Origem da linguagem: inanidade da questão
(...)
[não há nenhum momento em que a gênese
difira
caracteristicamente da vida da linguagem
e o essencial é ter compreendido a vida]
(Saussure, in: Boquet e Engler, p. 196, 2002)
Na epígrafe que abre esta reflexão, deparamo-nos com a ideia saussuriana
de que a origem e a vida da linguagem não se diferem.
Nas notas das famosas três conferências, reunidas nos
Escritos de Linguística Geral (Boquet
e Engler, 2002), o genebrino demonstra que as línguas seguem dois princípios
universais: o da continuidade e o da mutabilidade. Estes são ilustrados pela
passagem do que se chama de latim para o que se chama de francês: o francês não
pode ser considerado uma língua diferente do latim, senão que se trata do
próprio latim em outro estágio.
...outra locução figurada que vamos
justiçar (...) é do francês, língua filha
do latim, - ou do latim, língua mãe
das línguas românicas.
Não existem línguas filhas nem línguas mães, não
existe em parte alguma e nem jamais existiram. Há, em cada região do globo, um
estado de língua que se transforma lentamente, de semana em semana, de mês em
mês, de ano em ano e de século em século, (...) mas nunca houve, em parte
alguma, parturição ou procriação de um idioma novo por um idioma anterior, isso
é estranho a tudo o que vemos, assim como a tudo o que podemos nos representar
em ideias, sendo dadas, simplesmente, as condições em que falamos, cada um a
nossa língua materna (p. 134)
Deste modo, o valor heurístico que Saussure dá à origem da linguagem é o
mesmo que o de seu corte sincrônico de análise: sincronia explica diacronia (e
vice-versa), assim como vida explica mutuamente a origem da linguagem. Por ser
a origem da língua e da linguagem um lugar inalcançável, sobre ela sempre
recairão inúmeros mitos (religiosos e pagãos) e especulações (científicas ou
filosóficas).
De modo geral, constituiu-se a ideia de que a origem parece ter guardado
todos os segredos do desenvolvimento das línguas (Labjor, 2001;
Jiquilin-Ramirez, 2012). É nela em que se encontra a chave para os enigmas da
cognição, da comunicação, da linguagem e do pensamento.
Esta pressuposição transforma ingenuamente a origem no lugar imaculado,
puro, estanque, universal, natural, autêntico e essencial. Conforme ainda
argumentarei e ressaltando as ideias de Saussure, a origem é tão proteiforme
quanto à vida dinâmica da linguagem.
Deixemos, por ora, em suspense nosso olhar sobre a origem e reflitamos
sobre a vida da linguagem. É necessário que voltemos nossa reflexão para o
motor que faz funcionar o caráter continuativo e mutável das línguas vivas[1].
Para o pai da Linguística moderna, este motor são os
indivíduos:
A língua nasce, cresce, definha e morre, como todo ser
organizado. Essa frase é absolutamente típica da concepção tão difundida, mesmo
entre os linguistas, que é combatida a exaustão e que levou diretamente a fazer
da linguística uma ciência natural. Não, a
língua não é um organismo, ela não é uma vegetação que existe independentemente do homem, ela não tem uma vida que
implique um nascimento e uma morte. Tudo é falso na frase que eu li: a língua
não é um ser organizado, ela não morre por ela mesma, ela não definha, ela não
cresce, na medida em que não tem uma infância, assim como não tem uma idade
madura ou uma velhice e, por fim, ela não nasce (grifos meus, p. 135).
Por extensão, a coletividade assume o papel fundamental para o princípio
universal de todas as línguas: “A linguagem é um fenômeno: é o exercício de uma
faculdade que existe no homem. A língua é o conjunto de formas concordantes que
esse fenômeno assume numa coletividade de indivíduos e numa época determinada”
(grifos meus, p. 115).
Desta relação homem-língua, Saussure[2]
nos permite uma das primeiras reflexões do papel individual, em contraposição
ao papel coletivo para a mudança e continuidade da língua: a língua afeta o
sujeito, mas o sujeito não consegue afetar a língua, na medida em que, enquanto
solitário, sua força de mutação e continuação linguística é nulo. Em notas:
“... toda espécie de valor, mesmo usando elementos muito diferentes, só se
baseia no meio social e na força social. É a coletividade que cria o valor, o
que significa que ele não existe antes
e fora dela, nem em seus elementos
decompostos e nem nos indivíduos” (p. 250).
O sujeito, já em Saussure,
configura-se numa espécie de meio de campo da língua. Por um lado, ele
constitui um coletivo, mas, por outro, a língua (e a ideologia) o constitui qua indivíduo. E se é o coletivo (seja
em forma de luta de classes, conforme prefere os marxistas) o motor dos princípios
das línguas, qual a sua força qua
sujeito real?
Esta
indagação também parece tê-lo perturbado:
Os fatos linguísticos
podem ser tidos como o resultado de atos de nossa vontade? Tal é, portanto, a
questão. A ciência da linguagem, atual, lhe dá uma resposta afirmativa. Só que
é preciso acrescentar, imediatamente que há muitos graus conhecidos, como
sabemos, na vontade consciente[3] ou
inconsciente: ora, de todos os atos que se poderia pôr em paralelo, o ato
linguístico, se posso chamá-lo assim, tem a característica [de ser] o menos
refletido, o menos premeditado e, ao mesmo tempo, o mais impessoal de todos. Há
uma diferença de grau que, de tão longe que vai, dá, há muito tempo, a ilusão
de ser uma diferença essencial, mas não passa, na realidade, de uma diferença
de graus (p. 132).
Contemporaneamente, Freud
e Durkheim, na visão de Culler (1979), também lançam mão do mesmo problema:
A Sociologia, a
Linguística e a Psicologia psicanalítica só são possíveis quando se tomam os
significados que estão ligados aos objetos e ações na sociedade vista como uma
realidade primária, diferenciando-os, como fatos que devem ser explicados. E
desde que os significados são um produto social, a explicação deve ser levada a
cabo em termos sociais. É como se Saussure, Freud e Durkheim tivessem
perguntado: “o que torna possível a experiência individual? O que habilita os
homens a operar com objetos e ações significativos?” E a resposta que eles
postulam era as instituições sociais, que, embora sejam formadas pelas
atividades humanas, são as condições da experiência. Para compreender a
experiência individual, cumpre estudar as normas sociais que a tornam possível
(p. 61-2).
Mais de meio século
adiante, Pêcheux traz à baila a noção de interdiscurso, formação discursiva,
formação ideológica e formação imaginária[4].
Aparatos de análise que corroboram as ideias seminais de nosso mestre: “esse
sujeito que, por um lado, não é a origem de seu dizer, é assujeitado à
ideologia dominante e é afetado inconscientemente pelos saberes próprios de uma
determinada Formação Discursiva, na qual se inscreve prioritariamente; por
outro lado, é um sujeito responsabilizado juridicamente pelo discurso que
produz” (Silveira, p. 71, 2004).
Chegamos, então, a uma
questão de ovo-galinha, tal qual àquela de vida e origem: se o falante
“hospeda” a língua/ideologia, se a língua/ideologia constitui o falante, como
seria possível vencer esta força coercitiva e proporcionar
mudanças/continuidades? Em outras palavras, como um fato linguístico/ideológico
deixa de ser individual e passa a ser coletivo? Usando termos genebrinos: parole e langue são comensuráveis? Quando a parole atinge a langue?
Passemos, então, a análise
de alguns casos anedóticos em que o falante pretende lutar contra a injunção
linguística. É muito comum em grupos minoritários uma luta empreendida contra a
língua no que diz respeito às injúrias que tais grupos sofrem.
Podemos recorrer ao
exemplo da nomeação das etnias indígenas no Brasil. O nome com que as
comunidades indígenas ficaram amplamente conhecidas, muitas vezes, era lhes
atribuída por uma tribo inimiga ou, o que era mais frequente, pelo homem
branco. Dentre o vasto repertório nacional, quero trazer dois casos, um de
fracasso e outro de êxito, quanto à mudança de nomes.
Os bororo, povo que habita
o estado do Mato Grosso, receberam essa denominação dos colonizadores
portugueses, que num primeiro contato, ao perguntarem aos gentios onde se
localizavam, ouviram como resposta “bororo”, que naquela língua significa
“pátio da aldeia”. Até os dias de hoje, os bororos[5]
são oficialmente chamados assim, muito embora, dentro da própria comunidade
eles se autodenominam “Boe”. Já não é o caso dos Krenak, localizados em Minas
Gerais, que receberam a classificação genérica dos brancos como “aimorés”, nome
também usado para outros grupos, e que depois o tiveram mudado para “botocudos”
(aquele que usa botoques nos lábios e/ou nas orelhas), também comum a outros
povos, e que nos dias de hoje são oficialmente identificados pela sua
autodenominação.
Nestes casos, por que a
vontade do falante, em uma ocasião, prestou para a mudança do nome e em outra
não? Por que em alguns episódios a palavra consegue vencer o nível do indivíduo
(ou de sua comunidade) e consegue se transformar coletivamente?
Vejamos mais alguns
exemplos.
A teoria queer, da qual Butler é uma das
precursoras, surge de uma reapropriação do termo “queer”, como nos descreve
Colling (p. 01, 2001): “Queer pode ser
traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário,
diz Louro (2004, p. 38). A ideia dos teóricos foi a de positivar esta conhecida
forma pejorativa de insultar os homossexuais”. O que o trabalho de Oliveira e
Conceição (p. 09-10, 2009) também descreve:
É no plano da
contestação a (...) heteronormatividade que surgem as contestações queer
(em inglês, pode ser traduzido como estranho, esquisito, mas também como um
insulto dirigido a homossexuais e trans). Este termo que é inicialmente uma
injúria visa interpelar e inferiorizar quem por esse termo é nomeado. A
ressignificação a que (...) foi sujeito implicou uma reapropriação da
historicidade desse termo, citando esse passado injurioso, mas através da
ressignificação, o termo passa a ter uma carga de contestação colectiva.
O movimento negro
estadunidense também provou desta ressignificação injuriosa. O vocábulo negro ganhou uma cunhagem mais neutra
com relação ao racismo, depois do conhecido pronunciamento de Luther King[6] em
1909. E o termo black foi,
posteriormente, reapropriado por Malcolm X: “Le Negro est le Noir
d’avant l’éveil aux droits civiques (Malcolm X, [...]), le black est
le Noir depuis la lutte pour les droits civiques” (Bonnet, 2011).
Mais um exemplo que cabe
mencionar na história da língua[7] é
o aparecimento de duplos lexicais, os chamados doublets. Trata-se de dois itens lexicais, um de origem popular e
outro culta, que têm a mesma etimologia. A forma popular é aquela que se
transformou paulatinamente na história do idioma, de acordo com os princípios
universais de continuidade e mutabilidade descritos por Saussure; a segunda foi
inserida tardiamente na língua e incorporada de maneira muito rápida pelos
falantes. Quanto à semântica desses vocábulos é frequente que eles não tenham o
mesmo significado, existe uma especialização que bifurca os seus sentidos: em
alguns casos, uma das palavras conserva o étimo mais antigo e a outra se
distancia (ex: artigo/artelho), em outros casos, o valor do étimo se divide
(ex: mácula/mancha). Conforme descreve Calvi e Gifre (1997), a forma popular
presta-se para os sentidos mais concretos, enquanto que a culta denota os
sentidos mais abstratos (ex: sigilo/selo, rotundo/redondo). Vale chamar a
atenção para a maneira como o cultismo lexical surge na língua:
Podríamos decir que ha habido unos canales que
favorecen estas integraciones, como la lengua de la administración, con base en
el latín jurídico; o bien la lengua de la enseñanza y de la Iglesia, con base
en el latín eclesiástico; o bien la lengua literaria. En los tres casos se
trata de usos cultos de la lengua, que favorecen o cultivan un respeto al
prestigioso y constante modelo del latín. Importa que el estudiante entienda
que la adopción de cultismos no se detuvo en un momento ya muy alejado de hoy,
sino que la constante necesidad denominadora para los avances técnicos y
científicos es pretexto suficiente para acercarse a los valores y formas
etimológicos (p. 227-8).
Em todos os exemplos
apontados, notamos a intenção individual da mudança lingüística e contextos
políticos bem específicos. Conseguimos prever todos os estágios prévios do qual
deriva a vontade de transformar o léxico[8].
Não há nenhuma criação ex nihilo,
como diria Saussure ao abordar o fenômeno da analogia. Embora não se trate de
analogia, todas as mudanças apontadas partiram de um estado prévio: nomes que
não caracterizam os índios, injúria que ofende categorias de orientação sexual
e identidade de gênero, termos que tentam esvaziar um conteúdo racista e léxico
que surge para cumprir às necessidades das elites.
Na contrapartida,
poderíamos nos lembrar de inúmeros casos de fracasso em que o que é da ordem do
individual não consegue romper a barreira da langue: gírias adolescentes, cacos de novelas, jargões técnicos
etc.
Dessa forma, se a
língua/ideologia determina o sujeito, não é senão a partir da própria
língua/ideologia que surge o desejo pela mudança.
Para tentar entender os
fracassos e os sucessos individuais devemos caminhar pragmaticamente nas noções
de língua e sujeito até então esboçados.
Para Saussure, a linguagem
é heterogênea e a língua é homogênea, portanto passível de análise (CLG, p. 08 e 23). Diante de uma noção de
língua homogênea, como se pode mover a individualidade e a coletividade? A
solução foi atribuir a individualidade a parole
e a coletividade a langue, de modo
que a homogeneidade da língua se mantivesse intocada. É neste sentido, que
Saussure é acusado de ter negligenciado o sujeito, pois, para que a língua
pudesse ser analisada em seu sistema, o que é externo não pôde fazer parte do
escopo de interesse. Assim, a exterioridade e o uso são abstraídos, neste
então.
Rajagopalan (1998) aponta
no decorrer da história da linguística teórica a mesma inquietude de nosso
mestre genebrino, quando este tenta esboçar a noção de “uma língua”. Saussure
não é capaz de delimitar o nascimento e a morte de uma língua no curso de seu
desenvolvimento. Ele fala sobre “uma
língua”, mas sem defini-la, de modo que entende que há “uma língua”, em
diversos estágios, cuja nomeação é arbitrária:
O essencial é
compreender que podemos dar um nome só ao período de vinte e um séculos,
denominando-o latim – ou então dois nomes, denominando-o latim e francês – ou
então três nomes, denominando-o latim, românico e francês – ou então vinte e um
nomes, denominando-o latim do século II antes de Cristo, do século I antes de
Cristo, do século I depois de Cristo, dos séculos II, III, IV, VII, XII, XV,
XIX depois de Cristo. E que não existe, literalmente, nenhum outro modo de
introduzir uma divisão, além dessa maneira totalmente arbitrária e convencional
(p. 143-4).
O indiano afirma que esta
tradição em não poder definir “uma língua” assombra a linguística até os dias
de hoje e sua repercussão foi sentida em todo o estruturalismo. Enquanto Sapir
e Saussure tratam da língua num sentido genérico (langue), para Chomsky ela só existe via gramática universal. O
papel do sujeito, como podemos prever, permaneceria relegado, pois se não
sabemos o que é “uma língua”, o que poderíamos entender por “o falante de uma
língua”? Nas palavras de Rajagopalan:
“... acontece que ‘um falante-ouvinte ideal numa comunidade de fala
completamente homogênea ... [e tudo o mais]...’ (Chomsky, 1965, p. 03) é apenas
isso: ideal. Os homens e mulheres reais que caminham sobre a face da terra
estão muito distantes daquele ideal” (p. 25).
Por se tratar de um
sujeito ideal e uma língua homogênea/ideal, chegamos facilmente à noção de
pureza linguística: o falante nativo, uma espécie de “bom selvagem”, só produz
elocuções autênticas, apenas frases gramaticais.
Neste contexto, para
atender aos critérios de sujeito ideal, o sujeito real não poderá ser nem a
criança, já que ainda não alcançou a maturidade do interdiscurso, não poderão
ser os surdos, pois seu midium
comunicativo se desvia aos das maiorias, não poderá ser um primata inferior,
pois sua comunicação é rudimentar demais, tampouco poderá ser o de um falante
de línguas pidgins ou crioulo, pois são línguas imaturas. Nenhuma gramática
poderá ser produzida advinda de dados destes sujeitos, já que eles não atendem
aos critérios de homogeneidade.
Deste ponto até os dias
atuais, a linguística teórica avançou bastante e o sujeito, como dei indícios
anteriormente, foi retomado e se tornou bastante fundamental para a
constituição de novas áreas da Linguística, como a Análise do Discurso e a
Pragmática.
Depois deste breve
sobrevoo, já é hora de voltarmos à questão da origem. Encontramo-nos com
elementos suficientes para dar continuidade à discussão que deixei em suspense.
Aqui, vida e origem
coincidem. Ao tratar de um sujeito ideal falante de uma língua homogênea,
também somos levados a pensar em sujeitos originários ideias. Da mesma maneira
como esperamos que os falantes vivos sejam sujeitos puros (i.e. aquele que
produz gramáticas autênticas), esperamos que sujeitos originários respondam a única
fonte da linguagem. Acrescentaria a
origem nesta seguinte conclusão de Rajagopalan: “a ideia de autenticidade
acaba se revelando como o único tema comum por trás do ‘bom selvagem’ de
Rousseau, do ‘falante-ouvinte ideal’ de Chomsky, das ‘pessoas reais’ de Yngve,
do ‘usuário ideal da língua’ de Bakhtim e do ‘único fenômeno real’ de Austin. O
que se busca, em todos esses casos, é o verdadeiro nativo na plenitude de sua
autenticidade” (p. 35).
Na origem, o homem é
facilmente associado ao “bom selvagem” e vieses biologicizantes contribuem
ainda mais para defender os desenvolvimentos naturais das línguas e linguagem
humanas. O que vemos estar na contramão da cultura.
Talvez, tendo em conta uma
noção de indivíduo proteiforme e em constante fluxo, para além de sujeitos
reais ou ideias, possamos entender o seu poder nas mudanças e continuidade das
línguas: os indivíduos mudam assim como a língua e a ideologia muda.
Devemos reconhecer, por
fim, que Saussure, brilhantemente esteve preocupado com a força individual dos
falantes, como podemos notar com seu cuidado em não categorizar “uma língua” ou
em pensar na constituição do sujeito pela língua/ideologia, como demonstrei ao
longo desta reflexão. No entanto, a decisão radical de um Saussure em constante
reformulação tornou-se publica no Curso:
uma concepção de língua homogênea. Isto, no entanto, não invalida seu
pensamento genial. Ele reconhece essa utopia pela autenticidade: “quanto mais
se estuda a língua, mais se chega a compreender que tudo na língua é história,
ou seja, que ela é um objeto de análise histórica e não de análise abstrata,
que ela se compõe de fatos e não de leis, que tudo que parece orgânico na linguagem é, na realidade, contingente e completamente acidental”
(p. 131).
Saussure ainda diz: “É a coletividade que cria
o valor, o que significa que ele não existe antes
e fora dela, nem em seus elementos
decompostos e nem nos indivíduos” (já citado). E Rajagopalan ratifica:
A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através
dela. Isso significa que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e
fora da língua. Além disso, a construção da identidade de um indivíduo
na língua e através dela depende do fato de a própria língua em si ser uma
atividade em evolução e vice-versa. Em outras palavras, as identidades da
língua e do indivíduo têm implicações mútuas. Isso por sua vez significa que as
identidades em questão estão sempre num estado de fluxo (grifos meus, p.
41-20).
Posto isso, gostaria de
modificar nossa epígrafe de abertura para: “Individualidade na linguagem:
inanidade da questão. Embora haja muitas forças coercitivas na individualidade
da linguagem não há nenhuma que não passe completamente inerte a coletividade
da linguagem e o essencial é tê-las compreendido mutuamente”.
Ao dar visibilidade ao
sujeito, não devemos afugentar a angústia do falante insatisfeito, como nos
casos anedóticos apontados, sustentando que ele não tem forças para mudar a
língua. Ele pode, é difícil vencer a barreira do coletivo, mas ele pode. Ele
não pode, mesmo sendo constituído pela língua, se assujeitar sempre, quando na
realidade, a língua/ideologia o oprime. Ao invés disso, à guisa de conclusão,
prefiro aconselhá-lo num tom freiriano:
Eu recuso qualquer
posição fatalista diante da história [...]. Eu não aceito, por exemplo,
expressões como 'É uma pena que haja tantos brasileiros e tantas brasileiras
morrendo de fome, mas, afinal, a realidade é essa mesma'. Não! Eu recuso, como
falsa, como ideológica, essa afirmação. Nenhuma realidade 'é assim mesmo': toda
realidade está aí, submetida à possibilidade de nossa intervenção nela”
(FREIRE, 1997, 5'10'').
Referências
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afro-américaine et la construction identitaire. Communication [En ligne], Vol.
28/2 | 2011, mis en ligne le 27 juillet 2011, Consulté le 05 juillet
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VERLI, F. P. da S. Algumas reflexões sobre o sujeito nos estudos da linguagem. In: Línguas e Instrumentos Lingüísticos,
n. 13/14. Campinas, SP: Pontes, 2004, p. 65 – 74.
[1] Vivas no
sentido de que não sofreram a morte violenta, única morte possível para
Saussure. Assim, não consideramos o latim ou o grego, p. ex., como línguas
mortas.
[2] Não acredito que Saussure tenha negligenciado de todo
o sujeito, como reivindicam muitos historiadores das ideias e analistas do
discurso (ver Silveira, 2004.). Como
tento demonstrar, o indivíduo tem seu lugar nos escritos saussurianos. No
entanto, o que difere em Saussure para os seus sucessores é a concepção de
sujeito e seu foco.
[3] Entendemos o termo “consciente”, neste insight, como a vontade ou intenção de
algo. Ainda não exatamente com o sentido proporcionado pos Freud.
[4] Não trataremos destes
conceitos aqui. Para um melhor aprofundamento ver Pêcheux (1988).
[5]
Boe-bororo tem sido usado recentemente também.
[6] I have a
dream (1909)
[7] Das
línguas românicas em específico
[8] Poderia
citar ainda o caso de movimentos transgêneros e não-cisgêneros que já apagam de
sua escrita os morfemas masculinos e femininos.
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