segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Vestibular: essa conversa é com você

Olá, queridos leitores.
No post de hoje vou falar de um assunto bem específico, vestibular(es). Embora pareça que há pouca coisa a ver com língua e linguagem, vocês logo notarão que é através da língua que a ideologia da exclusão dos vestibulares estará materializada. É nas questões do exame, em sua forma escrita, que ela se concretiza.
O título é uma alusão a um vídeo do movimento negro que discute sobre cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas e que se intitula "Essa conversa não é com você".
O texto de hoje é uma conversa sobre você que não vive uma realidade de exclusão social. É destinado principalmente para aqueles que fazem cursinho e aos que não passam nos vestibulares.
Com vocês:

***

ARCA QUE SÓ LEVA POMBAS

Imagine você que o mundo vai acabar. Não, melhor ainda: imagine que o mundo será devastado em um dilúvio e você é o novo Noé. Só que desta vez, você vai ter que selecionar humanos para compor o novo mundo. Você deverá escolher cada representante deste vasto rincão de modo a preservar o máximo das pluralidades.
O primeiro problema com o qual, seguramente, você vai se deparar é: o que é pluralidade? E logo perguntará: que tipo de pluralidade devo preservar? A pluralidade cultural, genética, social, de idéias, etc?
Em sua barca não caberá todo mundo. Você vai ter de escolher. Quem escolherá? Os melhores? Quem são os melhores? A grande maioria permanecerá em terra e muito brevemente os que ficaram morrerão.
Não muito adiante você vai perceber que seu critério de escolha, por mais objetivo que seja, será ideológico.
Agora, já podemos deixar de fabular, pois esta realidade está muito próxima dos brasileiros que todos os anos prestam os vestibulares para o ingresso numa universidade pública. Vestibular é o rito de passagem para a arca. Vestíbulo é a íngreme rampa que só permite a passagem de poucos. Mas a idéia de pluralidade ainda está longe de ser perpetrada.
Os vestibulares têm por objetivo, sim, selecionar os melhores. Mas, na realidade, não têm por objetivo selecionar um espectro diverso de pessoas. Ele também é um instrumento de massificação de pensamento. Além disso, quais os critérios de “melhor humano para a universidade” estão em jogo? Quem estabelece esses critérios?
Em primeiro lugar, o vestibular já exclui de cara qualquer um que não esteja na (ou acima da) classe-média. Para os que estão abaixo, se quiserem passar, terão de ter sido criados com a ideologia e prática da pequena burguesia.
Assim, os miseráveis, para os quais a educação não é um direito, estão bem distantes de uma universidade. Muitos sequer saberão sobre as universidades e pensarão que a Unicamp, por exemplo, é apenas um Hospital de Clínicas (HC). São essas pessoas que provam que a felicidade não está só em curso universitário. Para eles, a metáfora de entrada é descabida, já que o vestibular não lhes representaria o fim do mundo.
Aos que duvidam que o vestibular lima esta classe, sugiro que dêem uma olhada na prova de redação da edição de 2012 do vestibular da Unicamp. Lá, em uma das tarefas, é pedido ao candidato que escreva um verbete sobre “computação em nuvens”. Não se trata de um conhecimento muito distante da classe dos que têm fome?
Deixemo-los de lado. Não falo em nome destas pessoas. Falo em nome de você que está em condições sócio-econômicas um pouco melhores. Falo em nome de você que tem condições de pagar uma taxa de inscrição no valor de R$100,00 para concorrer a uma vaga na Unicamp (ou a você que ao menos tem acesso aos formulários de pedido de isenção, um direito que - Ah, claro – lhe poderá ser concedido se tiver nascido no estado de São Paulo).
Falo para você que pode se dedicar um ano inteiro de estudos num cursinho. Falo para você que também não pode, mas arranja um tempo, entre o trabalho e os cadernos, para estudar para o vestibular. Falo para você que mesmo não podendo nada disso, estuda num cursinho popular ou só estuda em casa solitariamente. Falo para muitos de vocês que já fracassaram em vestibulares anteriores e sentiram na pele a dor de não ter sido um dos eleitos.
Vestibular é uma guerra, é uma guerra horrível que consome tempo, juventude, dinheiro, destrói sonhos. Vestibular gera uma indústria de cursinhos carniceiros, que vêem no fracasso alheio uma oportunidade de ganhar dinheiro. Vestibular é um desserviço a educação emancipadora, democrática e formadora. Enfim, como o objetivo aqui não é falar do vestibular, contentem-se com isso: vestibular é uma guerra.
Por isso, é preciso tática e treino. Não adianta ficar o ano inteiro debulhando os mínimos detalhes de todas as matérias apenas. Faça uma pesquisa e levante uma estatística dos temas mais prováveis. Estude o vestibular e note qual é a retórica de cada um deles.
Por se tratar de uma guerra e de estratégia, mais uma vez o fator econômico é quem manda. Quem tem mais grana, quem não precisa trabalhar, quem não tem filhos para sustentar terá mais tempo para se dedicar a este irônico esforço.
Posto isso, passemos ao tópico “os critérios de seleção são ideológicos”.
Muitas pessoas pensam que o vestibular, de fato, mede inteligência. Mas, não. Ele mais deixa à mostra a ideologia da universidade (e a de quem o preparou) do que mede algo relacionado com inteligência. Ou você pensa que é um burro se não souber responder um pequeno detalhe da história ou não se lembrar de uma fórmula da Física?
Afinal, qual é a ideologia do vestibular? Ao tentar recrutar “os melhores”, a ideologia de uma seleção que se pretende justa gira em torno daquilo que seus preparadores acreditam ser “o melhor” perfil de aluno para a universidade. Eis o que a ABC (associação brasileira de cientistas) e a SBPC (sociedade brasileirapara o progresso da ciência) não me deixa mentir, para os cientistas do Brasil as universidades tem de ter autonomia para escolher o perfil de aluno que se deseja. E, obviamente, estes alunos não têm o perfil de pretos, pardos, índios e pobres.  
Além de tudo isso, a correção dos exames tem de ser prática e conseguir eliminar o máximo de candidatos, afinal são muitos para poucas vagas. Portanto, a ideologia do vestibular é baseada na exclusão. Assim, se você pestanejar, vai dançar.
Isso pode ser ilustrado através da redação do vestibular da Unicamp.
Todos sabemos (e se não sabemos, por que não sabemos?) que as redações são avaliadas em duas grades: uma específica e outra holística. Falemos, por ora, da grade específica. Ela avalia (avalia??) três pontos: a proposta, a interlocução e o gênero. A escala adotada aqui é a de tudo ou nada. Ou o candidato atende ao quesito ou não. A pergunta que cabe é: como avaliar quesitos tão sutis numa escala de tudo ou nada?
Uma das redações exigia o gênero resumo. Vejamos as instruções:   
 
Imagine-se como um estudante de ensino médio de uma escola que organizará um painel sobre características psicológicas e suas implicações no plano individual e na vida em sociedade. Nesse painel, destinado à comunidade escolar, cada texto reproduzido será antecedido por um resumo. Você ficou responsável por elaborar o resumo que apresentará a matéria transcrita abaixo, extraída de uma revista de divulgação científica. Nesse resumo você deverá:
·         apresentar o ponto de vista expresso no texto, a respeito da importância do pessimismo em oposição ao otimismo, relacionando esse ponto de vista aos argumentos centrais que o sustentam.
Atenção: uma vez que a matéria será reproduzida integralmente, seu texto deve ser construído sem copiar enunciados da matéria.



A correção levou em conta os seguintes critérios para:

         1)      Proposta: os corretores tinham de perceber se o candidato havia conseguido apresentar o ponto de vista do texto a ser resumido e deveria apresentar até dois argumentos do texto.
      2)  Interlocução: como gênero “resumo” não tem marcas de interlocução, o candidato não poderia apresentar as marcar formais de interlocução.
        3)    Gênero: uma vez que o aluno apresentasse marcas formais de interlocução, a nota em gênero seria zero.
Note que nenhum desses avisos sobre os critérios de correção são dados claramente no enunciado.
Quanto à proposta, o enunciado pede que o ponto de vista se relacione com os argumentos do texto, mas não deixa claro quantos desses argumentos são necessários, embora na correção, se o candidato apresentasse apenas um argumento ele levaria a nota zero em proposta. Quanto à interlocução, as pistas dadas pelo enunciado são a de que quem escreve é um aluno de ensino médio para a comunidade escolar. No entanto, nenhuma marca de interlocução poderia aparecer. O enunciado é confuso, pois dá pistas de que se deve marcar a interlocução, embora o aluno saiba que em um resumo a subjetividade não se manifesta tão explicitamente. E o enunciado ainda diz que se trata de um texto que vai apresentar outro e ele será fixado num painel, ou seja, dá margens para que o “eu” e o “você” apareçam.
No que diz respeito ao quesito gênero, a nota aqui estava completamente atrelada à nota em interlocução: um zero lá implicaria num outro zero aqui. Outra possibilidade de zerar em gênero é não fazendo um resumo. Você não acha estranho esses critérios, pois como se mede os limites entre um resumo e uma resenha, ou os limites entre resumo e uma paráfrase, ou entre resumo e uma síntese????
Isso tudo mostra que a grade específica é muito falha e não deveria avaliar os candidatos numa escala de tudo ou nada.
Se o candidato trouxesse o ponto de vista do texto relacionado a apenas um argumento, será que já não estaria cumprindo minimamente com a proposta? E se o candidato usasse uma marca formal de segunda pessoa de sentido genérico (ex: se você não acreditar no otimismo,.... – que pode ser sinônimo de: se se não acreditar no otimismo,...) seria ele digno de um zero em interlocução e gênero? E se o candidato começasse o texto de forma apresentativa e dialógica (ex: Olá, queridos colegas estudantes, o objetivo desta publicação é apresentar a vocês uma idéia muito interessante que saiu na revista tal. Com vocês o meu resumo) também estaria cometendo um deslize que lhe merecesse dois zeros (interlocução e gênero)? E se ainda o candidato fizesse uma resenha em terceira pessoa, isto seria considerado um resumo? Se ele trouxesse dois argumentos do texto e um argumento próprio, isso descaracterizaria o gênero resumo? E se ele apenas sintetizasse as idéias minimamente? E se ele parafraseasse tudo em questão? Por que a nota em gênero não se atrelou também a nota em proposta???
Essa problemática causa um incômodo aos corretores (que por incrível que pareça também são seres humanos subjetivos que falham), pois eles se transformam em grandes caçadores de palavras chaves. Trata-se de uma avaliação que pune ou premia o candidato que consegue explicitar (ou ocultar) determinadas palavras. A correção dessa forma, embora haja dupla correção cega, se torna exaustiva, pois ao final do dia, o corretor estará mais afiado para buscar “seus, suas, meus, minhas, senhores e senhoras” do que qualquer outra qualidade. A correção deveria ser ainda melhorada. Mais corretores deveriam ser contratados e cada um deles deveria corrigir uma quantidade muito menor de textos por dia. Apesar de que para corrigir os textos do vestibular da Unicamp seja necessário alguns cursos e um período de um mês de treinamento, além de ser necessário ter formação na área de linguagem (Letras, Linguística ou Estudos Literários), no meu ponto de vista, qualquer um que tenha recebido este treinamento tem capacidade para corrigir o vestibular (ou o Enem ou o Saresp). Para mim, um pedagogo ou um cientista social também teriam gabarito para compor a banca de correção. Afinal, já que os critérios da grade específica são tão peculiares, até uma máquina programada daria conta de “analisar” estes dados.  
Uma vez que estamos falando de qualidade, ainda existe uma segunda grade, a holística. É através dela que os corretores avaliam a qualidade dos textos. Seria a parte mais subjetiva da correção e sua escala agora se amplia para 5 pontos. Embora no treinamento seja estabelecida cada zona de nota, o corretor cansado e já experiente com todos os tipos de texto terá a sua própria maneira de avaliar a qualidade.
Como a correção é feita em duplas que não conhecem um a nota do outro, se houver mais de 2 pontos de discrepância, a redação será corrigida por uma terceira pessoa. A meu ver, se houvesse uma correção mais elaborada, nenhuma divergência deveria ser admitida.
Tomemos alguns exemplos: suponhamos que os dois corretores tenham atribuído um ponto para gênero e um ponto para interlocução, mas que um deles tenha conseguido achar um argumento e dado nota zero em proposta e o outro tenha encontrado dois argumentos e logo ter-lhe atribuído um ponto de proposta. Na holística, ambos deram nota 1. Não haverá terceira correção, o candidato terá uma nota que é a média destas duas correções. Assim, ele terá 3 e 4, que multiplicados por 3 (que é o fator que facilita os cálculos dos pontos finais, ao considerar também as questões da primeira fase), ele terá respectivamente 9 e 12, cuja média é 10,5. Isto quer dizer que a diferença que anteriormente era de um ponto, agora se transformou em 1,5. Um dado estatístico que a banca de elaboração e correção não mostra é a de que os corretores discrepam bastante em 1 ponto na grade holística, muito mais do que na grade específica. A modo de exemplificação, suponhamos que haja novamente uma divergência de 1 ponto na segunda redação. No final, a diferença cresce para 3 pontos no total das redações. Três pontos pode não parecer nada, mas será crucial para um indivíduo que está prestando o vestibular para um curso de alta demanda. A pergunta pertinente é: não convidar o indivíduo para compor a barca com base nesses cálculos é um critério de justiça? Para o vestibular da exclusão: sim.
Normalmente, os vestibulares culparão o candidato por não terem feito uma leitura adequada dos enunciados. Os elaboradores do vestibular (que por incrível que pareça também são seres humanos subjetivos que falham) costumam dizer que a prova de redação é também uma prova de leitura. Um bom exemplo de como o vestibular da Unicamp se exime de falhas pode ser encontrado na problemática questão 20 (dos cadernos Q e Z) da primeira fase do vestibular 2013:

Considerando os respectivos ciclos de vida e de reprodução, um pinheiro do Paraná pode ser diferenciado de um jequitibá pela
a) ausência de sementes e presença de flores.
b) ausência de sementes e de frutos.
c) presença de sementes e ausência de frutos.
d) presença de frutos e ausência de sementes.

A alternativa c) foi apontada como a correta. Mas o bom leitor notaria um paradoxo na forma lógica desta questão. Veja: a leitura induz que o pinheiro do Paraná pode ser diferenciado de um jequitibá pela presença de sementes. Ou seja, a resposta diz que o pinheiro do Paraná tem semente e o jequitibá não. Além disso, o pinheiro do Paraná pode ser diferenciado de um jequitibá pela ausência de frutos. Isto é, o pinheiro do Paraná não frutifica enquanto o jequitibá sim. Quando na verdade, segundo os conhecimentos da biologia, tanto uma espécie quanto a outra apresentam sementes, embora o pinheiro não tenha frutos. O problema é que o enunciado não “bateu” com as alternativas, exatamente por não possibilitar uma leitura adequada. Ou a banca esperava que o candidato lesse as alternativas de modo desvinculado do enunciado?
Se você ainda duvida deste tipo de erro de leitura da própria banca, existe outra questão nesta mesma prova que envolve problemas de elaboração. Veja você mesmo a questão 43 e me diga se é capaz de encontrar a ambiguidade.
Com tudo isso, quero dizer que uma questão de vestibular não serve para medir seu esforço ou o seu mérito. Se você passou no vestibular, não foi porque você mereceu, foi porque você se treinou e, mais ainda, foi porque você se alinhou a ideologia da prova. Mesmo que você tenha estudado a retórica do(s) exame(s) e não conseguiu passar, isso se deveu porque o vestibular é baseado na ideologia da exclusão. Posto isso, você ainda acha que estes critérios servem para selecionar os melhores? Melhor para quê? Melhor para quem?
Vestibular é elaborado por uma elite, corrigido por uma elite e seleciona os filhos da elite. Desse modo, o pensamento é cada vez mais afunilado e a diversidade requerida para uma arca do fim do mundo não é respeitada. Hey, você, que já está dentro, hey, você, que quer entrar, esse papo é com você. Vocês não acham que está na hora de alguma coisa ser feita? Vocês não acham que esse modelo excludente jamais poderia ser como uma barca? 




2 comentários:

  1. Acho .... jamais poderia ser como um barca.
    O Próprio nome Academia vem do Jardim Academus. portanto um lugar de convivo ... Para mim a universidade deveria ser um lugar "onde jorra o leite e o mel" e todos servido!!
    Adorei o texto !!

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  2. Excelentes observações, xará.

    Curioso é também notar que o modelo acadêmico (escolar, universitário) é quase que completamente moldado à forma dos colégios e academias pré e pós-renascentistas. Ao fim, é hoje tudo um grande simulacro dos mesmos preceitos exclusivistas de há mais de dois, três séculos - pervertido, em sua forma, ao ponto de se mimetizar à sociedade como forma de pragmatizar ~ dogmatizando-se ~ o conceito de que o diploma é senão a única forma de diferenciação-de-'mercado' de nossa sociedade mercantil.

    E quanto às instituições públicas, estas servem apenas como vela-de-mesena desta nau de ditames empiricamente arcaicos que apenas servem para perdurar o exclusivismo do ethos elitista - agora pandemicamente disseminado dentre todos os nichos sociais. É tudo muito, muito triste. É uma geração de egonarcísicos imbecis iletrados, esta que está por vir.

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