sexta-feira, 22 de julho de 2011

Resenha: Hibisco Roxo


ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Cia das Letras, 2011 [2003]. 328 pp. Trad: Julia Romeu. Título original: Purple hibiscus.



rara, com o cheiro suave de liberdade (...)
 Liberdade para ser, para fazer (p. 22)



Um romance reflexivo, Hisbisco Roxo, de Chimamanda Adichie, é narrado em primeira pessoa por Kambili, uma jovem nigeriana de classe alta.
A narrativa está divida em quatro capítulos, cuja nomenclatura gira em torno da temática principal do enredo: o catolicismo exacerbado introduzido pelos colonizadores. Os nomes dos capítulos fazem alusão ao domingo de ramos católico e narram as cenas pré, pós e durante esta data. No entanto, o enredo não é linear. Logo de início o leitor é surpreendido por uma breve cena ocorrida no domingo de ramos, o título desse capítulo é: “Quebrando deuses: Domingo de Ramos”. O capítulo seguinte, “Falando com nossos espíritos: antes do domingo de ramos”, prepara o leitor para que ele entenda a cena inicial. É o capítulo mais longo e é o principal do livro. O terceiro capítulo se intitula: “Os pedaços de deuses: após o domingo de ramos”. E o último capítulo é uma espécie de posfácio, em que Kambili nos conta as seqüelas da narrativa: “Um silêncio diferente: o presente”.
            No primeiro capítulo, caso o leitor não saiba se tratar de um romance nigeriano, não fica muito claro onde se passa a história que se vai iniciar. As primeiras descrições são bastante universais e a cena introdutória é bastante comum às dos países colonizados. Mas aos poucos o universalismo vai se delineando e temos noção mais ou menos de que conheceremos a realidade de um país africano, pois é-nos descrita uma vegetação peculiar: hibiscos roxos, plumérias, buganvílias. Também é a primeira vez que se narra uma cena de refeição: sopa onugbu com fufu, suco de caju. Serão recorrentes em todo o livro tais cenas do momento de alimentação, o que servirá para caracterizar a riqueza da família de Kambili em contraste com a pobreza do país.
Ainda neste primeiro capítulo conhecemos o núcleo familiar da jovem nigeriana: Eugene, o Papa, rico industrial e dono de um jornal progressista; Beatrice, a Mama, dona de casa e seu irmão mais velho Jaja.
Eugene, no primeiro capítulo, arremessa seu pesado missal contra Jaja, o que faz quebrar lindas estatuetas que ornam uma das estantes da sala. Eugene, que já começa a ser caracterizado como um fanático religioso, fica furioso porque seu filho deixa de receber a comunhão por dois domingos seguidos.
Á primeira vista, pareceu-me inverossímil uma descrição de uma casa tão rica e de um catolicismo tão ignorante. Mas após a leitura do capítulo principal, o segundo, tal perspectiva se desfaz.
Aos poucos, percebemos a ingenuidade de Kambili e como ela vai amadurecendo ao longo da trama. Ela é vítima de uma criação extremamente superprotetora, por parte de seu pai Eugene, o que acaba tornando-a uma menina inexpressiva. Se a história não fosse contada a partir do ponto de vista de Kambili, poderia dizer que esta seria uma personagem apática. Mas sabemos que não é bem assim. Embora Kambili seja calada e introspectiva, dentro de sua mente voa um carrilhão, é como a descreve padre Amadi, figura por quem a garota desenvolve um amor platônico.
A menina sente um respeito exacerbado por seu pai. Esse respeito, por vezes é confundido com temor. Do início ao fim, Kambili não faz o leitor sentir ódio por Papa, mesmo nos momentos mais críticos da narrativa. Pelo contrário, a garota tenta a todo custo sempre agradar a seu pai.
Eugene é um homem paradoxal, pois ao mesmo tempo em que demonstra ser extremamente altruísta, (mantém várias instituições filantrópicas, p. ex.), ele paulatinamente vai destruindo sua própria família, devido a sua tirania religiosa. Este personagem pode ser interpretado como um arquétipo da religião colonizadora. Apesar de ser muito rico, seu pai, Papa-Nukwu, vive à beira da miséria em sua cidade natal. O avô de Kambili é o arquétipo da cultura local, pouco penetrada pelo colonialismo europeu.
Eugene recusa ajudar seu próprio pai, porque este nega converter-se ao catolicismo e abrir mão de seu tradicionalismo. Desse modo, Kambili e Jaja quase não têm contato com o avô. Eles o visitam uma vez ao ano, no natal, quando a família deixa Abba e volta para sua ummuna, sua comunidade. Nesta ocasião, os netos vão até a casa do avô, levados pelo motorista Kevin, e têm o direito de permanecer não mais que quinze minutos com seu Papa-Nukwu.
A rigidez de Eugene também assombra sua esposa. Em algumas passagens não muito explícitas, parece que Eugene espanca sua esposa Beatrice. Numa delas, a mulher sofre um aborto em decorrência dos traumas. As cenas não são explícitas porque quem nos conta é Kambili, num ponto de vista muito inocente.
Eugene realmente é um pai superprotetor. Exige que seus filhos sejam sempre os primeiros colocados da turma. Caso isso não aconteça, como vemos num episódio em que Kambili fica em segundo lugar da classe, os filhos são punidos. Além disso, Jaja e Kambili devem seguir um horário rigoroso dentro de uma rotina de estudos rigorosa.
Este é o estado da arte na casa de Kambili e sua família. Mas a história começa a dar uma quinada quando os irmãos vão passar dez dias de suas férias na casa de tia Ifeoma, uma irmã de Eugene. Lá em Enugu, o casal de irmãos entram em contato com uma realidade mais próxima do país. Tia Ifeoma é uma professora universitária que vê a corrupção assolar a Nigéria. Kambili transcreve diálogos interessantes de sua tia com seus dois filhos mais velhos, Obiora, o maior, e Amaka, a questionadora. Além deles, Ifeoma, que é viúva, tem mais um filho, Chima, o caçula. Nesse núcleo, ainda aparece Amadi, um padre que consegue conciliar a cultura local à fé católica.
Ifeoma e filhos são obrigados a imigrar para os EUA, pois a universidade a despede com a desculpa de que a professora estaria envolvida em atividades ilegais, o que não é verdade. Nesse mesmo período, o padre Amadi, por quem, a esta altura, Kambili já está perdidamente apaixonada, também tem de mudar-se, já que é missionariamente transferido, numa crítica irônica ao colonialismo, para a Alemanha.
Antes disso, Papa-Nukwu fica muito doente e tia Ifeoma o traz para passar seus últimos dias junto a ela e aos netos. Neste período, Amaka pinta um quadro do avô. Kambili e Jaja passam momentos jamais vividos ao lado de seu ancestral e notam que ele, apesar de não ser cristão, também é uma pessoa boa.
Eugene, ao descobrir que seus filhos estão sob o mesmo teto de um pagão, vai pessoalmente buscá-los e surpreende-se com a morte do pai. Mesmo assim, Kambili e Jaja são brutalmente punidos. Eugene lava os pés de seus filhos com água fervente. A cena é narrada não com ódio, mas de um ponto de vista que nos faz entender que o pai só quer o bem de seus filhos.
Jaja traz mudas de hibisco roxos da casa da tia e as planta em sua casa em Abba. O quadro pintado por Amaka é dado de presente à Kambili, que o esconde a todo custo de seu punitivo pai.
A estadia na casa de tia Ifeoma transforma profundamente os irmãos. Kambili passa a ser mais extrovertida e Jaja a buscar mais sua autonomia (o que nos dá a impressão de se tratar de uma certa rebeldia).
A vida de Eugene se modifica quando Ade Coker, seu jornalista do peito, morre. Ade Coker é conhecido por fazer denúncias políticas no jornal de Eugene, o Standart. O jornalista vai preso um par de vezes e sempre é solto graças à influência de seu patrão. Coker termina seus dias vítima de uma carta bomba, que explode na mesa do café da manhã, diante de sua mulher e filhos.
Desde esse dia, Eugene parece entrar num estado depressivo e se torna ainda mais agressivo. Ao descobrir o quadro de Papa-Nukwu, dado por Amaka, e mantido escondido por Kambili, Eugene espanca a filha até o ponto de a garota desmaiar.
Kambili passa dias em coma no hospital e ao recuperar-se viaja para a casa de tia Ifeoma novamente. Diante da sociedade, o crime é disfarçado de acidente, como sempre ocorre quando Eugene agride a esposa e os filhos.
No domingo de ramos, Jaja recusa-se a comungar. E novamente Eugene demonstra sua fúria. Depois do domingo de ramos, Beatrice começa a botar veneno no chá de Eugene, que morre na mesa de seu escritório na fábrica.
Jaja assume a culpa e vai preso. Beatrice enlouquece e Kambili amadurece de vez.
Através desse romance, Adichie denuncia a situação em que se encontra uma Nigéria pós-colonial. O livro, como já disse, apesar do universalismo, capricha nos regionalismos. Adichie se recusa a reproduzir as histórias estrangeiras muito comumente lidas em seu país, A língua veicular da Nigéria é o inglês e a tradição literária do país costuma ser a de língua inglesa. Mas Adichie não faz isso. Ela descreve muito bem a paisagem nigeriana, como o título não deixa mentir. Faz uma simbiose entre as características psicológicas de seus personagens e o clima nigeriano: descreve as chuvas e os ventos do harmantan, os inúmeros por e nascer do sol; descreve os alimentos, as frutas, o ambiente rural.
A crítica ao colonialismo não se dá somente através da situação religiosa. Numa perspectiva linguística, Adichie também deixa claro que a língua do colonizador é mais prestigiada. Por vezes, Eugene repreende as pessoas por falarem inglês: “Papa quase nunca falava em igbo, embora Jaja e eu usássemos a língua com Mama quando estávamos em casa, ele não gostava que o fizéssemos em público. Precisávamos ser civilizados em público, ele nos dizia; precisávamos falar inglês” (p.20). E denuncia o ridículo linguajar forjado: “Ela falava mais igbo do que inglês, mas todas as suas palavras em inglês saíam com um sotaque britânico consistente, diferente do de Papa, que só surgia quando ele estava diante de gente branca, e às vezes, sumia em algumas palavras, de forma que metade da frase ficava com sotaque nigeriano e outra metade com sotaque britânico” (p. 256-7).
De forma irônica, como todo o livro, a autora também aponta para o racismo: “fazia as coisas do jeito certo, do jeito que os brancos fazem, não como nosso povo faz agora!” (p.74).
O mais interessante deste livro é que ela dá a conhecer ao mundo, através da literatura, uma realidade social, política e educativa da Nigéria. Desfaz o mito de que a África é única. Desfaz também o estereótipo da África como um continente miserável. A personagem principal é rica. Ifeoma é uma professora universitária e há bastante felicidade na cultura local. Se algum sentimento de piedade é evocado no leitor, este sentimento pouco tem a ver com a situação de uma Nigéria na miséria. Surge, não obstante, uma piedade de uma Nigéria esfacelada pelo contato.
Outra questão que se mostra é a preocupação da autora em lutar para que a Nigéria deixe de ser um lugar de corruptos. Através de Ifeoma, Adichie empreende uma reflexão sobre a migração aos EUA. Obiora defende a ideia de que sair do país não é uma solução: “os que estudaram vão embora, aqueles que têm potencial para consertar o que está errado. Eles deixam os fracos para trás. Os tiranos continuam reinando porque os fracos não conseguem resistir. Você não vê que é um círculo vicioso? Quem vai quebrar esse círculo?” (p. 258-9).
De maneira geral, fica evidente que Adichie escreve uma história em que os nigerianos têm vez: “existem pessoas, escreveu tia Ifeoma certa vez, que acham que nós não conseguimos governar nosso próprio país, pois nas poucas vezes em que tentamos  nós falhamos, como se todos os outros que se governam hoje em dia tivessem acertado de primeira. É como dizer a um bebê que está engatinhando, tenta andar e cai de bunda no chão que ele deve permanecer no chão. Como se todos os adultos que passam por ele também não houvessem engatinhado um dia” (p. 315)

3 comentários:

  1. Seu blog é lindo! Gostei de seus textos, sobretudo deste.

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  2. Oi, Thaís. Obrigado pelo elogio. Tbm gosto muito do seu, inclusive, recomendo-o aqui no meu.
    Conehco tb alguns dos seus pupilos que frutificaram por terras campineiras.... eles sempre falam mto bem de vc.

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  3. Olá, gostei do seu blog. Estou tentando fazer minha monografia com base nesse livro, onde pretendo destacar aspectos sobre a identidade cultural e a língua inglesa no período pós-colonialismo da Nigerria.

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