terça-feira, 30 de outubro de 2012

A origem da linguagem e o sujeito


Saussure, Freud e Durkheim invertem (...) a perspectiva que faz da sociedade o resultado do comportamento individual e insistem em que o comportamento é possibilitado por sistemas sociais coletivos que os indivíduos assimilaram, consciente ou inconscientemente (Culler, p. 62, 1979).


Origem da linguagem: inanidade da questão (...)
[não há nenhum momento em que a gênese difira
caracteristicamente da vida da linguagem
e o essencial é ter compreendido a vida]
(Saussure, in: Boquet e Engler, p. 196, 2002)


Na epígrafe que abre esta reflexão, deparamo-nos com a ideia saussuriana de que a origem e a vida da linguagem não se diferem.
Nas notas das famosas três conferências, reunidas nos Escritos de Linguística Geral (Boquet e Engler, 2002), o genebrino demonstra que as línguas seguem dois princípios universais: o da continuidade e o da mutabilidade. Estes são ilustrados pela passagem do que se chama de latim para o que se chama de francês: o francês não pode ser considerado uma língua diferente do latim, senão que se trata do próprio latim em outro estágio.
...outra locução figurada que vamos justiçar (...) é do francês, língua filha do latim, - ou do latim, língua mãe das línguas românicas.
Não existem línguas filhas nem línguas mães, não existe em parte alguma e nem jamais existiram. Há, em cada região do globo, um estado de língua que se transforma lentamente, de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano e de século em século, (...) mas nunca houve, em parte alguma, parturição ou procriação de um idioma novo por um idioma anterior, isso é estranho a tudo o que vemos, assim como a tudo o que podemos nos representar em ideias, sendo dadas, simplesmente, as condições em que falamos, cada um a nossa língua materna (p. 134)
Deste modo, o valor heurístico que Saussure dá à origem da linguagem é o mesmo que o de seu corte sincrônico de análise: sincronia explica diacronia (e vice-versa), assim como vida explica mutuamente a origem da linguagem. Por ser a origem da língua e da linguagem um lugar inalcançável, sobre ela sempre recairão inúmeros mitos (religiosos e pagãos) e especulações (científicas ou filosóficas).
De modo geral, constituiu-se a ideia de que a origem parece ter guardado todos os segredos do desenvolvimento das línguas (Labjor, 2001; Jiquilin-Ramirez, 2012). É nela em que se encontra a chave para os enigmas da cognição, da comunicação, da linguagem e do pensamento.
Esta pressuposição transforma ingenuamente a origem no lugar imaculado, puro, estanque, universal, natural, autêntico e essencial. Conforme ainda argumentarei e ressaltando as ideias de Saussure, a origem é tão proteiforme quanto à vida dinâmica da linguagem.
Deixemos, por ora, em suspense nosso olhar sobre a origem e reflitamos sobre a vida da linguagem. É necessário que voltemos nossa reflexão para o motor que faz funcionar o caráter continuativo e mutável das línguas vivas[1].
Para o pai da Linguística moderna, este motor são os indivíduos:
A língua nasce, cresce, definha e morre, como todo ser organizado. Essa frase é absolutamente típica da concepção tão difundida, mesmo entre os linguistas, que é combatida a exaustão e que levou diretamente a fazer da linguística uma ciência natural. Não, a língua não é um organismo, ela não é uma vegetação que existe independentemente do homem, ela não tem uma vida que implique um nascimento e uma morte. Tudo é falso na frase que eu li: a língua não é um ser organizado, ela não morre por ela mesma, ela não definha, ela não cresce, na medida em que não tem uma infância, assim como não tem uma idade madura ou uma velhice e, por fim, ela não nasce (grifos meus, p. 135).
Por extensão, a coletividade assume o papel fundamental para o princípio universal de todas as línguas: “A linguagem é um fenômeno: é o exercício de uma faculdade que existe no homem. A língua é o conjunto de formas concordantes que esse fenômeno assume numa coletividade de indivíduos e numa época determinada” (grifos meus, p. 115).
Desta relação homem-língua, Saussure[2] nos permite uma das primeiras reflexões do papel individual, em contraposição ao papel coletivo para a mudança e continuidade da língua: a língua afeta o sujeito, mas o sujeito não consegue afetar a língua, na medida em que, enquanto solitário, sua força de mutação e continuação linguística é nulo. Em notas: “... toda espécie de valor, mesmo usando elementos muito diferentes, só se baseia no meio social e na força social. É a coletividade que cria o valor, o que significa que ele não existe antes e fora dela, nem em seus elementos decompostos e nem nos indivíduos” (p. 250).
O sujeito, já em Saussure, configura-se numa espécie de meio de campo da língua. Por um lado, ele constitui um coletivo, mas, por outro, a língua (e a ideologia) o constitui qua indivíduo. E se é o coletivo (seja em forma de luta de classes, conforme prefere os marxistas) o motor dos princípios das línguas, qual a sua força qua sujeito real?
Esta indagação também parece tê-lo perturbado:
Os fatos linguísticos podem ser tidos como o resultado de atos de nossa vontade? Tal é, portanto, a questão. A ciência da linguagem, atual, lhe dá uma resposta afirmativa. Só que é preciso acrescentar, imediatamente que há muitos graus conhecidos, como sabemos, na vontade consciente[3] ou inconsciente: ora, de todos os atos que se poderia pôr em paralelo, o ato linguístico, se posso chamá-lo assim, tem a característica [de ser] o menos refletido, o menos premeditado e, ao mesmo tempo, o mais impessoal de todos. Há uma diferença de grau que, de tão longe que vai, dá, há muito tempo, a ilusão de ser uma diferença essencial, mas não passa, na realidade, de uma diferença de graus (p. 132).
Contemporaneamente, Freud e Durkheim, na visão de Culler (1979), também lançam mão do mesmo problema:
A Sociologia, a Linguística e a Psicologia psicanalítica só são possíveis quando se tomam os significados que estão ligados aos objetos e ações na sociedade vista como uma realidade primária, diferenciando-os, como fatos que devem ser explicados. E desde que os significados são um produto social, a explicação deve ser levada a cabo em termos sociais. É como se Saussure, Freud e Durkheim tivessem perguntado: “o que torna possível a experiência individual? O que habilita os homens a operar com objetos e ações significativos?” E a resposta que eles postulam era as instituições sociais, que, embora sejam formadas pelas atividades humanas, são as condições da experiência. Para compreender a experiência individual, cumpre estudar as normas sociais que a tornam possível (p. 61-2).
Mais de meio século adiante, Pêcheux traz à baila a noção de interdiscurso, formação discursiva, formação ideológica e formação imaginária[4]. Aparatos de análise que corroboram as ideias seminais de nosso mestre: “esse sujeito que, por um lado, não é a origem de seu dizer, é assujeitado à ideologia dominante e é afetado inconscientemente pelos saberes próprios de uma determinada Formação Discursiva, na qual se inscreve prioritariamente; por outro lado, é um sujeito responsabilizado juridicamente pelo discurso que produz” (Silveira, p. 71, 2004).
Chegamos, então, a uma questão de ovo-galinha, tal qual àquela de vida e origem: se o falante “hospeda” a língua/ideologia, se a língua/ideologia constitui o falante, como seria possível vencer esta força coercitiva e proporcionar mudanças/continuidades? Em outras palavras, como um fato linguístico/ideológico deixa de ser individual e passa a ser coletivo? Usando termos genebrinos: parole e langue são comensuráveis? Quando a parole atinge a langue?
Passemos, então, a análise de alguns casos anedóticos em que o falante pretende lutar contra a injunção linguística. É muito comum em grupos minoritários uma luta empreendida contra a língua no que diz respeito às injúrias que tais grupos sofrem.
Podemos recorrer ao exemplo da nomeação das etnias indígenas no Brasil. O nome com que as comunidades indígenas ficaram amplamente conhecidas, muitas vezes, era lhes atribuída por uma tribo inimiga ou, o que era mais frequente, pelo homem branco. Dentre o vasto repertório nacional, quero trazer dois casos, um de fracasso e outro de êxito, quanto à mudança de nomes.
Os bororo, povo que habita o estado do Mato Grosso, receberam essa denominação dos colonizadores portugueses, que num primeiro contato, ao perguntarem aos gentios onde se localizavam, ouviram como resposta “bororo”, que naquela língua significa “pátio da aldeia”. Até os dias de hoje, os bororos[5] são oficialmente chamados assim, muito embora, dentro da própria comunidade eles se autodenominam “Boe”. Já não é o caso dos Krenak, localizados em Minas Gerais, que receberam a classificação genérica dos brancos como “aimorés”, nome também usado para outros grupos, e que depois o tiveram mudado para “botocudos” (aquele que usa botoques nos lábios e/ou nas orelhas), também comum a outros povos, e que nos dias de hoje são oficialmente identificados pela sua autodenominação.
Nestes casos, por que a vontade do falante, em uma ocasião, prestou para a mudança do nome e em outra não? Por que em alguns episódios a palavra consegue vencer o nível do indivíduo (ou de sua comunidade) e consegue se transformar coletivamente?
Vejamos mais alguns exemplos.
A teoria queer, da qual Butler é uma das precursoras, surge de uma reapropriação do termo “queer”, como nos descreve Colling (p. 01, 2001): “Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário, diz Louro (2004, p. 38). A ideia dos teóricos foi a de positivar esta conhecida forma pejorativa de insultar os homossexuais”. O que o trabalho de Oliveira e Conceição (p. 09-10, 2009) também descreve:
É no plano da contestação a (...) heteronormatividade que surgem as contestações queer (em inglês, pode ser traduzido como estranho, esquisito, mas também como um insulto dirigido a homossexuais e trans). Este termo que é inicialmente uma injúria visa interpelar e inferiorizar quem por esse termo é nomeado. A ressignificação a que (...) foi sujeito implicou uma reapropriação da historicidade desse termo, citando esse passado injurioso, mas através da ressignificação, o termo passa a ter uma carga de contestação colectiva.
O movimento negro estadunidense também provou desta ressignificação injuriosa. O vocábulo negro ganhou uma cunhagem mais neutra com relação ao racismo, depois do conhecido pronunciamento de Luther King[6] em 1909. E o termo black foi, posteriormente, reapropriado por Malcolm X: “Le Negro est le Noir d’avant l’éveil aux droits civiques (Malcolm X, [...]), le black est le Noir depuis la lutte pour les droits civiques” (Bonnet, 2011).
Mais um exemplo que cabe mencionar na história da língua[7] é o aparecimento de duplos lexicais, os chamados doublets. Trata-se de dois itens lexicais, um de origem popular e outro culta, que têm a mesma etimologia. A forma popular é aquela que se transformou paulatinamente na história do idioma, de acordo com os princípios universais de continuidade e mutabilidade descritos por Saussure; a segunda foi inserida tardiamente na língua e incorporada de maneira muito rápida pelos falantes. Quanto à semântica desses vocábulos é frequente que eles não tenham o mesmo significado, existe uma especialização que bifurca os seus sentidos: em alguns casos, uma das palavras conserva o étimo mais antigo e a outra se distancia (ex: artigo/artelho), em outros casos, o valor do étimo se divide (ex: mácula/mancha). Conforme descreve Calvi e Gifre (1997), a forma popular presta-se para os sentidos mais concretos, enquanto que a culta denota os sentidos mais abstratos (ex: sigilo/selo, rotundo/redondo). Vale chamar a atenção para a maneira como o cultismo lexical surge na língua:
Podríamos decir que ha habido unos canales que favorecen estas integraciones, como la lengua de la administración, con base en el latín jurídico; o bien la lengua de la enseñanza y de la Iglesia, con base en el latín eclesiástico; o bien la lengua literaria. En los tres casos se trata de usos cultos de la lengua, que favorecen o cultivan un respeto al prestigioso y constante modelo del latín. Importa que el estudiante entienda que la adopción de cultismos no se detuvo en un momento ya muy alejado de hoy, sino que la constante necesidad denominadora para los avances técnicos y científicos es pretexto suficiente para acercarse a los valores y formas etimológicos (p. 227-8).
Em todos os exemplos apontados, notamos a intenção individual da mudança lingüística e contextos políticos bem específicos. Conseguimos prever todos os estágios prévios do qual deriva a vontade de transformar o léxico[8]. Não há nenhuma criação ex nihilo, como diria Saussure ao abordar o fenômeno da analogia. Embora não se trate de analogia, todas as mudanças apontadas partiram de um estado prévio: nomes que não caracterizam os índios, injúria que ofende categorias de orientação sexual e identidade de gênero, termos que tentam esvaziar um conteúdo racista e léxico que surge para cumprir às necessidades das elites.
Na contrapartida, poderíamos nos lembrar de inúmeros casos de fracasso em que o que é da ordem do individual não consegue romper a barreira da langue: gírias adolescentes, cacos de novelas, jargões técnicos etc.
Dessa forma, se a língua/ideologia determina o sujeito, não é senão a partir da própria língua/ideologia que surge o desejo pela mudança.
Para tentar entender os fracassos e os sucessos individuais devemos caminhar pragmaticamente nas noções de língua e sujeito até então esboçados.
Para Saussure, a linguagem é heterogênea e a língua é homogênea, portanto passível de análise (CLG, p. 08 e 23). Diante de uma noção de língua homogênea, como se pode mover a individualidade e a coletividade? A solução foi atribuir a individualidade a parole e a coletividade a langue, de modo que a homogeneidade da língua se mantivesse intocada. É neste sentido, que Saussure é acusado de ter negligenciado o sujeito, pois, para que a língua pudesse ser analisada em seu sistema, o que é externo não pôde fazer parte do escopo de interesse. Assim, a exterioridade e o uso são abstraídos, neste então.
Rajagopalan (1998) aponta no decorrer da história da linguística teórica a mesma inquietude de nosso mestre genebrino, quando este tenta esboçar a noção de “uma língua”. Saussure não é capaz de delimitar o nascimento e a morte de uma língua no curso de seu desenvolvimento.  Ele fala sobre “uma língua”, mas sem defini-la, de modo que entende que há “uma língua”, em diversos estágios, cuja nomeação é arbitrária:
O essencial é compreender que podemos dar um nome só ao período de vinte e um séculos, denominando-o latim – ou então dois nomes, denominando-o latim e francês – ou então três nomes, denominando-o latim, românico e francês – ou então vinte e um nomes, denominando-o latim do século II antes de Cristo, do século I antes de Cristo, do século I depois de Cristo, dos séculos II, III, IV, VII, XII, XV, XIX depois de Cristo. E que não existe, literalmente, nenhum outro modo de introduzir uma divisão, além dessa maneira totalmente arbitrária e convencional (p. 143-4).
O indiano afirma que esta tradição em não poder definir “uma língua” assombra a linguística até os dias de hoje e sua repercussão foi sentida em todo o estruturalismo. Enquanto Sapir e Saussure tratam da língua num sentido genérico (langue), para Chomsky ela só existe via gramática universal. O papel do sujeito, como podemos prever, permaneceria relegado, pois se não sabemos o que é “uma língua”, o que poderíamos entender por “o falante de uma língua”?  Nas palavras de Rajagopalan: “... acontece que ‘um falante-ouvinte ideal numa comunidade de fala completamente homogênea ... [e tudo o mais]...’ (Chomsky, 1965, p. 03) é apenas isso: ideal. Os homens e mulheres reais que caminham sobre a face da terra estão muito distantes daquele ideal” (p. 25).
Por se tratar de um sujeito ideal e uma língua homogênea/ideal, chegamos facilmente à noção de pureza linguística: o falante nativo, uma espécie de “bom selvagem”, só produz elocuções autênticas, apenas frases gramaticais.
Neste contexto, para atender aos critérios de sujeito ideal, o sujeito real não poderá ser nem a criança, já que ainda não alcançou a maturidade do interdiscurso, não poderão ser os surdos, pois seu midium comunicativo se desvia aos das maiorias, não poderá ser um primata inferior, pois sua comunicação é rudimentar demais, tampouco poderá ser o de um falante de línguas pidgins ou crioulo, pois são línguas imaturas. Nenhuma gramática poderá ser produzida advinda de dados destes sujeitos, já que eles não atendem aos critérios de homogeneidade.
Deste ponto até os dias atuais, a linguística teórica avançou bastante e o sujeito, como dei indícios anteriormente, foi retomado e se tornou bastante fundamental para a constituição de novas áreas da Linguística, como a Análise do Discurso e a Pragmática.
Depois deste breve sobrevoo, já é hora de voltarmos à questão da origem. Encontramo-nos com elementos suficientes para dar continuidade à discussão que deixei em suspense.
Aqui, vida e origem coincidem. Ao tratar de um sujeito ideal falante de uma língua homogênea, também somos levados a pensar em sujeitos originários ideias. Da mesma maneira como esperamos que os falantes vivos sejam sujeitos puros (i.e. aquele que produz gramáticas autênticas), esperamos que sujeitos originários respondam a única fonte da linguagem. Acrescentaria a origem nesta seguinte conclusão de Rajagopalan: “a ideia de autenticidade acaba se revelando como o único tema comum por trás do ‘bom selvagem’ de Rousseau, do ‘falante-ouvinte ideal’ de Chomsky, das ‘pessoas reais’ de Yngve, do ‘usuário ideal da língua’ de Bakhtim e do ‘único fenômeno real’ de Austin. O que se busca, em todos esses casos, é o verdadeiro nativo na plenitude de sua autenticidade” (p. 35).
Na origem, o homem é facilmente associado ao “bom selvagem” e vieses biologicizantes contribuem ainda mais para defender os desenvolvimentos naturais das línguas e linguagem humanas. O que vemos estar na contramão da cultura.
Talvez, tendo em conta uma noção de indivíduo proteiforme e em constante fluxo, para além de sujeitos reais ou ideias, possamos entender o seu poder nas mudanças e continuidade das línguas: os indivíduos mudam assim como a língua e a ideologia muda.
Devemos reconhecer, por fim, que Saussure, brilhantemente esteve preocupado com a força individual dos falantes, como podemos notar com seu cuidado em não categorizar “uma língua” ou em pensar na constituição do sujeito pela língua/ideologia, como demonstrei ao longo desta reflexão. No entanto, a decisão radical de um Saussure em constante reformulação tornou-se publica no Curso: uma concepção de língua homogênea. Isto, no entanto, não invalida seu pensamento genial. Ele reconhece essa utopia pela autenticidade: “quanto mais se estuda a língua, mais se chega a compreender que tudo na língua é história, ou seja, que ela é um objeto de análise histórica e não de análise abstrata, que ela se compõe de fatos e não de leis, que tudo que parece orgânico na linguagem é, na realidade, contingente e completamente acidental” (p. 131).
 Saussure ainda diz: “É a coletividade que cria o valor, o que significa que ele não existe antes e fora dela, nem em seus elementos decompostos e nem nos indivíduos” (já citado). E Rajagopalan ratifica:
       A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela. Isso significa que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora da língua. Além disso, a construção da identidade de um indivíduo na língua e através dela depende do fato de a própria língua em si ser uma atividade em evolução e vice-versa. Em outras palavras, as identidades da língua e do indivíduo têm implicações mútuas. Isso por sua vez significa que as identidades em questão estão sempre num estado de fluxo (grifos meus, p. 41-20).

Posto isso, gostaria de modificar nossa epígrafe de abertura para: “Individualidade na linguagem: inanidade da questão. Embora haja muitas forças coercitivas na individualidade da linguagem não há nenhuma que não passe completamente inerte a coletividade da linguagem e o essencial é tê-las compreendido mutuamente”.
Ao dar visibilidade ao sujeito, não devemos afugentar a angústia do falante insatisfeito, como nos casos anedóticos apontados, sustentando que ele não tem forças para mudar a língua. Ele pode, é difícil vencer a barreira do coletivo, mas ele pode. Ele não pode, mesmo sendo constituído pela língua, se assujeitar sempre, quando na realidade, a língua/ideologia o oprime. Ao invés disso, à guisa de conclusão, prefiro aconselhá-lo num tom freiriano:
Eu recuso qualquer posição fatalista diante da história [...]. Eu não aceito, por exemplo, expressões como 'É uma pena que haja tantos brasileiros e tantas brasileiras morrendo de fome, mas, afinal, a realidade é essa mesma'. Não! Eu recuso, como falsa, como ideológica, essa afirmação. Nenhuma realidade 'é assim mesmo': toda realidade está aí, submetida à possibilidade de nossa intervenção nela” (FREIRE, 1997, 5'10'').

Referências
BONNET. “Don’t call me Nigger, Whitey” L’autodésignation de la communauté afro-américaine et la construction identitaire. Communication [En ligne], Vol. 28/2 | 2011, mis en ligne le 27 juillet 2011, Consulté le 05 juillet 2012. URL : http://communication.revues.org/index1803.html

CALVI e MARINELL GIFRE. Los dobletes léxicos em la enseñaza del español a extranjeros. VIII COngreso Internacional de ASELE. Acalá de Henares, 17-29 set, 1997. La enseñaza del español como lengua extranjera: del passado al futuro. Ed. De F. Moreno et al. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1998. 227-239

COLLING. Teoria queer. (2001). Disponível em : www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf  

CULLER. As ideias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979

FREIRE, Paulo. Paulo Freire: última entrevista. São Paulo: TV PUC de São Paulo. Disponível em http://www.paulofreire.ce.ufpb.br/paulofreire/Controle?op=detalhe&tipo=Video&id=622, 1997.

JIQUILIN-RAMIREZ. O que nos revela o povo hadza: o desejo do linguista. 2012. Disponível em: http://oquevcfazcomasualingua.blogspot.com.br/2012/04/o-que-nos-revela-o-povo-hadza-o-desejo.html

LABJOR. A origem e o destino das línguas. 2001. Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling08.htm

OLIVEIRA and  NOGUEIRA. Introdução: Um lugar feminista queer e o prazer da confusão e fronteiras. Ex aequo [online]. 2009, n.20 [cited  2012-07-05], pp. 9-12 . Available from: <http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602009000200002&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0874-5560.

PÊCHEUX. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.

RAJAGOPALAN. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora de uma reconsideração radical? In: SIGNORINI, Inês (org.). Lingua(gem) e Identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998. p. 21-46.

SAUSSURE. Curso de Lingüística Geral. 23ª ed. BALLY, C.; SECHEYAHE, A. (orgs.) Trad. A. Chelini, J. P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2001 [1916].

______.  Escritos de Lingüística Geral. BOUQUET, S.; ENGLER, R. (orgs.). São Paulo: Cultrix, 2004.

VERLI, F. P. da S. Algumas reflexões sobre o sujeito nos estudos da linguagem. In: Línguas e Instrumentos Lingüísticos, n. 13/14. Campinas, SP: Pontes, 2004, p. 65 – 74.




[1] Vivas no sentido de que não sofreram a morte violenta, única morte possível para Saussure. Assim, não consideramos o latim ou o grego, p. ex., como línguas mortas.
[2] Não acredito que Saussure tenha negligenciado de todo o sujeito, como reivindicam muitos historiadores das ideias e analistas do discurso (ver Silveira, 2004.). Como tento demonstrar, o indivíduo tem seu lugar nos escritos saussurianos. No entanto, o que difere em Saussure para os seus sucessores é a concepção de sujeito e seu foco.
[3] Entendemos o termo “consciente”, neste insight, como a vontade ou intenção de algo. Ainda não exatamente com o sentido proporcionado pos Freud.
[4] Não trataremos destes conceitos aqui. Para um melhor aprofundamento ver Pêcheux (1988).
[5] Boe-bororo tem sido usado recentemente também.
[6] I have a dream (1909)
[7] Das línguas românicas em específico
[8] Poderia citar ainda o caso de movimentos transgêneros e não-cisgêneros que já apagam de sua escrita os morfemas masculinos e femininos. 

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