domingo, 1 de janeiro de 2012

Racismo universitário

No segundo semestre de 2011, os funcionários da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) iniciaram uma greve, cuja principal reivindicação era a exigência de isonomia salarial entre as universidades estaduais paulistas (Unesp, Usp e Unicamp). Para entender melhor o caso, veja aqui.

Na ocasião, o restaurante universitário, mais conhecido como bandejão, declarou apoio à greve e parou de funcionar por mais de duas semanas. Foi então que muitos dos alunos se sentiram tocados pela questão. Até aí, tudo muito comum, afinal os funcionários representam o papel dos subalternos da hierarquia universitária. E num lugar como nosso país, a construção da subalternidade está muito atrelada à invisibilidade. Garçons, porteiros, lixeiros etc etc (TODAS essas profissões consideradas subalternas), quase nenhum deles é visto pelas outras pessoas (porque, né, TODAS as outras pessoas exercem profissões superioras).
Muitos estudantes se incomodaram com o fato de esses seres repugnantes, que preparam sua comida e cuidam da limpeza de suas bandejas, se organizavam para exigir seus direitos. A classe média se incomoda quando os subalternos saem de seus lugares invisíveis e passam a querer existir.
A maior parte dos estudantes, apesar de estar lidando com o conhecimento, vive num mundo alheio à realidade imediata da própria universidade. Desconhecem as questões que os cercam. Quando têm a oportunidade de sair para investigá-la, já que a comida acabou e a barriga roncou, revoltam-se como burgueses mimados contra os invisíveis do cotidiano. Levantam bandeiras individuais antes das coletivas. Talvez tudo isso se justifique pela preocupação da própria classe a que pertencem em manter o seu status quo. Se a justificativa não basta como peleguismo ou alienação, talvez também se trate de um medo em rebelar-se contra as amarras do pensamento, aquela que a universidade tanto preza e com a qual a geração jovem universitária atual se aculturou (não crescemos num período repressor, não crescemos com a surpresa da Aids).
Um deles poderia me perguntar: mas, quando os funcionários fazem greve, não estão eles também levantando uma bandeira individual, uma vez que estão ferindo o direito dos estudantes de se alimentarem?
São dois pontos de vistas diferentes: sim, de fato, sem refeição no bandejão, muitos outros funcionários e a classe estudantil ficam, muitas vezes, sem poder comer. Mas, por outro lado, não se trata de uma bandeira individual, porque o contexto é o de uma luta muito maior contra a truculência e a falta de diálogo do reitor. Estudantes, funcionários e funcionários do bandejão não tem o mesmo status dentro da universidade, assim não lhes resta muitas alternativas nos embates políticos. O problema não vem de baixo pra cima. Não surge dos trabalhadores e termina na reitoria. Mas é ao contrário, vem do reitor que, quando se recusa ao diálogo, coloca estudantes (alienados/pelegos) contra funcionários, como se estivéssemos num estádio disputando (com forças desiguais) qual das equipes deve ganhar.
Em vez de aproveitar a oportunidade para conhecer o que realmente ocorre no campus, um grupo de alunos resolveu criar um evento no Facebook sob o título: use sua isonomia para pagar meu almoço.

                     __ Ouviu, funcionário invisível, se um dia você conseguir isonomia salarial de acordo aos        salários das demais estaduais paulistas, pegue essa isonomia, seus honrados reais (que você conseguiu com o suor de sua luta e labuta) e pague meu almoço. O meu almoço, de um estudante que sou, consciente das desigualdades sociais do meu país, já que por causa de seu movimento, funcionário, não pude pagar só míseros DOIS reais no MEU bandejão. Afinal, se você vier me dizer que o governo subsidia minha refeição, posso lhe responder que pago MEUS impostos, com o MEU dinheiro. Portanto, é o MEU direito.

Bom, agora ficou fácil ver de quem são as bandeiras individuais.
Neste evento virtual, um aluno da UnB levantou a lebre que, ironicamente, acabo de anunciar no parágrafo anterior e criou um fórum provocativo:

HP: azul
TC: vermelho

As reações da juventude tocada com as mazelas da opressão dos trabalhadores foi imediata. Notem como a estudante do curso de estatística, TC (manterei as iniciais, sem identificar os sujeitos de modo a preservar suas identidades), ataca o criador do fórum, HB.
A mensagem, claramente tem um cunho racista, igual àquele destilado contra os nordestinos quando da eleição da presidenta Dilma (FULANA DE TAL acaba de ser indiciada por crime de racismo, com o agravante de usar uma rede social ...)
HB é oriundo de Fortaleza e migrou para a capital para fazer o curso de ciências sociais na Universidade de Brasília (UnB). Lá pelas tantas, TC volta e continua seu ataque racista:



Aqui, além de racista, podemos perceber que TC alimenta a típica ideia burguesa preocupada tão-somente com SEUS interesses privados. No post anterior, MA explicou muito bem porque não se trata apenas de dinheiro, universidade, setor público de única pessoa, mas de um bem coletivo que muitas vezes é usurpado por uma parcela muito pequena da sociedade (no caso da universidade pública, usurpado por muitos membros da elite previamente selecionados por um sistema “meritocrático” chamado vestibular).
Mesmo assim, ainda prefiro manter as identidades dos sujeitos em sigilo, porque, particularmente, estou criticando um grupo, uma ideia e um sistema e não uma pessoa em particular. Assim como a Lola, acredito que a perversidade tem um fundo coletivo. Talvez TC mereça uma punição, pois cometeu um crime. Talvez ela deva uma retratação pública ou um trabalho social.
Mas a maior prova de seu arrependimento é uma mensagem privada que a própria TC me mandou inbox:




Devo acrescentar: xingar campineiro (todos, ohhhh!) de playboy não é a mesma coisa que xingar negro de macaco, nordestino de miserável, mulher de piranha, homossexual de pederasta. Do mesmo jeito que estudante não é igual funcionário do bandejão. Será que as construções históricas são tão distantes assim da reflexão mental de um universitário que ele não consiga perceber as diferenças? Só não vê quem não quer e eu não estou disposto a desenhar.

Em tempo: o que você tem feito com a sua língua? Ainda acha que uma piada é só uma piada? Que uma palavra é completamente isenta de carga injuriosa quando posta de acordo com os seus interesses particulares? Acredite, você, ao fazer isso, só está manifestando as velhas ideias da burguesia reacionária.



9 comentários:

  1. O preconceito nada mais é do que um reflexo nas relações interpessoais daquilo que é imposto, de cima para baixo, na nossa sociedade como um todo. A idéia é a de que alguém tem que ser explorado, alguém tem que ficar "por baixo", para que outros possam viver plenamente.

    Expressões como "se dar bem na vida", "vencer na vida" tão presente no discurso dos mais pobres, definem bem essa triste situação.

    Se dar bem às custas do quê?

    Quem é o oponente?

    Pode parecer uma mera questão de indole, e humanistas podem até tentar reduzir a questão a uma mera formalidade educacional. Mas meu entendimento difere. Parece se tratar mais de uma situação estrutural da sociedade que tem como pano de fundo fatores econômicos amplos.

    Por mais que se perca tempo discutindo e argumentando com cada um que aparece falando uma besteira dessas à cerca de negros, nordestinos, mulheres, e, mesmo que consiga se convencer o indivíduo em questão, o sistema, neste momento, está "formando" (ou seria deformando?) as idéias de milhares de outras pessoas, adultos e crianças.

    Não estou dizendo, entretanto, que não se deva corrigir e apontar o preconceito quando identificado. Isso é bom, importante, mas não é o bastante. O golpe é mais embaixo, nossa luta tem que ser mais profunda.

    Mesmo que os veículos de comunicação proponham ideais um pouco mais igualitárias (fenômeno recente que pode ser observado em algumas campanhas da globo no último ano, por exemplo), enquanto essa pretensa igualdade de direitos não for expressa em cifras, números na redistribuição de renda, qualidade de vida, compartilhamento dos meios de produção, possibilidades de acesso a todos para os mais diferentes campos, etc. esse discurso nunca passará disso: um discurso, o qual o sistema nunca abarcará por completo.

    Uns continuarão mais iguais do que outros.

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  2. PS. todo o apoio aos funcionários e estudantes grevistas da unicamp!

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  3. PS: a greve já acabou. Sem mtos resultados. Aguardemos até o próximo semestre.

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  4. Eu acho que o preconceito pode ser um reflexo das relações de cima pra baixo. Mas ele não acontece por causa dessa relação, quero dizer, não é essa relação a justificativa de sua ocorrência.
    Cada pessoa é responsável por seus atos. E por mais que tenhamos diversas justificativas, quando proferimos uma palavra preconceituosa, quem, ao fim e a cabo, comete a injuria é o indivíduo, impelido justamente por este jogo de interpessoalidades. De outro modo, tudo isso se dá num movimento da sociedade.
    Por isso que também acredito que apontar os preconceitos não é o bastante. Sendo assim, meu modo de apontar os preconceitos é o reflexivo. Tento com isso, como especialista em linguagem, evocar nos meus leitores uma vontade de mudança.
    Neste post, talvez não tenha ficado muito claro, mas gosto de mostrar as nossas amarras. Mostrar que existe uma força que nos ata. Vencê-las já é uma questão pessoal, mas entendê-las é necessário.

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  5. Texto muito bom! Infelizmente, na Unicamp esse pensamento individualista e xenofóbico é predominante! A maioria dos estudantes não se identifica com a luta de seu povo, sendo aliada daqueles que exploram o povo.

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  6. Acho que esse preconceito está intimamente ligado com a ideia da maioria dos brasileiros de que 'precisamos de alguém pra nos servir'.
    Os cargos de subalternos dos quais você falou são quase escravistas ao meu ver, as pessoas trabalham muito, ganham pouco e não tem o direito de reclamar.
    Há muito o que mudar em nossa sociedade, mas como mudar a mentalidade se nossos universitários pensam como ilhas e não como nação?

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  7. mas que menino politizado! well done mister! parabéns pelo blog: mostrando a lingua e as garras para o mundo, hehe!

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  8. Ótima discussão. Acredito que coisas semelhantes devem ter passado nas demais universidades do país. Interessante que a própria descrição do evento virtual ressalta o egocentrismo que permeia a situação, vê-se que as palavras em caixa alta, com excessão do "dois", são todas "MEU" "MEUS" "MEU" "MEU".

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  9. Oi! Você ganhou um selinho de qualidade do Blog da Ana. Confira! http://ideiaampla.blogspot.com/2012/01/selo-de-qualidade.html

    Beijinhos, Ana Paula

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