da segunda é que essa mantém o hábito do canibalismo, e mostra-se especialmente agressiva. O segundo grupo aparece brevemente nos minutos iniciais do filme, atacando a tribo do grupo de Neanderthais numa tentativa de obter o fogo que mantinham aceso. Os Homo erectus não trajam vestimentas, sua aparência é mais próxima dos primatas não humanos e não usam ferramentas, embora pareçam deter conhecimento suficiente para arquitetar armadilhas usando grandes rochas. O terceiro grupo, dos Homo sapiens, é extensamente exposto na segunda metade do filme. Não usam vestimentas, mas trajam máscaras e pinturas corporais. Tem conhecimentos de produção de remédios herbais e de objetos complexos (vasos, flechas, cabanas), além de apresentarem cultura e linguagem desenvolvidas e bem definidas. São o único grupo de humanos a dominar a técnica para produção de fogo. A maior parte do filme mostra o contraste deste grupo cultural e tecnologicamente avançado com os Neanderthais.


2) Linguagem


No que tange à linguagem, os assessores responsáveis pelo filme foram o linguista e escritor britânico Anthony Burgess e o sociobiólogo Desmond Morris. Burgess criou o idioma falado pelos Neanderthais, e Morris supervisionou a linguagem gestual utilizada pelos homens primitivos.

Ao longo do filme, os personagens de cada grupo se comunicam de formas distintas. Os Homo erectus não apresentam qualquer tipo de linguagem vocal ou gestual articuladas, produzem meramente vocalizações curtas para anunciar seu ataque.

Os Neanderthais da primeira tribo (não canibal) se comunicam ao longo de todo filme num idioma artificial criado por Anthony Burgess. O idioma parece baseado num conjunto misto de raízes lexicais saxônicas e latinas (indoeuropeias). Há raros momentos em que frases inteiras são articuladas, e o que predomina são enunciações curtas referenciais (os personagens vêem algo no ambiente externo, como fogo, e anunciam repetidas vezes a palavra correspondente).

Os Homo sapiens apresentam idioma complexo, expressando-se sempre com sequências rápidas de frases longas, aparentemente conectadas por subordinações. Detêm a capacidade de expressar emoções (há uma cena interessante em que a personagem Homo sapiens ri de um acontecimento, enquanto os Neanderthais não demonstram qualquer noção de senso de humor ou acontecimento humorístico) e de explicar processos externos.

Os Homo sapiens e os Neanderthais não falam idiomas mutuamente inteligíveis, mas ainda assim se comunicam repetindo sons, em alguns momentos fazendo gestos referenciais simples.

Na maior parte do filme, o que prevalece é a linguagem oral e as vocalizações simples. Mesmo os grupos com idiomas vocalmente pouco desenvolvidos se comunicam de forma primariamente sonora, são raros momentos em que há gestualização para expressão, e ainda mais raros os momentos em que a gestualização acompanha a linguagem oral. Os assessores do filme parecem não ter dado atenção para este aspecto da comunicação humana, ao menos não da forma que teorias mais recentes de evolução da linguagem dão.


3) Teoria evolutiva da linguagem


Teorias mais recentes que tratam da evolução da linguagem têm dado foco à comunicação não verbal de gestos manuais e faciais, afirmando a linguagem enquanto multimodal, em oposição à visão puramente oral da comunicação humana. Arbib [2] argumenta que foi a capacidade avançada de imitação humana (ligada a conjuntos neurais específicos funcionais, os neurônios espelho) unida à comunicação gestual que permitiu o desenvolvimento de protossignos para a posterior gênese da protolinguagem. Essa teoria vai diretamente contra as ideias de evolução direta da vocalização primitiva em primatas para a linguagem oral em humanos.

Corbalis [1] desenvolve a teoria numa tentativa de explicar mais a fundo como surge e se opera a linguagem gestual e, mais fundamentalmente, como se deu a passagem de gestos para oralidade na linguagem humana.

Segundo o autor, em um dado momento da pré-história humana, surgiram pressões para o emprego de estruturas linguísticas mais complexas, ligadas a narração de acontecimentos passados e o planejamento de feitos futuros (mental time travel), o que teve como consquência a emergência de estruturas gramaticais que iam além da comunicação simplesmente referencial. Igualmente, com o uso cada vez mais frequente de ferramentas, as mãos dos humanos primitivos foram se ocupando, e a gestualização manual foi passando gradativamente para a área da face e boca, e daí para a vocalização oral.

Os dois autores se encaixam dentro da teoria evolutiva da linguagem humana, sob a qual analisamos o filme "A Guerra do Fogo" com um viés crítico na próxima sessão.

4) Comentários críticos



Em "A Guerra do Fogo", a linguagem não é exposta como multimodal. Há momentos em que existe gestualização por parte dos personagens, como por exemplo quando o grupo de Neanderthais encontra animais para caça e passam a fazer movimentos com os lábios para indicar desejo por alimento. No entanto, essa presença de gestos não é consistente ao longo do filme, sendo mais pontual em raros momentos, e quase nunca concomitante às vocalizações. Os produtores do filme parecem ter optado por uma perspectiva unimodal da linguagem: ou os homens primitivos vocalizavam, ou faziam gestos.

Isso vai de frente contra as teorias expostas na sessão anterior. Numa refilmagem atualizada do longa, seria mais adequado, à luz dessas teorias, que os homens primitivos gestualizassem mais frequentemente para se expressar. A forma dessa gestualização também deveria ser diferente para os dois grupos humanos (sapiens e Neanderthalis), como veremos a seguir.

Os Neanderthais, como já mencionado, apresentam linguagem oral mais simples e curta, em que predomina o referencial, e não existe o narrativo. Seria esperado, portanto, que fizessem uso extenso de gestos para se expressarem, o que não ocorre. Pelo contrário, insistem na repetição vocálica primitiva, assemelhando-se a primatas. Diante do fato de que dominam outras áreas do conhecimento, como a fabricação de vestimentas e ferramentas, torna-se pouco coerente que sua linguagem se resuma a esse tipo de vocalização, especialmente levando em consideração que a fabricação de objetos depende em primeira instância da coordenação motora. Por que, então, a habilidade manual existe apenas para um tipo de tarefa (de manufaturar objetos) mas não para a linguagem, ainda mais essencial? 

No caso dos Homo sapiens, chama a atenção sua linguagem oral complexa e a presença de uma cultura desenvolvida. De certa forma, isso esta de acordo com as teorias evolutivas da linguagem: no filme, os Homo sapiens estão no estágio narrativo da linguagem, isto é, realizam a viagem mental no tempo na medida em que a cultural depende da capacidade narrativa. Nesse sentido, sua linguagem é gramaticalmente complexa e articulada, e primariamente oral, embora os personagens Homo sapiens sejam os que fazem uso mais extenso da linguagem corporal. Por outro lado, nas cenas emblemáticas em que ensinam os Neanderthais como fabricar fogo não há nenhum tipo de comunicação linguística. O que ocorre é a demonstração pura e simples: o Homo sapiens apenas realiza a tarefa na frente do Neanderthal, esperando que este aprenda por imitação.

Novamente, parece estranho que o grupo humano que tenha desenvolvidas as capacidades narrativas e explicativas não faça sequer uma tentativa de explicação da técnica de fabricar o fogo, tão crucial dentro do enredo do filme. Embora a cena seja talvez a mais interessante do filme, seria mais adequado que a personagem Homo sapiens ao mínimo demonstrasse gestualmente (ou numa união de gesto e oralidade) o que está fazendo, explicando o que é cada objeto envolvido na técnica, como eles se articulam.

Outro elemento incoerente se da na comunicação emocional que ocorre entre um dos personagens Neanderthais e a personagem Homo sapiens, que se envolvem amorosamente ao longo da trama. Deixando de lado as incongruências biológicas e antropológicas desse acontecimento, é importante observar que os dois personagens desenvolvem um sentimento afetivo complexo, que exige um raciocínio simbólico também complexo e, portanto, linguagem para compreensão e expressão dessa simbologia. No entanto, no filme a comunicação entre os dois personagens se opera raramente, e de forma vocal simples e demonstrativa. Mais uma vez é estranho que a capacidade de sentir afeição esteja separada da capacidade linguística de expressá-la e entendê-la. Numa possível refilmagem, seria mais razoável que as personagens comunicassem sua afeição por meio de uma linguagem gestual única desenvolvida pelos dois mutuamente ao longo da trama.

Por fim, numa das cenas finais, o personagem principal Neanderthal se une novamente a sua tribo, agora com a técnica de como produzir fogo aprendida com a Homo sapiens, e se põe a narrar todos os acontecimentos de sua jornada. Não é muito coeso que os Neanderthais que até então não articulavam frases inteiras tenham adquirido subitamente, sem nenhuma passagem do gestual para o vocal, a capacidade de narrar feitos passados. Nessa narrativa do personagem não há também qualquer linguagem de gestos, apenas a narração oral. Uma possibilidade melhor, sob a luz das teorias apresentadas, seria de apresentar os Neanderthais primeiramente se valendo de uma linguagem muito mais gestual do que vocal e, ao longo de seu contato com os Homo sapiens, iriam incorporando a vocalização aos gestos para expressar os ensinamentos e, nestas cenas finais, narrar sua jornada.



Referências:

[1]   Corballis, M. C. (2009). The evolution of language. Annals of the New York Academy of Sciences, 1156, 19-43.

[2]    Arbib MA, Liebal K, Pika S. (2008) Primate vocalization, gesture, and the evolution of human language.Curr Anthro-pol. 49(6):1053-63. 



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Em convite: Extrapolando a visibilidade trans*: quem são as pessoas cis?


O texto de hoje é assinado pela Bia, é uma reflexão sobre o dia da Visibilidade trans, que é hoje, 29 de Janeiro.
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Quando falamos, ouvimos, lemos, escrevemos as palavras “homem” ou “mulher”, o que primeiro nos veem a mente? Quando encontramos esses termos nos jornais, telejornais, revistas, artigos, em programas de rádio ou em qualquer outro gênero discursivo (os diferentes “tipos” de textos ou formas de textos) o que eles querem representar? Quais sujeitos essas palavras referenciam no mundo? Certamente, um homem ou mulher “padrão” (a primeira imagem que nos veem a cabeça quando nos deparamos com esses termos) são, respectivamente, aquela pessoa que ao nascer, for designada como homem e como mulher a partir da identificação da morfologia genital. Então por que estou falando disso em 29 de janeiro, dia da visibilidade trans*? Porque pra gente entender a visibilidade trans*, precisamos primeiro entender quem são as pessoas não-trans*, as pessoas cisgêneras.
                Você provavelmente pode estar sentido algum tipo de desconforto (ainda mais se for uma pessoa cisgênera). Afinal de contas, que história é essa de pessoas que foram designadas com um gênero ao nascimento e que são cisgêneras? O que é isso afinal, que estranhamento é esse? As pessoas não simplesmente “nascem” homem ou mulheres e esse fato depende da existência objetiva de determinado sexo biológico?
                Não é tão simples assim. Pessoas transgêneras são aquelas cuja identidade atribuída ao nascimento não condiz com os seus sentimentos subjetivos e identidade de gênero. Ou seja, uma mulher trans* é aquela entendida socialmente como uma “pessoa nascida homem que quer virar/ser mulher” (e vice-versa para homens trans*). O movimento transfeminista, no entanto, irá problematizar a ideia de que alguém (não apenas pessoas trans*) nasça homem ou mulher. Inclusive irá apontar para a existência de vivências
que fogem do binário homem-mulher, o que chamamos de pessoas trans* não binárias. O transfeminismo, influenciado pelas discussões feministas, dos teóricos de gênero e da teoria queer, irá entender gênero de forma bastante distinta da usualmente usada pelo senso comum. Como dito anteriormente, o conceito de gênero/sexo é comumente tido como algo da ordem do natural, do biológico. Assim, supostamente as pessoas poderiam afirmar, através de evidências físicas/biológicas, sobre o gênero de alguém. É então que essa verdade, tão legitimada pela sociedade, é profundamente questionada, ao apontarmos que existem pessoas beneficiadas por esse sistema e outras que são marginalizadas.
                O gênero é agora entendido como uma construção social. Isso significa que não podemos entender o que seja gênero se não concebemos como os conceitos sobre “feminino” e “masculino” funcionam dentro de uma cultura. Isso significa apontar para como são acionados esses termos em relações de dominação. O feminismo historicamente vem denunciando a dominação das mulheres (cisgêneras) através da misoginia e machismo. Isso significou entender que antes de descrever verdades objetivas sobre sexo ou gênero, existiam formas de se compreender as mulheres como inferiores. O transfeminismo, mais recentemente, levando junto todo esse histórico de luta feminista, visa entender agora como pessoas trans* são oprimidas pelo próprio conceito de sexo, enquanto produtor de normas cisgêneras, assim como o feminismo fez e faz enquanto produtor de normas androcêntricas/misóginas. Como dito anteriormente, o conceito de sexo só “funciona” perfeitamente para pessoas cisgêneras. Pessoas transgêneras são vistas como uma exceção desagradável a essa lógica de que exista uma coerência necessária entre o gênero designado ao nascimento e o gênero efetivamente performado/identificado. Então, denominamos as práticas e ideias que fazem das pessoas transgêneras pessoas “erradas”, “falsas”, “doentes” e “abjetas” de cissexismo.
                Agora, portanto, não faz mais sentido falar em homens ou mulheres que “querem ser” mulheres ou homens, justamente porque mulheres trans* não são homens e nem homens trans* são mulheres. O que determina é a auto identificação da pessoa, como ela entende seu próprio gênero. Isso também significa respeitar as identidades que vão para além deste binário. Transexuais e travestis podem ser homens ou mulheres ou um entremeio desses dois conceitos. Não existe forma pré determinada como uma pessoa trans* - seja travesti, transexual, ou outra denominação – se identifique. E essa identificação não é necessariamente estática. Então, não pense que se pode presumir o gênero de alguma pessoa apenas por critérios físicos/biológicos. Na dúvida, pergunte como a pessoa gostaria de ser chamada. Isso demonstra que você está disposto a respeitar uma pessoa trans* e com isso não aumentar o coro com as constantes e infinitas vozes que insistem em deslegitimar as identidades transgêneras.
                Então, se agora sabemos um pouco sobre quem são as pessoas trans*, e quanto as cis? Qual é a importância de chamarmos as pessoas cis de cis sendo que elas são as pessoas “normais”? Simples: só entendemos alguma coisa – para então darmos “visibilidade” a ela – se soubermos exatamente o que ela não é. Na língua, já diria Saussure, o valor de um signo (ou palavra, se preferirem) só se dá a partir de relações negativas e diferenciais, ou seja, algo se define através do que “não é”. Sabemos o que é “homem” porque ele se opõe a “mulher” então só vamos entender o que vem a ser “trans” se entendermos o que é “cis”. E chamar uma pessoa de cis de “verdadeira”, “biológica”, definitivamente não é a mesma coisa de chamarmos ela de cis.
                Se continuarmos a usar esses termos biologizantes para nos referirmos a pessoas cis, iremos perpetuar uma lógica cruel e transfóbica, afinal de contas, as pessoas cis vão continuar sendo sempre as primeiras pessoas que nos veem a mente quando dizemos os termos “homem” e “mulher” e com isso, tornamos pessoas trans* “não naturais” e, portanto, próximas ao “errado”. Então para pensarmos a visibilidade trans* temos também que pensar numa espécie de visibilidade e reconhecimento do termo cisgênero. Assim, iremos cada vez mais tornando menos automático tomarmos os termos “homem” e “mulher” como necessariamente pessoas cisgêneras.

                Pessoas trans* só terão visibilidade concreta quando passarem de serem enxergadas como
exceções à categoria humana (como homens e mulheres e por extensão, humanas). Só teremos o reconhecimento da humanidade destas pessoas quando for cada vez menor a ligação entre esse sujeito padrão e universal com a pessoa cisgênera. Assim, a exotificação (quando vemos pessoas trans* sempre como a exceção à regra do que é considerado “saudável” ou “correto”) anda de mão juntas com a invisibilidade. E a linguagem é uma forma de manutenção dessa relação de poder (que produz visibilidades e invisibilidades) e, portanto, mantenedora de relações de opressão. Quando falarmos sobre “homens” e “mulheres” e não pensarmos mais automaticamente em pessoas cisgêneras é o passo necessário para que compreendamos a existência das pessoas trans* e com isso, a necessidade de se falar sobre a situação das pessoas trans*. É com a linguagem que tornamos possível reconhecer as reivindicações das pessoas, e assim, podermos lutar concretamente contra a transfobia e cissexismo.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Em convite: A Performatividade no casamento da etnia Papel da Guiné-Bissau

Quem assina a postagem de hoje é Inaida Pires. Inaida é guineense e imigrou para o Brasil para graduar-se em Letras na Unicamp. Ela já está no seu último período e o texto que aqui leremos é sua monografia.
Durante estes anos no Brasil, Inaida foi uma guerreira: teve não só de enfrentar a saudade de casa, a saudade da sua cultura e de seu povo, mas, sobretudo, teve de lidar com a diferente sociedade brasileira. Por ser mulher, negra e africana, ela encontrou inúmeros obstáculos os quais ela procurou driblar da maneira mais bem humorada possível. Quem conviveu com ela, pode dizer que este texto é fruto de uma superação. É um trofeu que se exibe àqueles que não acreditaram na conquista de Inaida. É  um trofeu para ela mesma, que muitas vezes pensou em desistir.
Quero deixar registrado também os agradecimentos ao Ricardo, que foi um grande amigo e colaborador. 

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Introdução
            Antes de iniciarmos nossa análise consideramos fundamental deixar o leitor ocidental a par do país de que trataremos, a Guiné-Bissau, bem como de alguns de seus costumes e divisões étnicas. A modo de introdução buscaremos fornecer essas informações principais.
            Num segundo momento, abordaremos com um pouco mais de detalhe o ritual de casamento da etnia Papel para, então, na terceira parte desta monografia, apresentar nosso aparato teórico e por fim realizar nossa breve análise.
            Este estudo consiste em confirmar a ideia de Austin (1990) de que "dizer é fazer". Buscaremos interpretar os costumes rituais do matrimônio Papel dentro da perspectiva austiniana, que se constrói em torno do poder que atribui ao ato de dizer. Já que o povo Papel tem uma cultura de tradição fortemente oral, o ponto de vista teórico adotado se faz muito interessante. 

1. Guiné-Bissau       
            A Guiné-Bissau é um pequeno país situado na costa ocidental do continente africano. Faz fronteira ao norte com o Senegal, ao sudeste e a leste com a Guiné Conacri e é banhado pelo oceano Atlântico a oeste e a sudoeste, como podemos ver no mapa abaixo. Segundo Intumbo (2007), a área total do país é de 36.125 km², mas que se reduz a 24.800 km² se descontamos as terras inabitáveis, isto é, aquelas que estão permanentemente inundadas por rios e lagos e aquelas que ficam sazonalmente inundadas pela água da chuva.
Figura 1: Mapa físico da Guiné Bissau
fonte: Google maps
           


Apesar do território tão pequeno, equivalente ao estado brasileiro do Rio de Janeiro, e de uma população relativamente reduzida, um milhão e meio de habitantes, autores como Intumbo (2007) e Pinto (2009), entre outros, descrevem a Guiné-Bissau como um território extremamente diversificado culturalmente, o que se deve à diversidade de etnias.
Em média, a cada 50 ou 60 km, entramos num território linguístico diferente,quer viajemos para o Norte, Sul, Leste ou Oeste. Nota-se uma diferença linguística ecultural entre as regiões, talvez motivada pelas actividades de sustento praticadas pelospovos que as habitam: as etnias do Norte e Sul, maioritariamente animistas, dedicam-se essencialmente à agricultura e normalmente constroem as suashabitações junto àsbolanhas (arrozais); as etnias do leste, predominantemente muçulmanas, praticam apastorícia e o comércio, habitando zonas mais recuadas em relação aos arrozais,geralmente mais desérticas. Assim, se viajarmos de Bissau para a cidade de Mansoa anortedeste, (60 km) passamos pelo território dos papeis (Bissau), dos balantas (vila deNhacra, entre Bissau e Mansoa) e chegamos ao território dos mansoncas (cidade deMansoa); de Gabú a Bafatá no leste temos os fulas apenas e a sua língua numa extensãode mais de 50km (Intumbo, 2007, pp. 2-3)
            A população é composta por cerca de 30 etnias, que têm sua língua própria. A seguir, apresentamos um quadro (apudIntumbo) com as principais línguas e seu número de falantes:

Quadro 1
Línguas
População
Línguas
População
Balanta
254.000
Mansonca
9.000
Fula
169.000
Baiote
5.000
Manjaco
118.000
Banhum
5.000
Mandinga
96.000
Nalu
5.000
Papel
59.000
Sarakolé
2.000
Mancanha
25.000
Sussu
2.000
Biafada
18.000
Kassanga
400
Padjadinca
5.000 – 12.000
Kobiana
300
Bijagó
16.000
Djakanka
-
Diola
15.000
Maninka(?)
-
Mansonca
9.000



            A essas línguas deve-se acrescentar o Kriol, que é falado por praticamente todos os habitantes e é tido como uma língua franca. Além disso, nos registros formais, fala-se o Português, para o qual não há uma estimativa oficial dos números de falantes (Nhanca, 2013).    
            Quanto à religião, Pinto (2009) apresenta a seguinte informação:
Actualmente, pode distinguir-se na realidade da Guiné-Bissau três grupos sociais. Um indígena (africanos animistas), outro de influência árabe (islamizados pelos árabes Almorávidas desde os séculos XII-XIII) e outro de influência europeia (cristianizados). Cerca de 55% serão indígenas, 40% islamizados e 5% cristãos (estes concentrados, quase exclusivamente em Bissau) (p. 31).


1.1 A etnia Papel      
            Sobre a etnia Papel, cultura de que trataremos, deve-se dizer que ela compartilha traços culturais com os Manjacos e os Mancanhas, já que em seu passado configuravam um mesmo grupo étnico. A diferença se deu após a colonização portuguesa que instalou diferenças artificiais e difundiu a crença de que os povos não conformavam uma mesma etnia. Essa foi uma das estratégias da administração colonial para dissuadir os mais revoltosos e que frutificou até os dias atuais. Os Papéis (ou Papeles) estão divididos, de acordo com Pinto (2009), em 7 clãs organizados em regulados.
            De acordo com Moreira (1994), a etnia Papel segue um esquema matrilinear, isto é, a pertença ao clã é herdada da mãe. No entanto, as lideranças são feitas pelos indivíduos do sexo masculino, assim, o indivíduo é incorporado ao clã do tio materno. A hierarquia funciona por senioridade e a figura máxima é o régulo (ou rei), cujo clã Batcha-su é o único dos sete que pode dar origem ao que ocupa essa posição. O aglomerado de casas, que se dá por afinidade de parentesco, se denomina "morança": "é geralmente composto por um patriarca - 'chefe da morança' - suas mulheres e filhos solteiros e casados, podendo agregar três a quatro gerações" (Moreira, 1994, p. 177).
            Sobre a origem do nome, Semedo (2010) traz um relato de uma de suas informantes que assim o explica:
os portugueses pagaram tributo aos régulos papéis até finais do século XIX, altura em que impuseram o pagamento dos impostos de cabeça e de palhota aos nativos. Conta-se que o nome dessa etnia estaria ligado ao relacionamento difícil com o colonizador. Os habitantes da ilha de Bissau, muito rebeldes, nunca quiseram pagar os impostos de palhota e de cabeça impingidos pelos colonizadores e, sempre que recebiam a notificação de pagamento, levavam o “Papel” diretamente à administração, reclamando serem eles os donos do chão e que por isso não deveriam pagar nada. Assim, sempre que os homens apareciam, os brancos exclamavam “aí vêm os homens do Papel”.  Informa ainda Semedo que o nome Papel ficou, e que na língua local esse grupo se autodenomina ussau (o grupo papel da região de Biombo se autodenomina yum). (p. 53).
            Existe também a variação da primeira vogal "a" com "e", resultando na denominação "Pepel".
1.2 Objetivos
            A diversidade cultural proporcionada pelos numerosos grupos étnicos se faz notar também nos diversos costumes e tradições específicos e bem distintos uns dos outros. Alguns desses costumes dizem respeito a momentos que simbolizam a integração do indivíduo na coletividade como, por exemplo, a passagem para a vida adulta, o matrimônio ou o luto.
            Neste trabalho, abordaremos a cerimônia de casamento da etnia Papel, cujo ritual matrimonial
Madrinha dando de comer aos noivos
apresenta elementos extremamente interessantes se considerarmos sua diferença em relação aoritual católico ou cristão de união entre duas pessoas. O casamento Papel possui características próprias de sociedades orais nas quais a linguagem tem um poder maior do que o de qualquer documento escrito.
Ao analisar alguns dos elementos do casamento Papel, notamos que o seu processo de significação poderia ser estudado a partir das reflexões do filósofo inglês John Austin sobre a performatividade da linguagem.
Dessa forma, neste trabalho, pretendemos analisar brevemente uma cerimônia de casamento Papel, identificando e descrevendo os seus elementos performativos e evidenciando o seu processo cultural de significação. 
2. Descrição do Casamento na Etnia Papel
            Entre os vários ritos e cerimônias da etnia Papel, o casamento é um dos mais importantes e valorizados. Fruto direto de uma cultura oral, essa cerimônia possui mais legitimidade entre seu povo do que os casamentos realizados em cartórios e firmados por contratos assinados. Como integrante da etnia Papel, passo agora a relatar em linhas gerais algumas das características dessa cerimônia das quais tenho conhecimento. Este relato também se baseia em uma filmagem pessoal de um casamento familiar e no estudo de Moreira (1994). Conforme comenta Moreira, existe uma lacuna bibliográfica sobre o ritual de casamento da etnia Papel, por isso, seu estudo se baseia em apenas uma ocorrência que a autora teve oportunidade de presenciar. Igualmente é o caso deste trabalho, contamos apenas com o meu conhecimento de integrante nativa e com as experiências de que tenho vivência.
                Embora atualmente na Guiné-Bissau muitas práticas culturais étnicas estejam sendo deixadas de lado (Pinto, 2009), essa cerimônia mantém-se viva entre os integrantes da etnia Papel. Sua preservação é encarada como um ato de respeito aos antepassados, uma continuidade étnica e uma afirmação da existência do próprio grupo e de seus valores.
                Sendo assim, os jovens que ainda se uneme maritalmente por meio dessa cerimônia tradicional reafirmam a existência de seu povo e a sua identidade Papel. Um fato interessante sobre a continuidade e a identidade Papel é que ela se realiza por meio de transmissão materna.
            O seguinte provérbio da língua Kriol exemplifica bem essa concepção, deixando claro que o Papel é filho da barriga, ou seja, da mãe:

Fiju ta padidu tras di si pape, ma i ka tras di si mame
(Filho pode nascer longe do pai, mas não longe da mãe).

            O casamento entre dois jovens Papéis não nasce da vontade dos cônjuges. Na verdade, é um acordo de união firmado entre duas famílias que se concretiza com o casamento entre seus filhos. Esse acordo, por sua vez, é realizado com o intuito de garantir a continuidade da etnia Papel. Nas palavras de Moreira (p. 178):
Ainda recentemente o casamento constituía a forma privilegiada dos grupos de parentesco estabelecerem alianças entre si. Estas eram protagonizadas por indivíduos do sexo masculino com estatuto de senioridade sendo então vulgar que uma rapariga ao nascer estivesse já "prometida" em casamento. A união afetiva dependeria de toda uma série de transferências de bens e serviços do grupo de parentesco do rapaz para o da futura "noiva" que se realizavam até à altura em que esta fosse considerada apta para casar. Isto acontecia a partir da primeira menstruação e desde que o seu corpo apresentasse o desenvolvimento físico esperado.
            Atualmente, os integrantes da etnia lutam para que o governo local reconheça essa cerimônia legítima de união como um ato legalizado de união civil.
2.1. Noivado 
            Geralmente são os pais do rapaz que propõem o casamento aos pais da moça. Caso haja aceitação do pedido, segue-se uma série de ritos que levarão ao casamento e finalizarão com a cerimônia. Algumas vezes a noiva só conhece o seu futuro marido no dia do casamento. Tal fato às vezes gera constrangimento e revolta, já que a noiva pode não se sentir atraída pelo noivo. Na maioria das vezes, a moça é obrigada a casar-se com homens bem mais velhos que ela.
            Com a confirmação do noivado, a noiva passa a ser vigiada não apenas pela sua família e pela família do noivo como também pelos amigos do noivo.
2.2. Dote
            O rapaz deve pagar um dote aos pais da moça pela mão de sua filha. Esse dote consiste em alguns objetos (tecidos, 10 litros de pinga, um porco, um bode e um cachorro) e em trabalho a ser realizado em plantações do pai da noiva. Esse trabalho deve ser feito desde a colheita até o cultivo do produto. Caso o noivo tenha dificuldades na realização da tarefa pode pedir auxílio aos seus amigos.
                Os objetos do dote devem ser entregues no dia das núpcias. Eles são conferidos pelos membros masculinos da família da noiva. Se faltar algum, eles iniciarão um longo discurso com o noivo sobre o fato. Algumas vezes esse discurso dura a noite toda. O objetivo dessa discussão é verificar a intensidade do desejo do noivo em casar-se com a noiva e demonstrar que a obtenção da sua mão é algo difícil. Um fato interessante é que o noivo não pode responder às falas que lhe são endereçadas porque antes da realização do casamento ele não possui direito à palavra. Seus familiares e amigos é que responderão e intercederão por ele.
            Os animais serão sacrificados no local onde ocorrerá o enlace dos noivos. Após o grupo masculino, as mulheres também conferem se o noivo trouxe todos os animais exigidos no dote. Vale ressaltar que,dentre os animais, o cachorro é o mais importante, pois ele é o símbolo da união e, no momento de seu sacrifício, caso ele chore mais de uma vez, isto será interpretado como um indício de maldição ao futuro matrimônio.
            A mãe da noiva ficará com os tecidos. Os tecidos, mais concretamente os chamados panos pentes, têm na cultura guineense um significado prestigioso:
Estes panos são bens de prestigio e símbolos de poder que todas as mulheres procuram possuir, e quando podem, juntam um número elevado desses panos que testemunham o seu prestígio (Carvalho, 1998: 106). São as mulheres que fornecem, quando necessário, panos para os membros masculinos da família. Se o gado é a riqueza do homem, os panos pente são a das mulheres. (...)Uma bideira de etnia papel considerou a compra de panos cerimoniais, como o investimento preferencial dos lucros obtidos no comércio, «porque pano tem grandesignificado na vida da mulher Papel.Isso justifica no momento da morte da mãe, em que a filha mais velha tem de apresentar a mala cheia de pano da sua mãe e a sua própria mala também cheio, e o não cumprimento desse dever significa o grande insulto familiar» (Perpetua, comerciante de peixe) (Domingues, 2000, p. 364-5)

A pinga, por sua vez, será utilizada como um sinal após as núpcias para informar aos familiares e à comunidade se a noiva casou-se virgem. Se a noiva casou-se virgem, o marido sai do quarto de núpcias com uma garrafa cheia de cachaça; se a noiva não era mais virgem no momento do casamento, o marido apresenta uma garrafa contendo apenas metade do líquido e a entrega à mãe da noiva. Esse gesto simboliza que o noivo considera que a mãe não educou bem a sua filha.

2.3.  Casamento
            No dia da cerimônia, o noivo fica inserido em um grupo masculino e a noiva em um grupo feminino. Esses grupos são compostos por integrantes das duas famílias.     Após a conferência do dote pelos homens o noivo é encaminhado ao local no qual se consumará outra parte do ritual. A noiva só será encaminhada até lá se o noivo demonstrar alegria em recebê-la. A noiva, trajando um pano branco ou preto, vai até o local acompanhada pela sua comitiva de mulheres.
                Os homens e as mulheres presentes organizam-se em um círculo no qual encontram-se os noivos.
            Nesse momento, o noivo terá que romper com as mãos uma linha que está presa na cintura da noiva. A ruptura dessa linha, tecida pelas mulheres da comunidade, simboliza a união do casal e de suas famílias.
            Se o homem não conseguir romper a linha de tecidos com as mãos, as mulheres entregam-lhe uma faca. Porém, caso isso ocorra, os presentes dirão ao noivo que ele é um homem fraco e que, provavelmente, não conseguirá cuidar da sua própria família. A intenção dessa provocação é fazer com que o noivo desista do casamento.
            Com o rompimento da linha, a noiva deixa de ser responsabilidade da família dos seus pais e passa a ser responsabilidade do noivo. Nesse momento, o noivo também ganha seu direito à fala e poderá responder a qualquer uma das provocações ou falas que antes lhe haviam sido dirigidas.
            Depois dessa cerimônia, o marido levará sua esposa para a casa na qual os dois viverão. Porém, os dois ainda não poderão dormir juntos. Desde a chegada à casa do marido até às vésperas da noite de núpcias, a mulher dormirá com uma acompanhante.
            No dia seguinte, a mulher terá todo o seu cabelo raspado por um dos amigos do marido. O corte de cabelo simboliza a ligação da mulher com a família de seus pais. O cabelo que nascerá, representa a nova relação familiar que está se iniciando.
Esse rito ocorre no centro da casa (morança). Após a sua realização uma das senhoras da família do marido untará todo o corpo da mulher com óleo de palma (óleo de dendê). Essas ações, o corte de cabelo e a passagem do óleo, devem ser realizadas em total silêncio.
            Quando o marido falecer, a mulher também deverá cortar todo o seu cabelo como um sinal de luto.
            Após a cerimônia do corte do cabelo ocorre uma festa.
noiva envolta no tecido embebido
de óleo de dendê
            A esposa ficará um mês na casa do seu marido. Durante esse tempo, eles não poderão dormir juntos. Transcorrido o tempo de espera junto ao marido, ele passará curtos períodos de tempo na casa de vários de seus familiares.
            É somente quando a esposa retorna para a casa do marido que ocorrem as núpcias do casal. As núpcias são acompanhadas pelas familiares e amigos dos cônjuges.
            Para a etnia Papel, a mulher só se casa uma vez. Caso ela se separe ou o marido faleça, ela sempre continuará ligada a esse esposo. Mesmo se ela tiver filhos com outro homem, estes serão considerados filhos do seu primeiro marido


3. Os atos de fala e o casamento Papel
3.1 Abordagem teórica
            Iremos analisar alguns dos momentos do casamento da etnia Papel para verificar a performatividade dos atos de linguagem presentes na situação. Segundo essa teoria performativa, desenvolvida pelo filósofo inglês John Langshaw Austin (1990), a linguagem não é uma representação de um pensamento ou de um estado de coisas, mas sim uma ação sobre o mundo. Sendo assim, a nossa fala é um ato, que não apenas diz, como também faz.
            Nesse sentido, o autor, assim como já o faziam Frege e Wittgenstein, opõe-se à noção de proferimentoassertivo, rompendo com uma tradição que apenas podia atribuir valores de verdade ou falsidade aos enunciados. Segundo Renato Ferreira (2011), Wittgenstein colabora para o pensamento de Austin na medida em que considera que o significado das palavras não depende apenas delas, mas de todo um contexto em que é articulada. Por outro lado, continua o autor, Frege aprofunda esse pensamento com seus conceitos lógicos. Os proferimentosconstatativos são semelhantes ao performativos de Austin, com a diferença de que “A. nada 'descrevam' nem 'relatem', nem constatem, e nem sejam 'verdadeiros' ou 'falsos'; B. cujo proferimento da sentença é, no todo ou em parte, a realização de uma ação, que não seria normalmente descrita consistindo em dizer algo” (FERREIRA, 1990, p.24). O exemplo clássico usado para ilustrar a impossibilidade de atribuição de valores aos atos performativos é o batizado, em que a declaração do padre é o próprio ato do batismo. Esse ato pode ser infeliz, caso a declaração seja proferida pelo coroinha, por exemplo, mas não falso. Por isso, o filósofo inglês propõe condições de felicidades para os atos performativos:
(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito, que
apresente um determinado efeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que
(A.2) as pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso, devem
ser adequadas ao procedimento específico invocado.
(B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos osparticipantes, de modo correto e
(B.2) completo.
(Γ .1) Nos casos em que, como ocorre com frequência, o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou
visa à instauração de uma conduta correspondente por parte de alguns
dos participantes então aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneiraadequada, e, além disso,
(Γ .2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subsequentemente.
(AUSTIN, 1990, p. 31)
            Os atos performativos ainda se dividem em três tipos: osimples ato de dizer algo é chamado de ato locucionário, e corresponde ao contatativo. Este se opõe ao ato ilocucionário, que consiste na realização deum ato ao dizer algo, mas um dizer que realiza alguma coisa, e corresponde ao performativo. O terceiro, o ato perlocucionário, implica produzir efeitos e consequências de um dizer sobre quem ouve ou quem fala (1990, p.89-90).
Eis o exemplo de Austin (1990, p. 90):
Ato (A) ou Locução
Ele me disse 'Atire nela!' querendo dizer com 'atire' atirar e referindo-se a ela por 'nela'.
Ato (B) ou Ilocução
Ele me instigou (ou aconselhou, ordenou, etc.) a atirar nela.
Ato (C.a) ou Perlocução
Ele me persuadiu a atirar nela
Ato (C.b)
Ele me obrigou a (forçou-me a, etc.) atirar nela.
3.2 Análise do casamento Papel: o papel social do homem
            Passemos agora a entender como esses atos performativos se dão no contexto do casamento dos Papéis.
            No casamento Papel, o noivo só tem direito à fala após a concretização da união, que é simbolizada pelo corte de uma linha que está amarrada na cintura da noiva. Antes disso, o noivo deve permanecer em silêncio e não pode dirigir a palavra a ninguém, mesmo se ele é insultado ou ofendido. Aliás, é comum os parentes da noiva ofenderem e tentarem humilhar o noivo durante a cerimônia, considerando exatamente o fato de que ele não pode responder.
            O casamento Papel é um ritual específico de uma cultura, portanto, as ações e os papéis desempenhados pelas pessoas nesse ritual são socialmente aceitos e estabelecidos. Dessa forma, cada um dos noivos deve exercer o seu papel dentro daquela cerimônia. O silêncio do noivo faz parte desse ritual. Então podemos considerar que o silêncio do noivo não é fruto de uma ação individual, de uma decisão tomada por ele, mas sim uma ação determinada socialmente.
            O fato de o noivo não emitir nenhuma palavra representa o aspecto locucional daquele ato de fala. Pode-se considerar que o aspecto ilocucional é o sentido implícito desse silêncio. Ficar em silêncio naquela situação é um ato, e significa que ele está disposto a enfrentar qualquer coisa para que aquela mulher seja sua esposa.
            Os insultos que os parentes da noiva dirigem ao noivo não são simplesmente insultos. Essas ofensas são atos de fala e ilocucionalmente significam que os parentes duvidam da capacidade do noivo em estabelecer e manter uma família.
            Após o corte da linha, o noivo passa a ter direito à fala e pode, até mesmo, responder aos insultos que lhe haviam sido dirigidos. Porém devemos notar que após o corte da linha o noivo já não é mais noivo, ele passa a exercer o papel de marido - em outras palavras, o corte da linha faz do noivo um marido e, em seu papel de marido, pode e deve se defender de qualquer ofensa que lhe for dirigida.
            Dessa forma, consideramos que no casamento Papel a mesma pessoa acaba ocupando duas posições sociais distintas: a de noivo e a de marido. Em cada uma delas, eles desempenham funções específicas que se materializam na linguagem: pelo silêncio e pela fala.
3.3 Análise do casamento Papel: o papel social da mulher
            Embora a noiva não seja proibida de falar durante a cerimônia de casamento, é durante toda a sua vida que o aspecto perlocucional estará presente. A noiva é obrigada pelo patriarca a casar-se com um noivo desconhecido. Mas essa interpretação só faz sentido se a noiva realmente se sentir obrigada a se casar, caso contrário estaremos diante de um ato ilocucional. A diferença está na comparação dos enunciados: "a tradição me obrigou ao casamento" ou "fui levada ao casamento". Note-se que o simples ato de dizer "vou me casar" é oriundo ou de um ato ilocucionário (que funcionou como um performativo) ou de um ato perlocucionário (tomado apenas como efeito – a noiva foi persuadida ou obrigada).
3.4 A performance ritual
            Alguns momentos do ritual de casamento Papel não são perpassados por um ato de fala específico. A performance se torna ação através de um conhecimento tradicional que dispensa o ato de fala, o ato de dizer determinadas palavras. A seguir vamos retomá-los especificamente.
            Para a noiva, raspar os cabelos, unguentar-se em óleo de palma, dormir 12 noites na esteira e ser alimentada pela acompanhante faz parte de um rito de passagem para uma nova vida ao lado de seu futuro marido. Todos esses símbolos são passados de geração a geração através de uma cultura de oralidade em que o dizer não precisa ser dito, apenas realizado.
       
Os noivos
     Igualmente, a garrafa de pinga carrega seu significado construído através de dizeres ancestrais: a depender da quantidade de líquido, eis o estado virginal da noiva. O sacrifício animal, especialmente o do cão, traz consigo um símbolo de união. O cachorro não pode faltar, sem ele não há união, o canino tampouco pode emitir mais de um choro, com a consequência de representar infortúnio. Todos esses significados dispensam na cerimônia o ato de fala, um dizer formulaico. Da mesma forma também que o dispensam os significados da quantidade de panos pentes ofertadas como sinal de prestígio ou a maciez da pele proporcionada pelo banho de óleo de palma.        
4. Considerações finais
            Neste trabalho, buscamos apresentar parte da cultura da Guiné-Bissau através da cerimônia de casamento da etnia Papel. O objetivo principal foi analisar brevemente alguns aspectos dos atos performativos de Austin (1990) dentro de uma cultura de tradição oral.
            Em vias de comparação, no casamento ocidental, sobretudo nos de origem cristã, o compromisso não se reduz ao “sim” que ambos os noivos devem dizer ao padre ou ao pastor (e ao juiz no casamento civil) – é preciso que a autoridade religiosa ou civil pronuncie as palavras: "Eu vos declaro marido e mulher” – então, embora haja o peso burocrático atribuído ao papel (e à escrita, consequentemente) e seja ele que registre o ato, sem as palavras pronunciadas pelo padre/juiz não há casamento. Nesse sentido, o casamento ocidental é também uma performance. Já no casamento na etnia Papel, por já pertencer a uma cultura de tradição oral, a performance se dá muito menos por meio de uma fórmula feita, como a declaração citada, e não é preciso que haja uma figura que professe esses dizeres; os dizeres já estão corporificados na simbologia da tradição oral.


5. Referências
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DOMINGUES, Maria Manuela Abreu Borges. Estratégias femininas entre as bideiras de Bissau. Tese de doutorado. Universidade Nova de Lisboa, 2000. Disponível em http://www.search.ask.com/web?l=dis&o=100000027&qsrc=2873&gct=sb&q=http++publikationen.ub.uni-frankfurt.de%2F...%2FEstrategiasFemininas_Domingues.pdf Acesso em junho de 2013.

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INTUMBO, Incanha. Estudo comparativo da morfossintaxe do crioulo guineense, do balanta e do português.2007. 124p. Dissertação (Mestre em Linguística Descritiva). Universidade de Coimbra. Coimbra. 2007. Disponível em: http://www.uc.pt/creolistics/research/guine/intumbo_2007. Acesso julho de 2013.

MOREIRA, M. M. O casamento na etnia Papel da Guiné-Bissau. In: Fórum sociológico, nº 4, p. 175-80. 1994.

NHANCA, N. 2013. Fonética e Fonologia do Crioulo da Guiné-Bissau. Projeto de Iniciação Científica. Campinas, Unicamp, 2013

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