Logo quando comecei a estudar formalmente língua espanhola e a ter um
contato maior com os registros linguísticos mais afeitos à educação, ouvi um
verbo num determinado uso que me chamou muito a atenção. Façamos uma reflexão
prévia para que em breve possamos voltar ao exemplo.
Sabemos que português e espanhol, dado seu parentesco, têm uma quantidade
incrível de cognatos. Trata-se de palavras cujos significantes são praticamente
idênticos. Embora as palavras se mantenham conservadas nas formas escritas, ainda
assim variam bastante em pronúncias.
Já que o significante é a parte tangível de uma língua, os falantes
tendem a perceber mudanças e nuanças com mais facilidade quando elas acontecem
neste nível.
Contudo, quando deixamos um pouco o significante de lado e focamos no
vocábulo como um todo, isto é, quando consideramos também significado e usos,
notamos que as semelhanças entre português e espanhol diminuem consideravelmente.
Quanto ao sentido: há casos em que, embora etimologicamente oriundo de
uma mesma raiz (ou seja: mesmo tratando-se de significantes semelhantes),
algumas palavras desenvolveram sentidos cruzados em uma língua e outra, são
exemplos: apelido-apellido/sobrenome-sobrenombre; classe-clase/aula-aula, entre
outros.
Outro caso que engloba o sentido, e que é o preferido do público, são
os falsos cognatos, como ratón/rato, salgo (de salir)/salgo (de salgar),
carpeta/carpete, busetero/buceta, etc. Aqui, como acolá, o que causa confusão e
graça é a importância que mais uma vez se dá ao significante, ainda que cada
uma das palavras pertencentes aos pares não tenha a mesma origem etimológica.
Os significados atribuídos aos significantes parecidos não se assemelham.
Em outras ocasiões, o vocábulo guarda matizes semânticos diferentes,
percebidos no uso, para cada um dos idiomas. Exemplo: uma vez meu irmão
brasileiro, luso-falante, fez uma reclamação ao meu pai sobre meu irmão mais
novo, ambos falantes do espanhol paraguaio. Em português, o brasileiro disse: -
Pai, o casula foi muito mimado. Notei que brasileiro e paraguaio, filho e pai,
haviam se entendido em partes. É que o sentido luso, no português brasileiro, e
o sentido hispano, no espanhol paraguaio, de “mimar” guardam uma dessemelhança
tênue. Enquanto em português “mimar” pode ter o significado de “adular alguém
excessivamente a ponto de deixá-lo mal acostumado”, em espanhol paraguaio
“mimar” significa apenas “fazer muito carinho”. Enquanto meu irmão brasileiro
queria dizer que o casula apresentava um mau comportamento devido à má criação
do pai; meu pai, todo orgulhoso, estava entendendo aquilo como um elogio, já
que ele se percebia como um pai excessivamente carinhoso. Exemplos desse tipo
existem em abundância nos léxicos das línguas: quedar, enamorar, etc.
Nestes casos, os significantes são praticamente os mesmos e o que muda
é uma parte dos significados.
O exemplo que gostaria de discutir hoje, o qual deixei em suspense
logo no início deste texto, tem a ver com estes matizes semânticos que são bem percebidos
quando as línguas estão em contato. Nos discursos de cada língua, o conteúdo
semântico que se difere é bem sutil.
A locução que ouvi, de um professor, no espanhol da Espanha (e depois
também ouvi em países latino-americanos) é:
Voy a dictar clases
A primeira vista, o falante de português ficaria horrorizado diante
uma tradução capenga do tipo “palavra por palavra” de uma sentença pronunciada
por um professor: Vou ditar aulas.
Seria estranho que um professor ditasse
suas aulas. Seria como se ele estivesse admitindo seu autoritarismo e fizesse
da sua sala de aula uma ditadura.
Aqui há dois problemas, o primeiro e o mais óbvio é que a tradução,
focada no significante, é, em parte, equivocada; e o segundo é que nem sempre fica
tão claro os caminhos que as palavras percorrem para chegarem em seus usos
atuais (ver em português interjeições como “ave”, “nossa”, ou verbos como
“judiar”, que não remetem, maioria das vezes, a “ave maria”, “Nossa Sra.” ou a
“judeus”). Quando o luso-falante faz um julgamento de valor do
professor hispano-falante, ele nada mais está revelando sua inabilidade em
tentar ver o mundo com olhos diferentes dos que está habituado.
Junto com o espanhol, o italiano é outro idioma em que aparece “ditar”
com o sentido de ensinar. Isso nos mostra que no passado da língua, “ditar” era
amplamente usado como sinônimo de “lecionar”. Sem querer fazer uma inspeção mais
profunda, posso afirmar que até mesmo os mais leigos perceberão os resquícios
desse sentido na língua atual: “ditado, dicção, dita, etc”.
É interessante destacar que, se por um lado, é etnocêntrico avaliar o
espanhol pelo julgo do português, por outro, é anacrônico, analisar os usos
atuais estritamente pelo uso passado. Os sentidos que ditar tomou em português
lhe permitiu uma associação maior com “ditadura” do que com “ditado”. Basta
entender que espanhol e italiano percorreram outro caminho diverso ao da última
flor do Lácio, pelo menos na variedade brasileira.
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