Apesar do território tão pequeno, equivalente ao estado brasileiro do
Rio de Janeiro, e de uma população relativamente reduzida, um milhão e meio de
habitantes, autores como Intumbo (2007) e Pinto (2009), entre outros, descrevem
a Guiné-Bissau como um território extremamente diversificado culturalmente, o
que se deve à diversidade de etnias.
Em média, a cada 50 ou 60 km, entramos num
território linguístico diferente,quer viajemos para o Norte, Sul, Leste ou
Oeste. Nota-se uma diferença linguística ecultural entre as regiões, talvez
motivada pelas actividades de sustento praticadas pelospovos que as habitam: as
etnias do Norte e Sul, maioritariamente animistas, dedicam-se essencialmente à
agricultura e normalmente constroem as suashabitações junto àsbolanhas
(arrozais); as etnias do leste, predominantemente muçulmanas, praticam
apastorícia e o comércio, habitando zonas mais recuadas em relação aos
arrozais,geralmente mais desérticas. Assim, se viajarmos de Bissau para a
cidade de Mansoa anortedeste, (60 km) passamos pelo território dos papeis
(Bissau), dos balantas (vila deNhacra, entre Bissau e Mansoa) e chegamos ao
território dos mansoncas (cidade deMansoa); de Gabú a Bafatá no leste temos os
fulas apenas e a sua língua numa extensãode mais de 50km
(Intumbo, 2007, pp. 2-3)
A população é composta por cerca de
30 etnias, que têm sua língua própria. A seguir, apresentamos um quadro (apudIntumbo) com as principais línguas e
seu número de falantes:
Quadro
1
Línguas
|
População
|
Línguas
|
População
|
Balanta
|
254.000
|
Mansonca
|
9.000
|
Fula
|
169.000
|
Baiote
|
5.000
|
Manjaco
|
118.000
|
Banhum
|
5.000
|
Mandinga
|
96.000
|
Nalu
|
5.000
|
Papel
|
59.000
|
Sarakolé
|
2.000
|
Mancanha
|
25.000
|
Sussu
|
2.000
|
Biafada
|
18.000
|
Kassanga
|
400
|
Padjadinca
|
5.000 – 12.000
|
Kobiana
|
300
|
Bijagó
|
16.000
|
Djakanka
|
-
|
Diola
|
15.000
|
Maninka(?)
|
-
|
Mansonca
|
9.000
|
|
|
A essas línguas deve-se acrescentar
o Kriol, que é falado por
praticamente todos os habitantes e é tido como uma língua franca. Além disso,
nos registros formais, fala-se o Português, para o qual não há uma estimativa
oficial dos números de falantes (Nhanca, 2013).
Quanto à religião, Pinto (2009)
apresenta a seguinte informação:
Actualmente,
pode distinguir-se na realidade da Guiné-Bissau três grupos sociais. Um
indígena (africanos animistas), outro de influência árabe (islamizados pelos
árabes Almorávidas desde os séculos XII-XIII) e outro de influência europeia
(cristianizados). Cerca de 55% serão indígenas, 40% islamizados e 5% cristãos
(estes concentrados, quase exclusivamente em Bissau) (p. 31).
1.1 A
etnia Papel
Sobre a etnia Papel, cultura de que
trataremos, deve-se dizer que ela compartilha traços culturais com os Manjacos
e os Mancanhas, já que em seu passado configuravam um mesmo grupo étnico. A
diferença se deu após a colonização portuguesa que instalou diferenças
artificiais e difundiu a crença de que os povos não conformavam uma mesma
etnia. Essa foi uma das estratégias da administração colonial para dissuadir os
mais revoltosos e que frutificou até os dias atuais. Os Papéis (ou Papeles) estão
divididos, de acordo com Pinto (2009), em 7 clãs organizados em regulados.
De acordo com Moreira (1994), a
etnia Papel segue um esquema matrilinear, isto é, a pertença ao clã é herdada
da mãe. No entanto, as lideranças são feitas pelos indivíduos do sexo
masculino, assim, o indivíduo é incorporado ao clã do tio materno. A hierarquia
funciona por senioridade e a figura máxima é o régulo (ou rei), cujo clã
Batcha-su é o único dos sete que pode dar origem ao que ocupa essa posição. O
aglomerado de casas, que se dá por afinidade de parentesco, se denomina
"morança": "é geralmente composto por um patriarca - 'chefe da
morança' - suas mulheres e filhos solteiros e casados, podendo agregar três a
quatro gerações" (Moreira, 1994, p. 177).
Sobre a origem do nome, Semedo
(2010) traz um relato de uma de suas informantes que assim o explica:
os portugueses pagaram tributo aos régulos papéis
até finais do século XIX, altura em que impuseram o pagamento dos impostos de
cabeça e de palhota aos nativos. Conta-se que o nome dessa etnia estaria ligado
ao relacionamento difícil com o colonizador. Os habitantes da ilha de Bissau,
muito rebeldes, nunca quiseram pagar os impostos de palhota e de cabeça
impingidos pelos colonizadores e, sempre que recebiam a notificação de pagamento,
levavam o “Papel” diretamente à administração, reclamando serem eles os donos
do chão e que por isso não deveriam pagar nada. Assim, sempre que os homens
apareciam, os brancos exclamavam “aí vêm os homens do Papel”. Informa ainda Semedo que o nome Papel ficou,
e que na língua local esse grupo se autodenomina ussau (o grupo papel da região de Biombo se autodenomina yum). (p. 53).
Existe também a variação da primeira
vogal "a" com "e", resultando na denominação "Pepel".
1.2 Objetivos
A diversidade cultural proporcionada
pelos numerosos grupos étnicos se faz notar também nos diversos costumes e
tradições específicos e bem distintos uns dos outros. Alguns desses costumes
dizem respeito a momentos que simbolizam a integração do indivíduo na
coletividade como, por exemplo, a passagem para a vida adulta, o matrimônio ou
o luto.
Neste trabalho, abordaremos a
cerimônia de casamento da etnia Papel, cujo ritual matrimonial
|
Madrinha dando de comer aos noivos |
apresenta
elementos extremamente interessantes se considerarmos sua diferença em relação
aoritual católico ou cristão de união entre duas pessoas. O casamento Papel
possui características próprias de sociedades orais nas quais a linguagem tem
um poder maior do que o de qualquer documento escrito.
Ao analisar alguns dos elementos do casamento Papel, notamos que o seu
processo de significação poderia ser estudado a partir das reflexões do
filósofo inglês John Austin sobre a performatividade da linguagem.
Dessa forma, neste trabalho, pretendemos analisar brevemente uma
cerimônia de casamento Papel, identificando e descrevendo os seus elementos
performativos e evidenciando o seu processo cultural de significação.
2. Descrição do
Casamento na Etnia Papel
Entre os vários ritos e cerimônias
da etnia Papel, o casamento é um dos mais importantes e valorizados. Fruto
direto de uma cultura oral, essa cerimônia possui mais legitimidade entre seu
povo do que os casamentos realizados em cartórios e firmados por contratos
assinados. Como integrante da etnia Papel, passo agora a relatar em linhas
gerais algumas das características dessa cerimônia das quais tenho
conhecimento. Este relato também se baseia em uma filmagem pessoal de um
casamento familiar e no estudo de Moreira (1994). Conforme comenta Moreira, existe uma lacuna
bibliográfica sobre o ritual de casamento da etnia Papel, por isso, seu estudo
se baseia em apenas uma ocorrência que a autora teve oportunidade de
presenciar. Igualmente é o caso deste trabalho, contamos apenas com o meu
conhecimento de integrante nativa e com as experiências de que tenho vivência.
Embora atualmente na Guiné-Bissau muitas práticas
culturais étnicas estejam sendo deixadas de lado (Pinto, 2009), essa cerimônia
mantém-se viva entre os integrantes da etnia Papel. Sua preservação é encarada
como um ato de respeito aos antepassados, uma continuidade étnica e uma
afirmação da existência do próprio grupo e de seus valores.
Sendo assim, os jovens que ainda se uneme
maritalmente por meio dessa cerimônia tradicional reafirmam a existência de seu
povo e a sua identidade Papel. Um fato interessante sobre a continuidade e a
identidade Papel é que ela se realiza por meio de transmissão materna.
O seguinte provérbio da língua Kriol exemplifica bem essa concepção,
deixando claro que o Papel é filho da barriga, ou seja, da mãe:
Fiju ta padidu
tras di si pape, ma i ka tras di si mame
(Filho pode nascer longe do pai, mas não longe da mãe).
O casamento entre dois jovens Papéis
não nasce da vontade dos cônjuges. Na verdade, é um acordo de união firmado
entre duas famílias que se concretiza com o casamento entre seus filhos. Esse
acordo, por sua vez, é realizado com o intuito de garantir a continuidade da
etnia Papel. Nas palavras de Moreira (p. 178):
Ainda recentemente o casamento constituía a forma
privilegiada dos grupos de parentesco estabelecerem alianças entre si. Estas
eram protagonizadas por indivíduos do sexo masculino com estatuto de
senioridade sendo então vulgar que uma rapariga ao nascer estivesse já "prometida"
em casamento. A união afetiva dependeria de toda uma série de transferências de
bens e serviços do grupo de parentesco do rapaz para o da futura
"noiva" que se realizavam até à altura em que esta fosse considerada
apta para casar. Isto acontecia a partir da primeira menstruação e desde que o
seu corpo apresentasse o desenvolvimento físico esperado.
Atualmente, os integrantes da etnia
lutam para que o governo local reconheça essa cerimônia legítima de união como
um ato legalizado de união civil.
2.1. Noivado
Geralmente são os pais do rapaz que
propõem o casamento aos pais da moça. Caso haja aceitação do pedido, segue-se
uma série de ritos que levarão ao casamento e finalizarão com a cerimônia.
Algumas vezes a noiva só conhece o seu futuro marido no dia do casamento. Tal
fato às vezes gera constrangimento e revolta, já que a noiva pode não se sentir
atraída pelo noivo. Na maioria das vezes, a moça é obrigada a casar-se com
homens bem mais velhos que ela.
Com a confirmação do noivado, a
noiva passa a ser vigiada não apenas pela sua família e pela família do noivo
como também pelos amigos do noivo.
2.2. Dote
O rapaz deve pagar um dote aos pais
da moça pela mão de sua filha. Esse dote consiste em alguns objetos (tecidos,
10 litros de pinga, um porco, um bode e um cachorro) e em trabalho a ser
realizado em plantações do pai da noiva. Esse trabalho deve ser feito desde a
colheita até o cultivo do produto. Caso o noivo tenha dificuldades na
realização da tarefa pode pedir auxílio aos seus amigos.
Os objetos do dote devem ser entregues no dia das
núpcias. Eles são conferidos pelos membros masculinos da família da noiva. Se
faltar algum, eles iniciarão um longo discurso com o noivo sobre o fato.
Algumas vezes esse discurso dura a noite toda. O objetivo dessa discussão é
verificar a intensidade do desejo do noivo em casar-se com a noiva e demonstrar
que a obtenção da sua mão é algo difícil. Um fato interessante é que o noivo
não pode responder às falas que lhe são endereçadas porque antes da realização
do casamento ele não possui direito à palavra. Seus familiares e amigos é que
responderão e intercederão por ele.
Os animais serão sacrificados no
local onde ocorrerá o enlace dos noivos. Após o grupo masculino, as mulheres
também conferem se o noivo trouxe todos os animais exigidos no dote. Vale
ressaltar que,dentre os animais, o cachorro é o mais importante, pois ele é o
símbolo da união e, no momento de seu sacrifício, caso ele chore mais de uma
vez, isto será interpretado como um indício de maldição ao futuro matrimônio.
A mãe da noiva ficará com os tecidos. Os tecidos, mais
concretamente os chamados panos pentes,
têm na cultura guineense um significado prestigioso:
Estes
panos são bens de prestigio e símbolos de poder que todas as mulheres procuram
possuir, e quando podem, juntam um número elevado desses panos que testemunham
o seu prestígio (Carvalho, 1998: 106). São as mulheres que fornecem, quando
necessário, panos para os membros masculinos da família. Se o gado é a riqueza
do homem, os panos pente são a das
mulheres. (...)Uma bideira de etnia
papel considerou a compra de panos cerimoniais, como o investimento
preferencial dos lucros obtidos no comércio, «porque pano tem grandesignificado na vida da mulher Papel.Isso
justifica no momento da morte da mãe, em que a filha mais velha tem de
apresentar a mala cheia de pano da sua mãe e a sua própria mala também cheio, e
o não cumprimento desse dever significa o grande insulto familiar» (Perpetua,
comerciante de peixe) (Domingues, 2000, p. 364-5)
A pinga, por sua vez, será utilizada como um
sinal após as núpcias para informar aos familiares e à comunidade se a noiva
casou-se virgem. Se a noiva casou-se virgem, o marido sai do quarto de núpcias
com uma garrafa cheia de cachaça; se a noiva não era mais virgem no momento do
casamento, o marido apresenta uma garrafa contendo apenas metade do líquido e a
entrega à mãe da noiva. Esse gesto simboliza que o noivo considera que a mãe
não educou bem a sua filha.
2.3.
Casamento
No dia da cerimônia, o noivo fica
inserido em um grupo masculino e a noiva em um grupo feminino. Esses grupos são
compostos por integrantes das duas famílias. Após
a conferência do dote pelos homens o noivo é encaminhado ao local no qual se
consumará outra parte do ritual. A noiva só será encaminhada até lá se o noivo
demonstrar alegria em recebê-la. A noiva, trajando um pano branco ou preto, vai
até o local acompanhada pela sua comitiva de mulheres.
Os homens e as mulheres presentes organizam-se em
um círculo no qual encontram-se os noivos.
Nesse momento, o noivo terá que
romper com as mãos uma linha que está presa na cintura da noiva. A ruptura
dessa linha, tecida pelas mulheres da comunidade, simboliza a união do casal e
de suas famílias.
Se
o homem não conseguir romper a linha de tecidos com as mãos, as mulheres
entregam-lhe uma faca. Porém, caso isso ocorra, os presentes dirão ao noivo que
ele é um homem fraco e que, provavelmente, não conseguirá cuidar da sua própria
família. A intenção dessa provocação é fazer com que o noivo desista do
casamento.
Com o rompimento da linha, a noiva
deixa de ser responsabilidade da família dos seus pais e passa a ser
responsabilidade do noivo. Nesse momento, o noivo também ganha seu direito à
fala e poderá responder a qualquer uma das provocações ou falas que antes lhe
haviam sido dirigidas.
Depois dessa cerimônia, o marido
levará sua esposa para a casa na qual os dois viverão. Porém, os dois ainda não
poderão dormir juntos. Desde a chegada à casa do marido até às vésperas da
noite de núpcias, a mulher dormirá com uma acompanhante.
No dia seguinte, a mulher terá todo
o seu cabelo raspado por um dos amigos do marido. O corte de cabelo simboliza a
ligação da mulher com a família de seus pais. O cabelo que nascerá, representa
a nova relação familiar que está se iniciando.
Esse rito ocorre no centro da casa (morança). Após a sua realização
uma das senhoras da família do marido untará todo o corpo da mulher com óleo de
palma (óleo de dendê). Essas ações, o corte de cabelo e a passagem do óleo,
devem ser realizadas em total silêncio.
Quando o marido falecer, a mulher
também deverá cortar todo o seu cabelo como um sinal de luto.
Após a cerimônia do corte do cabelo
ocorre uma festa.
|
noiva envolta no tecido embebido de óleo de dendê |
A esposa ficará um mês na casa do
seu marido. Durante esse tempo, eles não poderão dormir juntos. Transcorrido o
tempo de espera junto ao marido, ele passará curtos períodos de tempo na casa
de vários de seus familiares.
É somente quando a esposa retorna
para a casa do marido que ocorrem as núpcias do casal. As núpcias são
acompanhadas pelas familiares e amigos dos cônjuges.
Para a etnia Papel, a mulher só se
casa uma vez. Caso ela se separe ou o marido faleça, ela sempre continuará
ligada a esse esposo. Mesmo se ela tiver filhos com outro homem, estes serão
considerados filhos do seu primeiro marido
3.
Os atos de fala e o casamento Papel
3.1 Abordagem teórica
Iremos analisar alguns dos momentos
do casamento da etnia Papel para verificar a performatividade dos atos de
linguagem presentes na situação. Segundo essa teoria performativa, desenvolvida
pelo filósofo inglês John Langshaw Austin (1990), a linguagem não é uma representação
de um pensamento ou de um estado de coisas, mas sim uma ação sobre o mundo.
Sendo assim, a nossa fala é um ato, que não apenas diz, como também faz.
Nesse sentido, o autor, assim como
já o faziam Frege e Wittgenstein, opõe-se à noção de proferimentoassertivo, rompendo com uma tradição que
apenas podia atribuir valores de verdade ou falsidade aos enunciados. Segundo
Renato Ferreira (2011), Wittgenstein colabora para o pensamento de Austin na
medida em que considera que o significado das palavras não depende apenas
delas, mas de todo um contexto em que é articulada. Por outro lado, continua o
autor, Frege aprofunda esse pensamento com seus conceitos lógicos. Os
proferimentosconstatativos são semelhantes ao performativos de Austin, com a
diferença de que “A. nada 'descrevam' nem 'relatem', nem constatem, e nem sejam
'verdadeiros' ou 'falsos'; B. cujo proferimento da sentença é, no todo ou em
parte, a realização de uma ação, que não seria normalmente descrita consistindo
em dizer algo” (FERREIRA, 1990, p.24). O exemplo clássico usado para ilustrar a
impossibilidade de atribuição de valores aos atos performativos é o batizado,
em que a declaração do padre é o próprio ato do batismo. Esse ato pode ser
infeliz, caso a declaração seja proferida pelo coroinha, por exemplo, mas não
falso. Por isso, o filósofo inglês propõe condições de felicidades para os atos
performativos:
(A.1) Deve existir um procedimento
convencionalmente aceito, que
apresente um determinado efeito convencional e
que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas
circunstâncias; e além disso, que
(A.2) as pessoas e circunstâncias particulares,
em cada caso, devem
ser adequadas ao procedimento específico
invocado.
(B.1) O procedimento tem de ser executado, por
todos osparticipantes, de modo correto e
(B.2) completo.
(Γ .1) Nos casos em que, como ocorre com frequência,
o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou
visa à instauração de uma conduta correspondente
por parte de alguns
dos participantes então aquele que participa do
procedimento, e o invoca deve de fato ter tais pensamentos ou sentimentos, e os
participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneiraadequada, e, além
disso,
(Γ .2) devem realmente conduzir-se dessa maneira
subsequentemente.
(AUSTIN, 1990, p. 31)
Os atos performativos ainda se
dividem em três tipos: osimples ato de dizer algo é chamado de ato
locucionário, e corresponde ao contatativo. Este se opõe ao ato ilocucionário,
que consiste na realização deum ato ao dizer algo, mas um dizer que realiza
alguma coisa, e corresponde ao performativo. O terceiro, o ato perlocucionário,
implica produzir efeitos e consequências de um dizer sobre quem ouve ou quem
fala (1990, p.89-90).
Eis o exemplo de Austin (1990, p. 90):
Ato (A) ou Locução
Ele me disse 'Atire nela!' querendo dizer com
'atire' atirar e referindo-se a ela por 'nela'.
Ato (B) ou Ilocução
Ele me instigou (ou aconselhou, ordenou, etc.) a
atirar nela.
Ato (C.a) ou Perlocução
Ele me persuadiu a atirar nela
Ato (C.b)
Ele me obrigou a (forçou-me a, etc.) atirar nela.
3.2
Análise do casamento Papel: o papel social do homem
Passemos agora a entender como esses
atos performativos se dão no contexto do casamento dos Papéis.
No casamento Papel, o noivo só tem
direito à fala após a concretização da união, que é simbolizada pelo corte de
uma linha que está amarrada na cintura da noiva. Antes disso, o noivo deve
permanecer em silêncio e não pode dirigir a palavra a ninguém, mesmo se ele é
insultado ou ofendido. Aliás, é comum os parentes da noiva ofenderem e tentarem
humilhar o noivo durante a cerimônia, considerando exatamente o fato de que ele
não pode responder.
O casamento Papel é um ritual
específico de uma cultura, portanto, as ações e os papéis desempenhados pelas
pessoas nesse ritual são socialmente aceitos e estabelecidos. Dessa forma, cada
um dos noivos deve exercer o seu papel dentro daquela cerimônia. O silêncio do
noivo faz parte desse ritual. Então podemos considerar que o silêncio do noivo
não é fruto de uma ação individual, de uma decisão tomada por ele, mas sim uma
ação determinada socialmente.
O fato de o noivo não emitir nenhuma
palavra representa o aspecto locucional daquele ato de fala. Pode-se considerar
que o aspecto ilocucional é o sentido implícito desse silêncio. Ficar em
silêncio naquela situação é um ato, e significa que ele está disposto a
enfrentar qualquer coisa para que aquela mulher seja sua esposa.
Os insultos que os parentes da noiva
dirigem ao noivo não são simplesmente insultos. Essas ofensas são atos de fala
e ilocucionalmente significam que os parentes duvidam da capacidade do noivo em
estabelecer e manter uma família.
Após o corte da linha, o noivo passa
a ter direito à fala e pode, até mesmo, responder aos insultos que lhe haviam
sido dirigidos. Porém devemos notar que após o corte da linha o noivo já não é
mais noivo, ele passa a exercer o papel de marido - em outras palavras, o corte
da linha faz do noivo um marido e, em seu papel de marido, pode e deve se defender
de qualquer ofensa que lhe for dirigida.
Dessa forma, consideramos que no
casamento Papel a mesma pessoa acaba ocupando duas posições sociais distintas:
a de noivo e a de marido. Em cada uma delas, eles desempenham funções
específicas que se materializam na linguagem: pelo silêncio e pela fala.
3.3
Análise do casamento Papel: o papel social da mulher
Embora a noiva não seja proibida de
falar durante a cerimônia de casamento, é durante toda a sua vida que o aspecto
perlocucional estará presente. A noiva é obrigada pelo patriarca a casar-se com
um noivo desconhecido. Mas essa interpretação só faz sentido se a noiva
realmente se sentir obrigada a se casar, caso contrário estaremos diante de um
ato ilocucional. A diferença está na comparação dos enunciados: "a
tradição me obrigou ao casamento" ou "fui levada ao casamento".
Note-se que o simples ato de dizer "vou me casar" é oriundo ou de um
ato ilocucionário (que funcionou como um performativo) ou de um ato
perlocucionário (tomado apenas como efeito – a noiva foi persuadida ou
obrigada).
3.4 A
performance ritual
Alguns momentos do ritual de
casamento Papel não são perpassados por um ato de fala específico. A
performance se torna ação através de um conhecimento tradicional que dispensa o
ato de fala, o ato de dizer determinadas palavras. A seguir vamos retomá-los
especificamente.
Para a noiva, raspar os cabelos,
unguentar-se em óleo de palma, dormir 12 noites na esteira e ser alimentada
pela acompanhante faz parte de um rito de passagem para uma nova vida ao lado
de seu futuro marido. Todos esses símbolos são passados de geração a geração
através de uma cultura de oralidade em que o dizer não precisa ser dito, apenas
realizado.
|
Os noivos |
Igualmente, a garrafa de pinga
carrega seu significado construído através de dizeres ancestrais: a depender da
quantidade de líquido, eis o estado virginal da noiva. O sacrifício animal,
especialmente o do cão, traz consigo um símbolo de união. O cachorro não pode
faltar, sem ele não há união, o canino tampouco pode emitir mais de um choro,
com a consequência de representar infortúnio. Todos esses significados
dispensam na cerimônia o ato de fala, um dizer formulaico. Da mesma forma
também que o dispensam os significados da quantidade de panos pentes ofertadas
como sinal de prestígio ou a maciez da pele proporcionada pelo banho de óleo de
palma.
4.
Considerações finais
Neste trabalho, buscamos apresentar
parte da cultura da Guiné-Bissau através da cerimônia de casamento da etnia
Papel. O objetivo principal foi analisar brevemente alguns aspectos dos atos
performativos de Austin (1990) dentro de uma cultura de tradição oral.
Em vias de comparação, no casamento
ocidental, sobretudo nos de origem cristã, o compromisso não se reduz ao “sim”
que ambos os noivos devem dizer ao padre ou ao pastor (e ao juiz no casamento
civil) – é preciso que a autoridade religiosa ou civil pronuncie as palavras:
"Eu vos declaro marido e mulher” – então, embora haja o peso burocrático
atribuído ao papel (e à escrita, consequentemente) e seja ele que registre o
ato, sem as palavras pronunciadas pelo padre/juiz não há casamento. Nesse
sentido, o casamento ocidental é também uma performance. Já no casamento na
etnia Papel, por já pertencer a uma cultura de tradição oral, a performance se
dá muito menos por meio de uma fórmula feita, como a declaração citada, e não é preciso que haja uma figura que professe esses
dizeres; os dizeres já estão corporificados na simbologia da tradição oral.
5.
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